Gosto de olhar o céu. Não apenas à noite, quando está
estrelado e quando a lua cheia brilha imponente. Gosto do céu com suas
brancas nuvens de algodão, do céu nublado e escuro dos dias de
inverno, do céu azul e límpido dos dias claros de verão.
Olhando para o alto, me perco em pensamentos, sonhos e divagações.
É quando sou mais minha, quando meus pensamentos apenas a mim pertencem.
Lembro de uma historinha infantil que me contaram na escola onde cursava a
4ª série do primeiro grau, em Porto Alegre. A autora narrava as
aventuras de uma fadinha que gostava de esculpir nuvens. Certa vez, fizeram
um concurso no céu para ver qual a escultura mais bonita. Não
lembro como acabava. Mas essa história sempre me comoveu e até
hoje é parte importante do meu imaginário, em eterna moldagem.
Historinhas à parte o céu, em todas as suas formas e cores,
sempre foi para mim, sinônimo de criatividade e inspiração.
Encontrar formas em nuvens, mais do que um exercício de criança,
uma expressão da criatividade muitas vezes contida pela correria do cotidiano
agitado das cidades.
Pois era um céu azul carregado de nuvens de algodão que encontrei
quando acordei certa manhã e sentei em frente ao computador para escrever.
Não sabia o que narrar, não sabia o porquê daquela súbita
vontade de contar uma história. Sabia apenas que queria escrever. Liguei
meu companheiro e cúmplice de aventuras literárias e pus-me a
digitar as primeiras palavras que me vinham à mente.
Da janela da biblioteca de meu apartamento, que fica no terceiro andar do
edifício onde moro, é impressionante a visão do céu.
Naquele dia, as nuvens estavam especialmente brancas e fofas. Com os olhos,
era possível sentir sua maciez. O céu estava colorido por um azul
intenso que realçava o verde das plantas. Senti-me como a observar uma
obra de arte impressionista, com suas cores fortes e vibrantes. Minha janela
parecia uma moldura.
A cena mostrava um casarão de telhado verde e estilo germânico
ao longe, entre as muitas árvores. Não fossem o barulho dos carros
e o movimento intenso da rua, as músicas em volume alto que saíam
dos automóveis, seria possível afirmar que estava no campo, na
Europa germânica do final do século XIX. O dono do casarão
seria um rico proprietário de terras.
Nesse ponto, minha imaginação criou asas e voou para muito aquém
do princípio do século XXI. Os carros então transformaram-se
em carroças e carruagens conduzidas por elegantes cocheiros usando quepe
e luvas, puxadas por cavalos puro-sangue de pêlo lustroso e porte majestoso.
E o que minha mente viu, nessa viagem fantástica, é o que vou
narrar, a partir de agora a vocês...
***
Meu corpo ficou preso na biblioteca de meu apartamento. Minha mente, no entanto,
pegou carona no ar e através dele foi parar na Alemanha rural de algum
século já perdido no tempo. Invisível, amorfa, eu era a
espectadora ideal, a narradora perfeita. Justamente por não poder ser
notada pelas personagens de minha narrativa, é que podia observar. Nada
podia-me ser ocultado: nem mesmo os pensamentos mais íntimos, mais secretos
daquelas pessoas a princípio desconhecidas. Nem mesmo os desejos mais
ardentes, os sentimentos mais tênues.
Aterrissei no cume de uma montanha muito verde, de onde era possível
ver, ao longe, um casarão de telhado verde e paredes brancas, cercado
de árvores, na exata posição em que antes eu o vira da
minha janela da biblioteca, no século XXI. Era-me impossível conter
a alegria de ter conseguido chegar ali. Num arroubo de emoções,
desci a montanha e corri pelo campo, até alcançar o lugar que
antes só existia em minha imaginação. Essa corrida, no
entanto, não me tomou mais do que uns poucos milésimos de segundo.
Ali conheci aqueles que se tornariam minhas futuras personagens.
Uma carruagem passou por mim, que observava a tudo do jardim do casarão.
Dela apeou um homem de pele muito branca, cabelos e barba ruivos e olhos azuis.
Era um homem alto e forte, muito bem vestido. Carregava numa das mãos
uma bengala e na outra, uma maleta de couro cru. Chamei-o de Max Weisengrund.
Weisengrund era médico e proprietário daquele imponente e simpático
casarão enxaimel. Era ainda, patriarca de uma família composta
por Ethel, sua esposa, e três filhos: Franz, de 25 anos, Joseph, de 22
e Romy, de 16.
Ethel era o que podia-se chamar uma verdadeira dama. Pertencente a uma família
nobre da Alemanha rural, casou-se muito cedo, mais para agradar aos pais do
que por amor. Esse sentimento, aliás, só veio a conhecer após
algum tempo de convivência com Max. Era temente a Deus, culta (sabia ler
e escrever), hábil nas tarefas manuais, cozinheira excepcional. Era uma
mulher de opiniões, que sabiamente guardava para si; jamais sonhara em
desagradar ao marido, opondo-se a alguma de suas ideias.
Franz, o mais velho, havia deixado a casa dos pais há alguns anos.
Certa manhã, quando todos já estavam acordados e prontos para
o desjejum, Ethel descobrira uma carta que mais se assemelhava a um bilhete,
devido à sua extensão, em que o filho explicava o motivo da partida.
"Não desejo tornar-me fazendeiro, nem tampouco seguir os passos
de meu pai e cursar medicina, para orgulhar a família. Estou farto das
manhãs sempre iguais, das tardes sempre iguais e das noites que não
mudam. Quero seguir minha vida de acordo com o vento, mudar a direção
no meio do caminho. Ser livre e ter o direito de dar passos certos e errados
e ser o único responsável por isso. Não quero magoá-la,
minha mãe, mas previno-lhe de que notícias minhas não serão
frequentes, pelo menos escritas de meu punho. Não sei para onde
a brisa me carregará. Peço apenas que compreenda os impulsos de
minha juventude e que não deixe de me incluir em sua orações
noturnas. F.W."
***
Acredito que não seja necessário relatar a reação
da matriarca diante daquele pedaço de papel. Como toda mãe, desesperou-se,
com medo do rumo que a vida do filho tomaria. Chorou copiosamente, trancada
em seu quarto, durante semanas. Ao menor ruído, secava as lágrimas
e com um sorriso nos lábios endireitava-se na poltrona de veludo, esperando
que Franz abrisse a porta. Passaram-se meses, mas ele não voltou. Passaram-se
anos e a última notícia era de que havia pego um vapor para a
Inglaterra, trabalhando na caldeira. Com o tempo, Ethel passou a sofrer em silêncio,
mas seu coração jamais deixou de esperar. E, mesmo que Franz jamais
houvesse pedido, nunca o deixou de fora de suas preces.
Ao contrário da mãe, Romy entusiasmou-se com a atitude do irmão,
apesar de amá-lo e sentir imensamente sua falta. Durante toda sua vida
até aquele momento, Romy e Franz haviam sido como um só. No entanto,
sendo nove anos mais nova (tinha, na época, 12 anos), tinha esperança
de que la carta deixada por Franz lhe tivesse aberto uma porta. Queria ver o
mundo, estudar, trabalhar. Queria ir ao teatro, escrever, assistir a uma aula
de anatomia. Por que o destino das mulheres tinha que ser o ultrapassado trabalho
doméstico? Por que obedecer ao marido? Por que ter um marido? Um dia
seria livre como o irmão. Percorreria o mundo e mostraria que uma mulher
não precisa e nem deve ser necessariamente o que a sociedade considerava
"uma dama".
Weisengrund, o pai, dizia não ter dado maior importância ao fato
de o filho mais velho ter abandonado o lar. Afirmava, não sem demonstrar
certa amargura na voz, que Franz não o havia surpreendido. "Sempre
soube que faria isso, mais cedo ou mais tarde", afirmava no tom mais seguro
que conseguia modular. Ao mesmo tempo, garantia que Franz não podia mais
ser considerado um Weisengrund e que não teria parte na herança.
O filho havia feito uma escolha e deveria arcar com as consequências.
O dia da carta foi o último que Weisengrund tocou no nome de Franz ou
sugeriu sua existência.
O mais inconformado com a atitude de Franz, no entanto, fora Joseph. Sentia
a dor do pai e o incomensurável sofrimento da mãe. E sofria por
eles. Não admitia que o irmão fosse capaz de causar tanto desgosto.
Pelo irmão, nutria dois sentimentos: raiva e desprezo, que se completavam
numa sórdida combinação levada aos limites do ódio.
***
Quando cheguei àquele lugar, quatro anos haviam transcorrido desde
a partida de Franz da villa. Todos os habitantes da casa pareciam alegres,
sem grandes preocupações. Joseph havia sido mandado pelo pai à
capital, onde cursava Medicina. Romy passava os dias em seu quarto ou na sala
de estudos, lendo romances e teorias dos pilares da filosofia. Vez por outra,
também saía ao pátio para tomar sol e ficar com a mãe
e os treze cachorros de diferentes raças que possuíam.
Weisengrund há algum tempo já não exercia a arte médica,
a não ser em casos de extrema necessidade. Gostava da vida no campo,
de cuidar da sua fazenda e de promover grandes festas e bailes para a elite
da região. No dia em que cheguei ao casarão, no entanto, encontrei
a carruagem do doutor pelo caminho. Segundo soube mais tarde, Max Weisengrund
havia sido chamado às pressas para cuidar da saúde débil
de um velho amigo. Quando retornou, tinha a pele mais branca do que de costume
e na face, estampada a notícia da morte.
No dia seguinte, o médico recebeu a visita do filho e único
herdeiro de seu amigo. O jovem chamava-se Karl Krönemberg. Cabelos castanhos
e olhos azuis, pele alva, porte elegante e bem vestido, chamava atenção
qualquer fosse o lugar em que adentrasse. Tinha uma voz máscula, porém
suave. Falava bem e corretamente, sabia como encantar homens e mulheres e obter
deles o que desejasse. De extrema inteligência, não havia frequentado
curso superior - ainda que fosse este o grande sonho do falecido pai - mas,
diziam, tinha boas ideias.
***
O jovem Krönemberg, que poucas vezes havia visitado a fazenda Weisengrund,
solenemente apresentou-se (apesar de todos ali saberem de quem se tratava) e
explicou ser sua visita uma missão delicada: convidar amigos e parentes
para o enterro de seu pai e para o cortejo, que deixaria as terras, agora do
jovem Karl, em direção ao pequeno cemitério que ficava
atrás da igrejinha da região, numa colina com bela vista para
o mar. Falando pelo clã que comandava, Max Weisengrund aceitou o convite.
Weisengrund, Ethel e Romy madrugaram no dia seguinte. Tinham que chegar cedo
às antigas propriedades de Adolf Krönemberg a tempo de prestarem
as últimas homenagens ao amigo e vizinho e de ajudar o herdeiro a conduzir
o cortejo até o cemitério. Romy estava indignada. Não gostava
de cemitérios e apenas a palavra Morte, para ela, já vinha acompanhada
por um forte cheiro de enxofre, que ligava às histórias das terras
infernais contadas pelo padre Muller, tristeza e sofrimento. Não
gostava de pensar na morte, nem de presenciá-la. E no entanto, naquele
dia, vestia-se de preto para obedecer às ordens paternas.
***
O funeral não foi agradável. Nenhum funeral o é. E o
do velho Adolf havia sido mais triste ainda, pela presença de poucas
pessoas. Estava partindo e quase não havia quem o fosse homenagear e
dizer adeus. Não que Adolf Krönemberg tivesse sido, em vida, uma
pessoa má e egoísta. Havia sido justamente o contrário!
Mas depois da morte da esposa, quando Karl tinha 3 anos, o fazendeiro havia
se isolado do mundo. O reflexo estava ali, naquele enterro.
Em casa, o casal Weisengrund comentava o abatimento de Karl, que mal havia
enterrado o pai, já teria que tocar as terras por ele herdadas. E sozinho,
pois a única empregada de Adolf, fraulein Schwenggel, partira
no mesmo momento em que o patrão era depositado em sua morada eterna.
"Pobre Karl", murmurava Ethel ao marido. Sem esposa, mãe,
irmãos ou outros parentes - não se dava bem com a irmã
de seu pai - viveria sozinho, mais isolado que o pai, naquele imenso casarão
em meio à relva. Pobre Karl!
Em seu quarto, Romy tentava apagar da memória as imagens fúnebres
que havia presenciado contra a vontade. Pediu à criada que lhe preparasse
um banho, pois sentia ainda o forte cheiro de enxofre impregnado em seu corpo,
e mandou que jogasse fora, ou melhor ainda, que queimasse as roupas que estava
vestindo. No lugar do preto, vestiu um suave vestido amarelo. Começava
a se sentir melhor.
Fechou os olhos e a imagem que lhe veio à mente foi a do rapaz Krönemberg.
A imagem e o nome de Karl realmente estavam no ar da fazenda Weisengrund aquele
dia. Primeiro ela sorriu, ao lembrar-se de como era bonito. Depois ficou séria,
ao perceber o que estava acontecendo. Ora, nem ao menos havia gostado dele,
quando os visitara a cavalo no dia anterior! E além do mais, não
queria se casar. Queria estudar, viajar, ser uma mulher livre! Por que, então,
estava sonhando com Karl?
Os dias se passaram e muito pouco foi dito naquela casa. Max estava abatido.
A morte de Adolf o havia feito pensar em sua própria morte. Afinal, eram
da mesma idade e Ethel cinco anos mais nova. Apesar de não ser dado a
brincadeiras e ter sempre o semblante fechado, gostava de viver, e a proximidade
da morte o amedrontava. Como seria do outro lado? Haveria outro lado?
Ethel, na segurança de sua religiosidade, confortava o marido dizendo
que sim e lhe contava novamente as histórias sobre o Céu e o Inferno
que ouvira desde bebê, ainda no colo da mãe. Mas tais histórias
apenas o deixavam mais nervoso, mais aterrorizado ainda. E se Deus julgasse
que ele não merecia o Céu e o enviasse ao Inferno, aos cuidados
do Diabo, vermelho, de chifres e portando sempre um tridente, com o qual afundava
as almas, fazendo com que queimassem eternamente no caldeirão fervente?
A sombra da morte de Adolf não abandonou a casa de Max Weisengrund
por um só instante durante mais de dois meses e perseguia a todos: ao
casal, à menina Romy e aos criados. Certo dia, porém, os Weisengrund
voltaram a receber a visita de Karl. Estava mais corado, o probrezinho, observou
Ethel, enquanto o jovem apeava de seu cavalo. Havia ido à fazenda em
busca de companhia e também para visitar a jovem Romy. A partir de então,
o clima entre o casal mudou. Afastaram da mente o Inferno da Morte e começaram
a incentivar uma possível união entre a filha e Karl.
***
Será que haviam descoberto seu segredo?, pensou Romy. Será que
sabiam que, desde o funeral do amigo de seu pai sonhava, tanto dormindo quanto
acordada, com Karl Krönemberg? Esperava que não. Não podiam
nem mesmo desconfiar. Mas deixaria para pensar nisso mais tarde. Havia sido
avisada de que seus pais a aguardavam na sala de visitas e deveria se apressar
para atendê-los.
Quando pôs o primeiro pé para dentro da sala onde os pais a aguardavam,
Romy viu algo que jamais imaginou ser possível. Ethel e Max bebiam chá
e conversavam animadamente com...oh, não! Karl Krönemberg! Será
que...sim, definitivamente haviam descoberto algo! Mas como poderiam, ela jamais
havia falado dele...
Assim que sentiram sua presença na sala, pediram para que Romy entrasse.
Olharam-se com cumplicidade e deixaram os dois jovens "a sós",
ainda que sob o olhar vigilante. Max e Ethel sentaram-se então no outro
sofá, torcendo para que a filha conquistasse o coração
do herdeiro de Adolf Krönemberg.
***
Nos dias que se seguiram ao encontro de Romy e Karl na fazenda Weisengrund,
nada de novo aconteceu. Karl não havia mais aparecido e os Weisengrund
já imaginavam que a filha havia feito alguma desfeita, que devia ter
ofendido o jovem rapaz. Na semana seguinte, no entanto, Karl voltou a visitar
os antigos amigos de seu pai, mas dessa vez para falar com o patriarca.
Permaneceram trancados por mais de uma hora na biblioteca de Weisengrund.
Depois Karl saiu, despediu-se educadamente da senhora Weisengrund e retornou
à sua propriedade. Ethel não podia mais suportar a agonia. Entrou
na biblioteca e encontrou o marido sorrindo. "Ele pediu formalmente a mão
de Romy em casamento e deseja marcar a cerimônia para daqui a um mês",
comemorou entre sorrisos. Mandaram chamar a noiva.
Ao receber a notícia de seu destino, Romy ficou impassível.
Não chorou, nem sorriu, não protestou, nem comemorou. Disse apenas
um "sim senhor" suave e submisso e retirou-se da sala. Para Max e
Ethel, pouco importava o que a menina sentia. Também haviam se casado
por meio de arranjo entre as famílias e continuavam, após tantos
anos, juntos e felizes. O amor viria com o tempo.
No quarto, Romy soluçava abraçada ao travesseiro. Casar-se com
Karl Krönemberg? Sim, ele era bonito, charmoso, elegante e bem-educado.
Em algumas noites, chegava até mesmo a sonhar com ele. Mas daí
a casar-se? Tinha apenas 16 anos! Chorou a noite inteira. Não jantou.
Quase não dormiu. Na manhã seguinte, já estava aparentemente
acostumada à ideia. Com a ajuda da mãe, começou
a preparar o enxoval e a escrever os convites para o casamento, inclusive para
os irmãos Joseph e Franz. Ela e Karl não se viram mais, a não
ser no dia da cerimônia.
Três dias após enviada a carta, Joseph já estava em casa.
Tradicionalista, ficara feliz com a notícia do casamento da irmã.
Casada, Romy não poderia fugir, como o havia feito Franz. E deixaria
felizes a todos. E quem sabe, dali há menos de um ano, desse aos pais
um neto. A irmã então teria que se ocupar da casa, do marido e
dos filhos, e não teria tempo para pensar em bobagens, como estudar e
viajar. Sim, seus pais haviam feito um excelente negócio.
***
Aquele mês passou voando. Ninguém sentiu o tempo correr, nem
teve tempo para pensar em mais nada que não fosse o casamento. Todos
estavam por demais ocupados em organizar a cerimônia, que aconteceria
na igrejinha da colina, e a festa, que reuniria toda a elite da região
na fazenda Weisengrund.
O entusiasmo era tão grande, que a família nem ao menos se preocupou
em saber como estava Romy. A eminente união das duas famílias
- e das duas fortunas - mais tradicionais da Alemanha era tudo em que pensavam.
Nos dias que antecederam à cerimônia, ninguém quis saber
onde estava ou o que ela estava fazendo.
***
Enquanto a família se divertia, Romy continuava a se sentir dividida.
Não sabia que rumo sua vida tomaria após o casamento. Seria feliz?
Mas e o discurso que professava desde os 12 anos? Esquecido? Deveria abandonar
seus ideais, sonhos e objetivos para atender a um capricho de seus pais e irmão?
Desde que o casamento havia sido oficialmente anunciado, Romy sonhava cada
dia mais com Karl. Alguns dos sonhos eram bons, prazerosos, faziam-na sentir-se
bem ao amanhecer. Já outros a aterrorizavam. Via o noivo como um monstro
devorador, uma fera capaz de tudo para satisfazer o instinto. Talvez fosse apenas
nervosismo. Mas e se estivesse certa e Karl fosse mesmo o demônio com
que indefinidas vezes sonhara?
O medo tomou conta de Romy, que vagava pelo casarão sem ser notada.
Em busca de respostas para suas angústias, começou a percorrer
os aposentos proibidos da casa. No quarto dos pais, encontrou as chaves que
abriam todas aquelas misteriosas portas. E passou a abri-las, uma a uma.
A primeira porta a ser aberta foi a do quarto onde uma vez Franz dormira.
Tudo estava exatamente como ele deixara quando partiu há quatro anos,
fugindo da vida medíocre e do destino programado por seu pai. A diferença
estava nas imensas teias de aranha, que tinha que afastar com as mãos
para que pudesse caminhar pelo aposento. Que saudade sentia do irmão!
Haviam sido sempre tão unidos...Franz sempre fora o único a entender
seus sentimentos, pois pensavam e sentiam da mesma forma. Onde estaria agora?
Teria recebido sua carta? Estaria ainda naquele endereço? Estaria ele
a par do destino da irmã?
Olhou em algumas gavetas e pouco encontrou. Alguns papéis de carta
com o brasão da família e uma caneta tinteiro era tudo o que uma
delas continha. Na outra, algumas poucas roupas e um livro encadernado. A capa
era feita de couro cru e tinha um aspecto um tanto quanto sinistro. As páginas
também eram feitas de couro e a tinta tinha uma cor escura. Era impossível
ler tal livro, observou ela, enquanto folheava as páginas. As cores das
páginas e da tinta se misturavam, e não era possível definir
o que estava escrito. Mesmo assim, tomou o volume em suas mãos e o levou
ao seu quarto. Mais tarde tentaria encontrar uma forma de visualizar as palavras
e ler seu conteúdo.
Fechou a porta do quarto de Franz e voltou ao lugar que um dia havia sido
seu quarto, mas que agora mais parecia seu cárcere. Naquela noite, pediu
que a criada levasse um pedaço de pão com geleia e uma
xícara de chá. Escondeu o estranho livro debaixo do colchão,
jantou e não muito tempo depois adormeceu. Dessa vez sonhou com Franz
e não com o futuro marido. Entre as brumas ele a alertava sobre Karl,
sobre os pais e Joseph, e ensinava a ela como proceder à leitura do livro.
Desapareceu nas sombras.
***
Felizmente Romy lembrava-se sempre de seus sonhos. Tinha-os todos anotados
e devidamente datados em vários diários, escondidos entre suas
bonecas de porcelana. O sonho que havia tido com Franz seria o único
de sua vida a não ser registrado jamais. Ele havia aparecido naquele
sonho por ela e somente ela deveria conhecer o teor de sua palavras, pensou.
Vestindo ainda seu camisolão branco, atravessou a casa com o livro
de Franz entre as mãos, desceu as escadas até o porão e
lá abriu a segunda porta proibida. Acendeu as velas que estavam em um
antigo candelabro de prata e sentou-se sobre um pano preto, no meio do espaçoso
porão. Por que nunca usavam aquele lugar? Tão bonito, tão
sereno. Enquanto pensava sobre isso, Romy deu-se conta de que, ao contrário
do quarto do irmão, fechado há quatro anos, o porão encontrava-se
incrivelmente limpo, sem qualquer vestígio de poeira ou de teias de aranha.
Por que alguém dar-se-ia ao trabalho de limpar e manter em ordem um lugar
que nunca era utilizado? Certamente seria algo a perguntar à mãe,
algum dia.
Posicionou o candelabro em sua frente de modo que pudesse ler o livro, afastou
do pensamento a preocupação tola com a limpeza do porão
e começou a seguir as instruções que haviam sido silenciosamente
ditadas pelo irmão na noite anterior. Caminhou até uma espécie
de altar que havia no canto do salão e apanhou o punhal de prata ornado
com rubis, levando-o ao lugar onde havia-se acomodado com o livro e as velas.
Ficou fascinada com a beleza daquela arma e por alguns instantes sentiu-se traída.
Como Franz nunca lhe mostrara aquelas coisas?
Com a ponta do punhal, Romy fez um pequeno corte no pulso esquerdo, deixando
que três gotas pingassem sobre a capa de couro daquele estranho livro.
Limpou com a língua o resto de sangue do punhal e guardou-o novamente
sobre o altar. Com a boca, limpou também o resto de sangue em seu pulso,
fazendo-o estancar. Respirou profundamente; abriu o livro.
Romy surpreendeu-se com o que viu ao abrir aquele livro, embora seu rosto
ocultasse qualquer emoção. As palavras, que na noite anterior
eram absolutamente ilegíveis, pois se confundiam com a coloração
do couro das páginas, naquele momento haviam adquirido a cor dourada.
Á exceção de Romy, a luz dourada que emanava daquelas páginas
cegaria qualquer pessoa que ousasse lançar sobre elas o olhar, tal era
sua intensidade.
Passado o deslumbramento inicial, Romy pôs-se a recitar em voz alta
o conteúdo daquelas páginas, escrito em latim. Sua voz podia ser
claramente ouvida, ainda que seus lábios não se movessem. Decorrido
um curto espaço de tempo, Romy viu-se frente a frente consigo mesma,
em carne e osso. Ficou confusa a princípio, sem conseguir definir se
o que via era realidade ou alucinação. De onde havia surgido aquela
imagem? O que estava acontecendo? Sentiu medo. Não sabia como agir, o
que fazer. Se alguém desconfiasse do que havia acabado de lhe acontecer,
seria acusada publicamente e queimada viva em uma fogueira. Há séculos
aplicavam tal punição a quem fosse suspeito de prática
de bruxaria. Havia lido sobre isso. "Não há como desconfiarem",
pensou consigo mesma, tentando tranquilizar-se. "Ninguém sabe
onde estou, jamais alguém entrou neste porão e além do
mais, estão todos ocupados com o casamento".
Já mais tranquila, mas ainda com o olhar fixo naquela mulher tão
parecida com ela mesma, pôs-se a refletir. E finalmente entendeu o presente
que havia recebido do irmão e como seria útil em sua nova vida
de casada. Com um pensamento e olhando diretamente nos olhos de sua própria
imagem, Romy fez com que a outra desaparecesse. Trancou novamente o porão
levando consigo o livro e pacientemente aguardou o dia da cerimônia. Nunca
mais Karl fizera parte de seus sonhos.
***
Enfim, o casamento. Tudo estava perfeito, ricamente decorado, adornado com os
mais finos enfeites e as mais coloridas flores. A música fazia-se ouvir
no ar, onde quer que as pessoas fossem. Já pela manhã a fazenda
Weisengrund estava movimentada. Convidados que vinham de longe começavam
a instalar-se nos diversos quartos do casarão.
Romy dormia suavemente quando foi acordada pelo som de pessoas que conversavam
no pátio, debaixo da janela do seu quarto. Comentavam a felicidade que
adviria daquela união. Certamente traria benefícios aos familiares
e aos amigos mais íntimos dos noivos. Que fortuna não possuiriam...!
A noiva contorcia-se de tanto rir daquilo que havia ouvido. Ora, de que forma
o casamento dela com Karl poderia vir a beneficiar aqueles corvos? Então
não conheciam Karl Krönemberg e a família Weisengrund e seu
caráter notadamente egoísta e mesquinho? Jamais qualquer daquelas
famílias, Krönemberg ou Weisengrund, havia dividido qualquer coisa
com quem quer que fosse.
Levantou-se esbanjando bom humor. Foi ao toalete, lavou somente com água
seu delicado rosto e notou um resto de sangue no canto de sua boca e algumas
pequenas manchas vermelhas em sua camisola. Despiu-se, jogou a roupa dentro
de uma caixa - mais tarde daria o devido fim a ela - e tomou um demorado banho.
Enquanto a água escorria por sua cabeça e corpo, relembrava o
dia em que havia estado frente a frente com ela mesma, trancada no porão.
Não sentiu medo, nem tampouco culpa pelo que havia feito. Acaso deveria
ela culpar-se por buscar a liberdade?
Saiu do banho, vestiu um longo robe de veludo verde musgo e desceu novamente
até o porão, desta vez sem o livro de couro. Incrível como,
mesmo com a multidão que chegava para o casamento, conseguia movimentar-se
livremente pela casa sem que fosse percebida por ninguém. Uma vez mais
usou a chave - que havia roubado do quarto dos pais - para abrir a porta proibida
e lá entrou.
***
Em pé no mesmo lugar onde dias antes havia lido o livro, abriu os braços,
ergueu a cabeça e fechou os olhos para melhor sentir a energia que ali
pairava. Em total silêncio, chamou por sua metade. Sentaram-se no centro
do círculo formado por um fogo astral e fitaram-se no fundo dos olhos
por um longo tempo. Nenhuma palavra foi dita, nenhum gesto foi feito.
Instintivamente Romy passou para a outra tudo o que fazia parte de sua personalidade
submissa e infantil. O medo da morte, o mal estar que lhe causava o cheiro do
enxofre e o terror que lhe causavam cemitérios e roupas negras, foram
inteiramente transferidos para aquela criatura. Uma ponte de energia vermelho-sangue
formara-se dentro do círculo de fogo, estabelecendo uma ligação
entre os olhos das duas mulheres.
"A transferência foi completada, Romy. Não há mais
o que temer. Agora você está realmente livre, pode ir para onde
quiser, deixar-se levar pela brisa ou seguir o rastro deixado pelo fogo",
ouviu alguém dizer. Reconheceu aquela voz. Era Franz. Mas onde estava?
Procurou-o com o olhar por todo o salão. Mas foi somente quando permitiu-se
seguir seu coração que o encontrou, subitamente materializado
em sua frente. Estava bonito, mais do que no dia em que partira. Seus cabelos
estavam mais negros e sua pele ainda mais alva.
"Você estará lá, no meu casamento?", perguntou
a irmã, feliz em revê-lo após tantos anos de completa ausência.
"Sim", disseram os olhos dele, pedindo para que não se preocupasse.
Estaria lá. Ele, o Franz que havia partido daquela casa e pego um vapor
para a Inglaterra, renegando o sobrenome opressor. Mas aquele Franz que somente
ela era capaz de ver...não, este não estaria presente. Pelo menos
não naquele momento. Estava certo de que ninguém, nem mesmo sua
mãe, gostaria de ver como ele estava e quem ele havia se tornado. "Nunca
parti realmente, irmãzinha. Sempre vivi exatamente aqui", revelou
com suavidade na voz.
***
As duas Romy subiram para o quarto. A verdadeira, em sua forma física;
a outra, na forma de sua sombra. Passado o meio-dia, Ethel subiu ao quarto da
filha a fim de acordá-la e ajudá-la a se arrumar. Deveria estar
perfeita para a cerimônia. Deveria ser a encarnação da incontestável
pureza de corpo e alma.
O vestido de Romy era de seda branca, com aplicações de renda
e bordado com madrepérolas e fios de ouro. Sua mãe o havia encomendado
com as habilidosas freiras carmelitas de um convento da Inglaterra. Confeccionado
à mão, continha as bênçãos divinas em cada
mínimo detalhe, dissera-lhe Ethel. O véu e a grinalda pareciam
feitos de estrelas. Sob eles, os olhos acinzentados de Romy estavam mais brilhantes
do que nunca.
"Está linda, minha filha. E não se preocupe com nada. Tenho
plena convicção de que terá uma vida extremamente feliz
ao lado do homem que escolhemos para você. Karl é um gentleman,
é bonito, rico. Não há dúvidas, minha filha: eu
e seu pai não poderíamos ter feito melhor escolha". Sinceramente
emocionada e convencida de que aquele era o melhor destino que uma moça
poderia desejar, Ethel beijou o rosto da menina, em seguida deixando o quarto
a fim de encontrar seu marido e avisar-lhe que Romy estava pronta e que poderiam
seguir para a igreja.
***
Quando a carruagem puxada por dois corcéis negros parou em frente à
igreja, quem aproximou-se para receber a noiva, os pais e Joseph foi Franz,
curvando-se em reverência a cada um dos membro da família, à
medida em que desciam do veículo. A Ethel foi impossível conter
a emoção de estar em frente ao filho que já não
via há quatro anos. Chorando abraçou-o, agradecendo a todo momento
a Deus por tê-lo enviado de volta ao lar.
Max Weisengrund cumprimentou-o com um leve aceno de cabeça, fingindo
não dar maior importância a sua presença, tentando a todo
custo tratá-lo como a um estranho, embora seu coração estivesse
dilacerado e implorasse por um abraço. Joseph teve ímpetos de
pular sobre o pescoço de Franz e estrangulá-lo até à
morte. Jamais seria capaz de esquecer o sofrimento que o irmão causara
aos pais.
Franz afastou o irmão apenas com um olhar e com o sorriso meigo que
parecia nunca ter mudado. Então ofereceu a mão para que a noiva
pudesse sair da carruagem. Beijou-lhe as mãos e a testa e conduziu-a,
passando pelo cemitério, até a porta da igreja, onde a entregou
ao pai. "Nada tema", disseram seus olhos à irmã.
***
Romy jamais imaginou que ouviria aquela música sendo tocada para ela.
Ao abrirem-se as portas da igrejinha da colina, a Marcha Nupcial começou
a soar, as notas saindo do antigo órgão. De braço com o
pai, que orgulhoso não conseguia esconder o sorriso de satisfação,
caminhou impassível pelo corredor que terminava no altar. No momento
em que seu pai a entregou ao noivo, Romy fechou os olhos e, sem que ninguém
notasse, invocou a outra, que tomou o seu lugar.
O padre proferiu as palavras sagradas para que os noivos fizerem o juramento
e fossem reconhecidos perante Deus como marido e mulher. No extremo da submissão,
a outra aceitou-o perante todos. Pronto. Estava feito o que todos queriam: Romy
agora pertencia ao herdeiro Krönemberg.
Na saída da igreja, a mãe a esperava. "Filha, o amor vem
com o tempo", disse. Mais uma vez submissa às vontades e desejos
dos pais, acenou positivamente com a cabeça. Entrou com o marido na carruagem
e seguiram para a festa na propriedade Weisengrund.
Sentada ao lado de Karl, Romy retomou seu lugar naquele corpo. As mãos,
entrelaçadas com as do marido, de repente tornaram-se gélidas.
"Está com frio, meu amor?", perguntou carinhosamente Karl à
esposa. "Apenas um pouquinho", respondeu, baixando os olhos numa falsa
timidez.
Nem Karl, nem seus pais, nem Joseph ou os demais convidados haviam notado,
mas nos momentos que se seguiram à cerimônia seu vestido, que havia
sido confeccionado à mão pelas carmelitas inglesas, havia se tornado
negro. Nos braços de Karl, valsando pelo jardim, Romy pela primeira vez
o olhou nos olhos. Mas não houve tempo para que Karl se surpreendesse
ou mesmo se assustasse. O olhar daquela maravilhosa e fascinante mulher o prendia
e levava-o a fazer coisas que de forma alguma faria caso eles não estivessem
ali.
"Agora tenho tudo o que quero", murmurou Karl no ouvido da esposa.
Desnorteado, as palavras simplesmente saíam de sua boca, descontroladamente.
"O dinheiro de meu pai, a mulher que sempre desejei e dentro em breve também
a fortuna dos seus pais e irmãos".
Romy continuava a olhá-lo fixamente nos olhos. "Você precisava
ver como ele sofreu", disse à esposa, com voz de quem canta vitória.
"O veneno tomava conta de seu sangue dia a dia, sem que ele percebesse.
Ah!, como era glorioso vê-lo se contorcer de dor durante aquelas semanas,
em seu leito de morte. A morte lenta é a mais gratificante para o assassino,
Romy. Que artista não gosta de apreciar o resultado de sua obra?",
murmurava entre sorrisos.
Karl estava absolutamente sem controle sobre suas palavras ou sua mente. Nunca
havia percebido o quanto os olhos de Romy eram bonitos. Era impossível
desviar deles sua atenção. "Veja os sorrisos nos lábios
dos seus pais, minha adorada. Felizes pelo belo casamento e pelo rico dote que
receberam em troca de sua mão. Não é maravilhoso quando
todos conseguem o que tanto queriam?", continuou.
A outra então novamente tomou o lugar no corpo de Romy, valsando pelo
salão com seu vestido branco e o olhar de doce submissão. Karl
estava tão feliz com suas conquistas, conseguidas em tão pouco
tempo, que não percebeu a diferença nos modos da esposa e nem
que sua pele havia tornado a ser quente e ruborizada.
***
"Foi disso que fugi quando saí de casa, minha irmã. Conhecia
a índole de nossos pais e de nosso irmão. Sabia a história
de nossa família e como haviam conquistado, geração após
geração, o lugar que tanto prezam nessa sociedade hipócrita.
Como você, eu também não podia compactuar com a perpetuação
dessa história. E tive que sair primeiro, para no momento certo poder lhe
entregar as chaves", revelou o verdadeiro Franz, aquele que Romy conhecera
dentro do círculo de fogo.
A verdadeira Romy nada quis saber, nada perguntou. Sua alma conhecia todas
as respostas. Tinha plena consciência do que era e de que ela própria
havia escolhido seu caminho. Não se arrependia. Era bom ter uma sombra
que tomasse seu lugar quando fosse obrigada a agir conforme as normas sociais.
E era bom poder ser ela mesma quando quisesse, senhora de sua própria
vida, sem que ninguém tivesse forças para repreendê-la ou
impedi-la de fazer algo.
Repetiu o gesto de Franz ao conduzi-la até a igreja, beijando-lhe as
mãos e a testa, cuidando para sempre manter o contato dos olhos. Despediu-se
de Franz, irmão e pai, e seguiu seu caminho rumo à nova casa,
onde mais tarde as duas Romy se encontrariam com Karl.
***
Perto da hora em que o dia encontra a noite, Karl e sua esposa despediram-se
dos convidados e entraram na carruagem que os levaria até sua villa,
para a tão esperada noite de núpcias. Ao olhar aquele povo todo
sorrindo, o sogro e a sogra orgulhosos e os cunhados sorridentes, sua alma sorriu
internamente, pensando que nada poderia estar mais certo em sua vida. Faltava
pouco para que todo aquele tormento acabasse e ninguém podia imaginar
o que ainda estava por vir. Olhou para a esposa ao seu lado e por um instante
teve pena de sua inocência.
Os corcéis negros levaram o casal até a fazenda Krönemberg.
A casa estava mergulhada na mais completa escuridão. Karl pediu para
que Romy aguardasse na carruagem enquanto ele acendia um lampião na porta
de casa. Voltou e tomou Romy nos braços, carregando-a para dentro de
sua nova casa. Centenas de velas espalhadas pela escadaria e pelo assoalho acenderam-se
como que por encanto. "Deve ser uma surpresa de Joseph para a irmã",
concluiu Karl apressadamente, sem prestar maior atenção ao estranho
fenômeno.
Enquanto subia com Romy as escadas, beijava-lhe a boca e o pescoço.
Entraram no quarto, deitou-a gentilmente na cama e tirou-lhe o véu da
cabeça. Os lábios dela eram macios e doces, o corpo quente e receptivo.
Karl a beijava ardentemente, acariciava sua pele e apertava seu corpo contra
o dela que, submissa, aceitava totalmente suas carícias. Era o que sua
mãe havia-lhe ensinado. Romy, a verdadeira, assistia sorrindo àquela
cena patética.
Podia ler o pensamento de Karl: "Minha pobre e inocente menina"...
Pobre e inocente era ele. Pobre, inocente, cego e ignorante. E ela podia suportar
tudo, menos a ignorância. "Aproveite enquanto ainda pode, Karl. Em
breve sua menina inocente sairá de cena", aconselhou, mesmo sabendo
que a mente de Karl não tinha poder suficiente para alcançar a
verdade.
Karl tentava desajeitadamente desabotoar o vestido da esposa, quando Romy retornou
ao seu corpo e sedutoramente conduziu o marido ao sótão. "Preparei
este lugar para nós dois", sussurrou ela ao seu ouvido. Mas ele
também estava surdo, o desejo que nutria por Romy o impedia de ouvir
e entender o que ela dizia. Seguiu a esposa, novamente dominado por aquele olhar
cinzento, sem nada questionar.
No sótão havia velas negras por todos os lados, enfileiradas
em todas as paredes, subindo até quase o teto, como em uma escada espiralada.
No meio daquele lugar, havia um lençol de cetim negro, para onde Romy
levou o marido. Ele estava encantado, enfeitiçado. Nada percebia. Como
numa brincadeira, Romy permitiu que a outra tomasse mais uma vez seu lugar junto
a Karl.
Ao retornar a esposa, Karl percebeu, confuso, que não estavam mais em
seu quarto. Mas isso não importava. Já havia envenenado Max e
Ethel Weisengrund e quem mais bebesse das últimas garrafas do delicioso
vinho servido na festa. Àquela altura deviam estar todos mortos. Sem
herdeiros senão Romy, uma vez que todos os parentes haviam morrido tragicamente
na noite de seu casamento, em breve Karl Krönemberg seria dono da maior
fortuna da Europa. O plano perfeito: daria uma única noite de prazer
à esposa e então a assassinaria cruelmente, cortando-lhe o pescoço.
Olhou para a menina em seus braços e imaginou, enquanto a acariciava,
o final daquela história. Escaparia ileso, sem sombra de dúvidas.
As suspeitas, estava certo, recairiam sobre o estranho, sinistro e desequilibrado
Franz, que após quatro longos anos desaparecido, reaparece no dia do
casamento da irmã com o intuito de exterminar a família e ficar
com toda a herança. E ainda que desconfiassem dele...quem teria coragem
de deter alguém tão poderoso e tão mortal? Seria temido
e reverenciado por onde passasse. Teria quem quisesse e o que quisesse, sem
que para isso fosse preciso qualquer esforço. Abençoada Romy,
que havia aparecido em seu caminho.
Consumado o casamento, era chegada a hora. Olhou para a esposa: tinha os olhos
fechados e o corpo recostado em seu peito. Com uma das mãos Karl acariciou-lhe
os longos cabelos, enquanto a outra tirava de dentro de seu colete, atirado
ao lado do lençol, a adaga que usaria para completar seu plano. A esposa
nem chegou a abrir os olhos. Morreu sem ao menos soltar um gemido. Karl sentiu-se
vitorioso, poderoso, invencível.
Deitado naquele lençol, com o corpo sem vida da esposa ao seu lado,
Karl descansava. Subitamente uma música começou a invadir o ambiente.
Era um canto feminino, lamurioso, espectral. Seu instinto pedia para que ele
olhasse o vestido de noiva, repousado no assoalho, um pouco acima de sua cabeça.
Estava negro. O que seria aquilo? "Não me sinto culpado", disse
para si mesmo. Mas não adiantava, o horror não o deixava em paz.
Um círculo de fogo surgiu em volta daquele leito de núpcias e
de morte. Karl olhou para a menina morta ao seu lado. Estava desaparecendo aos
poucos, em meio a uma fumaça negra, sem deixar vestígios. À
sua frente, estava ela. Linda, pálida, gélida. Reconheceu o olhar
cinzento. Romy vestia o mesmo vestido negro com que valsara com ele pelo jardim
naquela noite.
Karl raciocinava, mas não falava. Não que não quisesse.
Não podia. Não havia voz. O poderoso Krönemberg, que havia
assassinado o próprio pai, planejado a morte dela e de toda a sua família
e dizimado da forma mais vil uma centena de convidados na festa de seu casamento,
estava sem ação, os músculos paralisados, os olhos arregalados
de horror.
Romy apenas ria. Achavam realmente que ela abandonaria todos os seus sonhos
de infância para morrer no dia do casamento que nem ao menos desejara?
Ao lado dela, Karl viu surgir o irmão. Também vestido de negro,
longos e reluzentes cabelos pretos, os mesmos olhos cinzentos e a mesma pele
pálida da irmã. Viu-os cumprimentarem-se com o beijo triplo. Karl
tremia, aterrorizado. Sem desviar os olhos de Karl, Romy inclinou seu corpo
em direção ao dele e beijou-lhe a boca. O beijo amargo da Morte
foi a última coisa que ele viu e sentiu.
***
O que aconteceu depois? Minha mente voltou a integrar meu corpo, que ainda
estava em frente ao computador, na biblioteca de meu apartamento, no princípio
do século XXI. Presenciei a história de Franz e Romy até
o momento da morte de Karl. Foi o que vi.
Agora, sentada ainda nesta cadeira, olho pela janela e vejo o mesmo céu
azul e as mesmas nuvens brancas e fofas que me transportaram para aquela viagem.
As árvores de folhas verdes e o casarão em estilo alemão
continuam no mesmo lugar, emoldurados pela minha janela.
A impressão que tenho, no entanto, é de que o casarão
não mais pertence a um rico proprietário de terras. Tampouco sinto
a presença dos irmãos naquele lugar. Percebo então minha
ignorância. Romy e Franz obviamente não estão mais lá.
Jamais quiseram estar. No intervalo que separa nossos séculos, provavelmente
viajaram o mundo e presenciaram muitas mudanças, viveram e amaram-se
intensamente. E quem pode saber agora onde estarão?