Não tivesse eu a consciência incansável a acusar-me sem
trégua e nenhum exílio seria tão terrível, nenhuma
sentença severa em demasia. Acorrenta-me mais o arrependimento pungente
do que os grilhões que me prendem à pedra nua. Desnecessários,
aliás, pois meu cárcere eu trago edificado no coração,
não há rota de fuga possível.
Certamente são graves os meus crimes. Piores ainda por atingirem o ser
mais digno de amor e honradez em que já pus os olhos. Razão teria
em chamar-me monstro, o mal que lhe causei ainda se estampa na face. Recordo
a vileza com que lhe traí os sentimentos e a confiança e sinto
arrepios.
Abri as feridas mais profundas, provoquei dores atrozes. Conspurquei-lhe corpo
e alma, envenenei-lhe os sonhos e a língua, destruí as certezas
e referências. Fui a causa do vinco de amargura que lhe anuvia os olhos,
do ceticismo cinza e estéril que lhe turva as palavras e os sentidos.
Revejo incessantemente suas lágrimas abundantes, transbordando vergonha
e mágoa. Presenciei sua agonia e o choque foi suficiente para despertar-me
do torpe torpor em que mergulhara. Atingiu-me desespero fulminante, não
entendia como pudera cair tanto. Sufoquei de culpa, cambaleei ante a força
do amor que me invadiu. Mas então era muito tarde, não havia mais
volta.
A pena que me coube foi o degredo e, no cimo da montanha, expio meus pecados.
Meu libelo, repetido continuamente pelo meu algoz, ecoa em meus ouvidos, inflingindo-me
tortura impiedosa, causticante. Apenas experimento alguns momentos de alívio
quando o abutre - bendito - vem bicar-me o fígado, todos os dias.