Irmã Leôncia era a mais brava das três irmãs, entretanto
nos permitia dar grama na mão ao seu carneirinho cego. Ela mesma o fazia
e quando o fazia se transformava, não era mais aquela mulher carrancuda...Mulher
? Uma irmã, claro mas ainda assim mulher. É que naquele tempo
não estava acostumada a pensar assim e só agora me ocorreu que
a irmã Leôncia era uma mulher. Mulher como minha avó, como
minha mãe. Ela tinha o rosto grave e se houvesse problemas com as crianças
bastava fingir que iam chamá-la ou, em alguns casos, simplesmente ameaçar
que a ordem reinava outra vez. Vi muitas vezes o sorriso prazeroso no canto
da sua boca. Sorriso escondido, disfarçado, claro, já que irmã
Leôncia não era dada a sorrisos. Quando sorria, assim sem sorrir
de verdade, era pelo gosto de se ver temida. No fundo acho que não era
nada daquilo, não tive tempo para confirmações.
A irmã Jacinta era doce e risonha e tinha uma pinta como a da Marilyn
Monroe no canto da boca. Será que ela também tinha medo da irmã
Leôncia ou irmã Leôncia despejava o seu mau-humor somente
em cima das crianças ? Será que foi obrigada a se tornar freira,
a irmã Leôncia ? Obrigada pela família ou pelas circunstâncias
? Não sei, nunca perguntei. Jamais teria coragem suficiente para isso.
Se fosse a minha irmã certamente teria perguntando. Ela pergunta coisas
assim e muito mais. Deu-lhe vontade de saber e ela pergunta. Pronto. Eu sou
exatamente o contrário. Fico imaginando mas não pergunto e aí
30 anos depois eis me aqui a pensar na irmã Leôncia da minha infância.
Leôncia. Que nome, Não ? De qualquer modo isso não tem sentido.
Imagine uma magrelinha de 9 anos dizendo " E aí, irmã Leôncia,
agora que já sei todos os dez mandamentos de cor, posso lhe fazer uma
perguntinha ? E que eu estava aqui a ruminar sobre a sua escolha profissional,
quero dizer, é uma escolha mesmo ou a senhora foi obrigada a isso de
alguma forma ? Não é que não pareça uma carreira
interessante, não estou criticando, imagina, é que a senhora não
parece assim muito contente ". Ainda que eu não fosse uma magrelinha
tímida isso seria impossível pois ela teria me interrompido antes
da terceira palavra e teria apontado o meu exato papel nessa história
que era o de escutar, decorar, fazer de conta que compreendia o mistério
da Santíssima Trindade e calar a boca.
A irmã Aurora era magrinha, pequena e bem morena, as outras duas eram
branquinhas. Dizia a irmã Aurora : " Decorem os sete pecados capitais
porque o padre vem tomá-lo ". Era a prova antes da primeira comunhão.
Porque cabia às irmãs ensinar e ao padre verificar o que tínhamos
aprendido era um mistério tão grande quanto o Santíssima
Trindade. " Quais são os sete pecados capitais, minha filha ? "
" Gula, luxúria, vaidade.....Vaidade, vaidade tudo é vaidade....
"Acho que o padre nem ouvia. Ele também não primava pelo
bom humor. Será que se encontravam todos nesse fim de mundo a contragosto
? Um italiano, italianíssimo, italiano no nome, na profissão,
no sotaque. Duas das irmãs também eram italianas : Leôncia
e Jacinta.
Além do carneirinho, irmã Leôncia tinha um grande viveiro
de pássaros. Pássaros lindos e coloridos para enfeitar os seus
dias sem graça. Fora do viveiro tinha uma Arara que repetia sempre :
Aurora, Aurora !
A cidade era empoeirada, poeira vermelha que irritava a minha mãe. O
impressionante era que quando adentrávamos a 'casa das irmãs'-
nós dizíamos assim- a poeira desaparecia, era só jardim,
limpeza, fontes, pássaros, frescura e o carneirinho cego que era alimentado
pelas alvas mãos da irmã Leôncia. Não fosse irmã
Leôncia e ali poderia ser considerado o paraíso. As vezes as aulas
de catecismo aconteciam na igreja, outras na casa das irmãs. Na igreja
também eu não me sentia mal. Era igualmente limpo e fresco. Os
lugares mais frescos da cidade. Na casa das irmãs era ainda melhor porque
tinha a grama e o carneirinho cego.
As irmãs tinham uma perua verde, de um tom muito indiscreto e elas mesmas
a conduziam. As únicas mulheres, posto que mulheres eram, a dirigirem
na cidade. Tinham por isso um ar de liberdade, de quem não esperava a
decisão de homem nenhum. Ou será que o frei decidia ? Frei Giovanni
que perguntava : " O que é extrema unção, minha filha
? " Acho que não dizia minha filha. Desfiava uma listinha de perguntas
que tinha lá na cabeça e pensava em outra coisa enquanto respondíamos.
Depois era a vez de inventar uns pecadinhos sem graça de criança
e de ir rezar umas ave marias.
No dia da primeira comunhão, comunguei sabendo de cor cada pecado capital
assim como todos os dez mandamentos. O gosto da hóstia não era
novidade para mim, eu já conhecia porque o tio Pedrinho, que na verdade
era tio da minha mãe e irmão da minha avó, me deixou experimentar
alguns pedaços. Ele assistia o padre no seu ofício. Os pedaços
que experimentei não tinham sido benzidos pelo padre evidentemente, senão
não se podia. Entretanto o gosto que tinham antes de serem benzidas e
depois era o mesmo, nada mudava depois da benzição do padre. O
corpo de Cristo tinha sempre o mesmo gosto insonso e sempre colava no céu
da boca. Acho que não é 'benzer' que se deve dizer, mas sim 'consagrar'.
E o Frei Giovanni consagrava com muita má vontade.
Sobrou aqui uma foto da primeira comunhão. De um lado o Frei Giovanni,
de outro a sorridente irmã Jacinta, de outro a diretora da escola onde
eu estudava e no meio disso tudo, eu, vestida de branco. Acho que foi tudo o
que sobrou.