Eu a conheci há poucas semanas, na festa de aniversário de Roberto,
um amigo em comum. Chamou-me a atenção assim que chegou. Era simplesmente
deslumbrante. Longos cabelos ruivos, olhos verde-esmeralda, pele de marfim.
Como era possível que Roberto a conhecesse e eu não?
- Ei, Beto...quem é ela? - perguntei, apontando para aquela deusa vestida
de negro.
- Ah, sim...o nome dela é Leanan. Amiga da Márcia. Venha que
eu a apresento a você.
Roberto não precisou dizer duas vezes. Munindo-me de toda a coragem
que julgava possuir (mulheres como ela são intimidantes), segui meu amigo.
Atravessamos o salão e em pouco tempo estava frente a frente com ela.
- Leanan, este é um grande amigo meu, Luke. Lucas. Eu, ele e Márcia
somos amigos de infância.
- Ah, verdade? Muito prazer, Lucas.
Não sei o que disse naquele momento. Verdade seja dita: nem ao menos
sei se disse alguma coisa. Mas passado o primeiro momento de estupefação,
conversamos animadamente. Pelo menos eu estava muito animado. Queria saber tudo
sobre ela. De onde era - sabia que era estrangeira, mas não sabia de
onde vinha aquele sotaque -, quantos anos tinha, onde se escondera durante todos
os 28 anos de minha vida. Mas ela respondia em enigmas ou menos ainda, monossilabicamente.
"Mistério, teu nome é Leanan!".
Embora tenha conversado a noite inteira com a mulher mais linda do lugar, senti-me
frustrado quando a festa chegou ao fim. Da forma como surgira, Leanan desapareceu.
Sem deixar vestígios. Sem sapatinho de cristal, como nos contos de fadas,
sem ao menos um "tchau, preciso ir embora".
Naquela manhã despedi-me de Roberto e Márcia e voltei ao meu
estúdio. Por mais difícil que fosse, precisava concentrar-me em
pintar as telas para a exposição, que por sinal, abre amanhã.
Mas meus pensamentos eram povoados apenas por ela: Leanan. Minha Leanan...
Decidi que eu a pintaria em todos os ângulos e em todas as cores possíveis
de se imaginar. E assim foi feito. Durante quase quinze dias não fiz
nada mais além de pintar Leanan. Nada mais me importava. Esqueci de comer,
de beber, de dormir. Estava inspirado e precisava aproveitar isso. Leanan era
minha musa, minha fada. Em todos os meus anos de artista plástico, sempre
quisera sentir o que sentiram os grandes mestres do passado, arrebatados por
uma Musa Inspiradora, mas jamais havia conseguido. Agora eu a sentia.
Hoje pela manhã os quadros ficaram prontos. Exatas 146 telas. Ah, sim.
E duas esculturas em tamanho natural. Quando dei a última pincelada na
última tela, o telefone tocou. A voz do outro lado da linha era rouca,
sensual, doce. Era ela. Márcia havia contado que eu era artista e que
a estava pintando. Por isso me ligou. Quer ver meus trabalhos. Ela deve chegar
em al... É o som da campainha. Preciso me controlar. Ela não deve
perceber meu nervosismo.
- Como vai, Lucas?
"Ela sorriu para mim. Está mais linda ainda do que na noite em
que a conheci. Mais pálida, ainda mais misteriosa".
- As obras estão aqui. Desculpe-me a bagunça. Não tive
como pendurá-las todas...faltou parede...
"Ela sorriu novamente! Terá achado minha brincadeira divertida
ou, ao contrário, terá me achado um imbecil, um bobo-alegre? Com
licença, meus amigos, mas não posso dividir minha atenção
entre Leanan e vocês. Volto quando ela tiver partido".
***
Minha Musa saiu do estúdio há apenas alguns minutos. Elogiou meus
quadros e minhas esculturas. Conversamos e bebemos um bom vinho tinto. Mas enquanto
conversávamos, algo me veio à mente: minhas esculturas - principalmente
- estão longe de serem perfeitas e Leanan merece nada menos que a Perfeição.
Preciso fazer algo para consertar esta falha. A exposição é
amanhã. Tenho algum tempo.
Plantão Rede News: o terror invade a cidade. Há pouco mais
de duas horas a polícia foi notificada de três assassinatos de
moças entre 18 e 25 anos, ruivas, de olhos verdes. O assassino não
se preocupou em ocultar os cadáveres das vítimas, que foram encontrados
em frente às suas casas, sem cabelos, olhos e tendo sido arrancada parte
da pele. A polícia teme novos ataques nas próximas horas e está
trabalhando a fim de identificar imediatamente o criminoso. Voltaremos a qualquer
instante com mais informações ou no nosso telejornal, em uma hora.
Agora sim, minha Musa... agora você está ficando perfeita. Olhe
só o cabelo que consegui para você. Não é lindo?
E esses olhos, o que você acha desses olhos? Trouxe alguns pares a mais
para que possamos escolher o melhor. Qual deles você mais gosta?
Estou certo de que estas minhas obras elevarão meu nome no mundo das
Artes. Todo grande artista busca a perfeição e eu a consegui.
Leanan me inspirou a isso. Serei conhecido no meio artístico como o Novo
Mestre, como o Deus das Tintas e do Barro. Minha consagração será
amanhã. Mal posso esperar por isso. As expressões incrédulas
dos visitantes, as exclamações surpresas, os comentários
emocionados. Lucas, O Criador. Lucas, O Deus da Arte. Lucas, o Grande Mestre.
Ah, Leanan... eu ainda ouço sua voz em minha mente. Vejo seus olhos
diante de mim, brilhando intensos como duas gemas preciosas. Sinto...mas o que
é isso? De onde surgiram esses olhos? E esse...escalpo? Oh, Deus...isso
é sangue!
- Oh, sim, Lucas...isso é sangue, dearest. E olhos, e cabelos, e peles.
Mas Deus nada tem com isso. É tudo obra sua. Estou sinceramente lisonjeada.
Muitas mulheres morreriam para ser retratadas assim, com tamanha verossimilhança.
Bom...na verdade...três mulheres morreram para que eu fosse retratada...
O assassino que cruelmente matou três mulheres na tarde de hoje está
morto. Lucas Andrada era um artista plástico em ascensão. Participou
de diversos salões de arte em vários estados. Na tarde de hoje,
Lucas matou três mulheres a sangue frio, tirando-lhes os olhos, parte
da pele e o escalpo. Em seu estúdio, localizado na zona norte da cidade,
foram encontradas 146 telas e duas estátuas em tamanho natural. Ao que
tudo indica, o artista assassinou as três ruivas para compor as estátuas.
Todas as suas obras retratam uma mesma mulher, ruiva de olhos verdes. Lucas
Andrada utilizou-se de múltiplos métodos para cometer suicídio:
primeiro bebeu um composto de tintas e solventes, em seguida cortou os pulsos
no sentido das veias e a própria garganta. Foi encontrado pelos policiais
que o haviam identificado como suspeito da morte das três moças,
nos braços de uma das estátuas. A exposição foi
suspensa e as obras recolhidas. A polícia ainda não divulgou que
fim será dado a elas.