"Tendo ele gastado tudo, houve naquela
terra uma grande fome, e começou
a padecer necessidades."
Lucas 15:14 - Bíblia Sagrada
Enquanto a água esquenta, e logo vai arder, penso em minha mãe.
A última vez que a encontrei lembro sua voz do outro lado do telefone,
"Seu pai morreu", toda encolhida o som de cansaço e desconsolo.
E mesmo depois não a vi. Me vejo esquecido, numa ilha minha ilha, e sei
que para ela não sou, não é assim, ela sempre me diz, e
diz sempre as mesmas coisas, eu escuto.
Os braços cruzados assisto ao calor na água, preciso fumar. O
cigarro ajuda a cabeça, estraga o pulmão, paciência. Mamãe,
não a chamo assim desde o dez anos talvez, agora é a lembrança.
Posso até imaginar a velhinha, de joelhos no chão rezando suas
orações diárias com tanto apego e o resto de fé.
A resignação abala as pessoas, e a solidão. Posso até
lembrar sua voz automática, dizia coisas para mim, dizia pérolas
para o meu coração como se fosse um terreno fértil uma
terra boa e não a lama dos porcos. Talvez não fosse, talvez não
seja. Ela sempre diz a bíblia, e sempre as mesmas coisas, e eu, paciência.
A água passa a ferver, arde. E a brasa do cigarro acende, e eu trago.
Acredita ainda no seu Deus, acredita ainda no seu Filho. E sabe só crer,
acredita e mais nada, esperando o único de seu ventre retornar, como
uma profecia.
Um lugar para bater as cinzas, serve aqui. As primeiras bolhinhas na água
me levam, quem é o fanático?, quem é o crente?, quem é
o Deus? Minha mãe tem seu próprio Deus, talvez o mais conhecido
de todos, o maiúsculo, e o mais acreditado. Eu tenho meu próprio
deus, um em vários, atroz devastador: deus de fato. Deuses iguais, que
trazem nas mãos bênçãos, e feridas. E esse eco de
mamãe sai de minha boca.
A água fervida, a fome, arde: hora do macarrão instantâneo
na panela - dos mais baratinhos, porque tudo tem preço e valor. Até
deus e o seu amor e o seu perdão. Até a fé e a sua falta.
E seguir para onde? Alguns chamam de dízimo: ofertado. Alguns chamam
de vício: absorvido. Não passam de nomes. Vindos do hábito,
como de costume, são preços, cada um com seu custo, paciência,
se não te arrebentam o pulmão é a cabeça, o que
vai dentro da cabeça, e as costas e os ombros e o peso que te jogam,
e com o muito que podem comprar, mesmo que seja caro demais, mesmo que seja
pouco demenos. Três minutos, diz a embalagem. Preciso decidir.
Na geladeira não encontro o queijo para incrementar o sem gosto da hora
do jantar. É preciso economizar, mesmo que não haja mais nada.
Decido, antes mesmo de despejar o insosso pozinho e misturar o repasto de sempre.
Como, mastigo, engulo. E depois do cigarro ajeito uma pequena mochila e me ponho
no caminho, deixo Patmos sem querer, necessidade a voz precisa calar. Vou atender
as preces de mamãe. Serei seu milagre, o fruto de sua crença.
Quase me envergonho.
Três dias. A água fervida. E eu de volta. Três minutos, diz
a embalagem. Não fui o pródigo que se esperava. A falta de fé,
na fé de mamãe, e o apego à minha, me fizeram retornar.
E a dor nos ouvidos. Três dias. E comigo minha oferta, guardada em notas
pequenas na gaveta de meias do pai e agora oferecida toda ao meu deus.
O macarrão na água quente. O cigarro queimando esquecido no canto
da boca. A panela de lado. A colher arde no fogo. Minha fé arde no corpo.
Bem-aventurados os pobres de espírito, os que sofrem, os que têm
fome. Sempre as mesmas coisas. A veia esticada. A agulha certeira. A pele
picada. De joelhos no chão. Um pagão entregue e vencido. E o meu
Deus. E as minhas visões miraculosas. E ainda posso ouvir não
quero é automático. Olhai para ele, e sede iluminados.
Posso ver o Deus, não o de mamãe - o meu próprio deus.
Quietinha.