Era um homem já passados dos cinquenta anos. Cabelos brancos e
longos, muito bem tratados; olhos de um castanho quase amarelo. Tinha a pele
morena clara, alguns vincos próximos à boca e nariz e na testa,
mas não rugas. Apesar de escritor famoso, com mais de 40 títulos
publicados e traduzidos em várias línguas, podia tranquilamente
caminhar pelas ruas e frequentar cafés e shopping centers.
O máximo que ouvia era "que absurdo, homem velho com um cabelão
desses! Não tem espelho, não?", mas isso até o divertia.
Jamais, porém, havia escutado nada como "olha, é aquele escritor!".
Pudera!, nunca dava entrevistas, a não ser por fax ou e-mail,
e por mais que a editora batesse o pé, exigisse, ameaçasse, jamais
ia aos lançamentos de seus livros e nunca, em toda sua carreira, havia
promovido uma noite de autógrafos sequer.
Desde o primeiro livro, sempre assinara usando pseudônimo: Lauro Szymanski.
Por conta disso, podia despreocupadamente dar seu verdadeiro nome em qualquer
lugar que fosse, sem ser reconhecido e sem ter que dar desculpas como "sempre
me perguntam isso...não, só temos o mesmo nome". Quando,
em alguma conversa surgia a pergunta sobre sua profissão, dizia-se advogado;
e muito embora fosse realmente sócio - majoritário - de um dos
maiores escritórios de advocacia da cidade (presente do pai quando se
formou advogado - naquela época, só duas profissões eram
consideradas pela elite: advocacia ou medicina), jamais pisou os pés
lá. Poucos sabiam no que realmente trabalhava, nem mesmo a família.
Os parentes mais afastados acreditavam na fachada de advogado. Os mais próximos
sim, sabiam que Lauro Szymanski era na verdade Mauro Bruscchi. Mas a esposa,
Ana, com a qual estivera casado por 32 anos, morreu há 3. E para o filho,
Douglas, desde que recebesse todos os meses o dinheiro para custear a farra
- digo, faculdade - em Los Angeles, pouco importava o que o pai fizesse.
Incógnito como sempre, entrou numa cafeteria recém inaugurada,
Gran Café. Gostava de uma novidade a cada dez anos. Aproximou-se do balcão
para ver a cara das tortas e decidiu fazer seu pedido ali mesmo: um capuccino
médio e um struddel de maçã. Ao virar-se para ir
para sua mesa, viu uma moça. Não devia ter mais do que vinte anos,
mas lembrava tanto a menina que o havia inspirado a começar a escrever,
trinta anos antes... Tinha a mesma pele de porcelana respingada de minúsculas
gotas de bronze e os olhos de esmeraldas, o mesmo cabelo de fogo caindo em ondas
largas ao longo das costas. Estava sentada no canto mais escuro, no fundo do
salão, parecendo esconder-se do mundo. Tinha o semblante triste, o que
ele achava inadmissível em alguém tão bonita.
Encontrou uma mesa próxima, de onde podia observá-la. Passou
mais de meia hora apenas olhando aquela garota. Como uma estátua, tinha
a mão esquerda a apoiar a cabeça, com os dedos entrelaçados
nos cabelos, como uma presilha, e a direita a mexer com uma colher o café,
do qual não havia bebido sequer um gole. Em todo aquele tempo, ela não
fizera nenhum outro movimento que não fosse aquele.
Como era mesmo o nome daquela menina...? Sua memória já não
era a mesma. Mas a havia conhecido em um café em Paris. Ele havia terminado
a faculdade e, contra a vontade do pai, decidira que não iniciaria sua
carreira de advogado logo em seguida. Primeiro queria viajar pela Europa e descansar.
Estava em Paris, sentado a uma mesa na calçada de um dos famosos cafés
da Champs Élysées, quando a viu. Naquela época ele
era um jovem de vinte e pouquíssimos anos, e ela não devia ter
mais do que dezoito. Apaixonou-se imediatamente por aquele olhar e foi falar
com ela. Alguns encontros depois, tornou-a sua amante e sua musa. Aquela inglesinha
tinha algo que lhe fazia querer escrever. Sua estada em Paris durou enquanto
durou seu dinheiro. Seu romance com a menina inglesa também, embora ela
jamais lhe tivesse cobrado presentes, ou querido saber de seu saldo bancário.
Voltou para o Brasil, enviou os manuscritos de Paris para uma editora, assinando
Lauro Szymanski, que foram publicados. Tornaram-se sucesso imediato e venderam
milhares de cópias. A eles seguiram-se outros tantos, todos igualmente
bem sucedidos. E em todos aqueles anos, era sempre aquela menina a lhe inspirar.
Havia esquecido seu nome, é verdade, mas não aquele olhar. Nem
as sardas em volta dos olhos. Nem os cabelos ruivos a caírem em ondas
pelas costas.
- Bonsoir, lembra-se de mim? Mauro, de Paris...
- Claro, Mauro... - ela sorriu - ...o escritor. Achei que nunca mais o veria.
- Também tive medo. Mas quando a vi, sentada nesse canto, soube imediatamente
que era você. Não mudou nada, menina...
- Já você mudou muito. Mas está muito mais charmoso. Esses
cabelos longos e brancos...
Piscou os olhos algumas vezes, balançou a cabeça como que a afastar
uma imagem que surgia em sua mente. Olhou para a mesa do canto. Havia perdido
a oportunidade naquela divagação. A menina havia ido embora.
Passou a procurar a inglesinha por todo o canto. Voltava ao café todos
os fins de tarde, à mesma hora. Parava, nas ruas, toda ruiva de cabelos
longos que encontrasse. Depois de um certo tempo procurando, passou a parar
as que tivessem qualquer comprimento de cabelo. Ela poderia ter cortado as longas
madeixas. Leu e releu cada um de seus próprios livros, numa tentativa
desesperada de invocá-la. Certa noite, quando dormia o sétimo
sono, acordou num pulo com um nome a lhe saltar da boca: Leanan Sidhe. Era esse
o seu nome!
No dia seguinte passou uma nota nos classificados de todos os jornais da cidade:
Procura-se Leanan Sidhe - com a sua descrição. Milhares de moças
ruivas, de olhos verdes, surgiram à sua porta. Descartou cada uma delas
como se descarta uma propaganda indesejável que lhe chega pelo correio.
Procurou um amigo, talentosíssimo ilustrador da Folha da Tarde e encomendou,
com urgência urgentíssima, o retrato daquela menina. Vendo o desespero
do homem, outro amigo, jornalista, publicou uma matéria acompanhando
o retrato, ao pé da página, no jornal de domingo.
Uma tarde, a porta de casa abriu-se num estrondo. Era Douglas. Há dois
meses o pai não lhe depositava o dinheiro da faculdade, e ele ficou preocupado.
"Cadê você, velho, morreu?", ouviu de seu escritório.
Com o fio de voz que lhe restava, respondeu "estou aqui", e aguardou
o griteiro que Douglas faria. O filho assustou-se ao entrar no escritório
do pai, que lembrava como tendo uma decoração clássica:
estantes altas a rodear o ambiente, milhões de livros nas prateleiras,
uma pesada escrivaninha de uma madeira escura qualquer no centro da sala e uma
poltrona verde de couro, encosto alto, onde o pai se sentava a escrever. Agora,
o que via eram recortes de jornal, retratos e mais retratos de uma menina ruiva.
O pai estava envelhecido, com a pele amarelada, pálida, olhos fundos
e cabelos desgrenhados.
Sinceramente compadecido, abraçou o velho e quis ouvir sua história.
Não gritou, não reclamou o dinheiro, não deu bronca pela
bagunça.
- Pai, Leanan Sidhe é um mito celta. Olhe aqui - disse, teclando algumas
palavras num site de busca da Internet.
O escritor leu o que o filho lhe mostrava, entendeu que havia um mito celta,
uma fada-vampira chamada Leanan Sidhe. Mas entendia também que existia
uma Leanan Sidhe verdadeira, que conhecera há décadas em Paris
e que vira há alguns meses ali mesmo, na sua cidade, mexendo um café
já frio.
Com o coração partido, Douglas fez com que o pai assinasse uma
procuração, outorgando-lhe o direito sobre todos os seus bens.
Seguindo o conselho do médico que há anos cuidava do pai, internou-o
em uma casa de repouso, onde se recuperaria em pouco tempo, e retornou com lágrimas
nos olhos a Los Angeles.
- Bonsoir monsieur, sente-se melhor hoje? - ouviu a enfermeira falar.
Era ruiva, tinha a pele de porcelana e os olhos de esmeralda que tanto procurara.
- Busquei você por tantos meses... - disse, a voz fraca.
- E aqui estou, chèrrie. Quero lhe agradecer pelos anos de dedicação
e pelas tantas homenagens em seus livros. Li cada um deles, Lauro Szymanski.
- Era você...
- ...no café, aquela tarde? Sim.
O escritor chorou. Entendeu que, se ela estava ali, e se lhe revelava todos
os mistérios, era porque era chegado seu fim. Leanan acariciou os longos
cabelos brancos do velho, fitou seus olhos quase amarelos e deu-lhe o beijo
pelo qual ele esperara trinta e tantos anos. Encontraram-no, na manhã
seguinte, sem uma única gota de sangue em seu corpo, mas com um sorriso
nos lábios.