A Garganta da Serpente
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Cortejo

(Luck Siqueira)

A passos lentos o cortejo segue cemitério adentro. As roupas em tons de cinza e preto combinam com o nublado do dia. A garoa fina, de mãos dadas com o vento frio, congela a alma dos integrantes daquela triste caminhada.

Só o vento fala. Sua voz é tão aguda que parece estar chorando baixinho. O choro é o que todos têm em comum ali, alguns abraçados, outros preferem debulhar suas mágoas sozinhos, mas é como se todos tivessem feito um acordo.

Ele segue um pouco atrás. Não chora, nem lamenta. Para ele é mais um, apenas mais um. Segue na mesma passada do cortejo com a pá sobre o ombro, vez por outra olha para o esquife, com normalidade.Quantas vezes viu a tendência normal da vida ser ignorada, pais enterrando filhos, já perdeu as contas. Agora mais uma vez. Ouve sussurros, rumores de que era uma menina, novinha, novinha. O mundo continua cruel como sempre.

A garoa aperta, fazendo com que as roupas de todos fiquem deveras úmidas e mais ainda as suas, surradas, praticamente farrapos jogados no corpo. Sente a água invadir-lhe os calçados. O choro da mãe aumenta e parece que a chuva obedece a vazão de suas lágrimas.

Ele nota que a família da menina, que ele está prestes a dar descanso eterno, é muito humilde. Nota pelo esquife, muito básico. Com o tempo aprendeu a diferença entre as moradas eternas. Lamentou ter escolhido acompanhar o cortejo, pois aquela ladeira lhe cansa muito, já não tem mais a mesma jovialidade, há muito tempo. Poderia ter ido pelo outro lado do cemitério, que não há subidas tão íngremes. Seus joelhos agradeceriam.

O vento assovia. A chuva fina e o vento ensaiam uma dança com as poucas folhas das árvores que restaram do outono. O cortejo enfim chega ao local.

Os homens que levam as alças do caixão colocam-no transversalmente à cova, previamente aberta por ele pela manhã. Um dos homens deixa escapar um olhar para ele que acompanha à uma certa distância.

O pai, que parecia estar em transe, olha fixamente para onde a filha será depositada. A mãe faz um sinal discreto para o padre que, por sua vez, começa a oração, enquanto o vento bate e faz tremular os vestidos das senhoras ali presentes.

Cada palavra proferida pelo sacerdote entra como uma faca nos corações dos presentes, mesmo que a intenção fosse a de amenizar a dor. Palavras, apenas palavras, ditas ali como um texto decorado. Com certeza o vento as levaria em segundos e ninguém mais lembraria o que foi dito. Praxe, apenas praxe. Mas quem é ele para julgar as atitudes de uma família atingida pela desgraça, logo ele que nunca teve uma, nunca ouviu uma palavra sequer de carinho. A dureza da vida lhe ensinara apenas a jogar pás de terra sobre caixões e enterrar junto com eles os momentos de felicidade que um dia tiveram.

Absorto em pensamentos, não se deu por conta que o sacerdote já terminara a oração. O silencio agora imperava. Após alguns minutos de absoluta inércia, o caixão é depositado no fundo da cova. Todos se aproximam para uma última olhada. A primeira flor é jogada, pela mãe. Em seguida, segue-se uma chuva de flores, lançadas pelos demais integrantes da infeliz jornada.

Ele que estava encharcado, encurvado, apoiado na pá carcomida pelo uso, percebeu uma vez mais o olhar do irmão mais velho, dessa vez como se dissesse: Acabe logo com isso.

Utilizando a pá como uma espécie de bengala foi se aproximando da porção de terra úmida ao lado da cova.

A primeira pá de terra foi jogada e com ela o martelo da realidade bateu sem dó nas cabeças daqueles que ainda não estavam crendo na verdade. Os olhos daqueles que ora apenas marejavam, agora deixavam as lágrimas escorrer rosto abaixo, mesclando-se com a chuva que aumentava.

O cortejo agora vai ladeira abaixo, sem esquife, sem flores, cadenciando o passo, afastando-se cada vez mais da morada eterna da menina.

Ele, entre uma pá e outra de terra, observa o movimento da monocromia do preto ao cinza, parecendo uma nuvem carregada, devido ao embaçamento de suas vistas, distanciando-se. Apoiou-se na velha pá. Suas costas já não suportam. O vento ainda corta como uma navalha e a chuva já não é mais uma simples garoa fina. Respira fundo e continua sua sina até que não tenha mais forças para isso e com apenas a certeza de que quando for a sua vez não terá um cortejo.

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