A Garganta da Serpente
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Prometeu

(Lívia Santana)

Não tivesse eu a consciência incansável a acusar-me sem trégua e nenhum exílio seria tão terrível, nenhuma sentença severa em demasia. Acorrenta-me mais o arrependimento pungente do que os grilhões que me prendem à pedra nua. Desnecessários, aliás, pois meu cárcere eu trago edificado no coração, não há rota de fuga possível.

Certamente são graves os meus crimes. Piores ainda por atingirem o ser mais digno de amor e honradez em que já pus os olhos. Razão teria em chamar-me monstro, o mal que lhe causei ainda se estampa na face. Recordo a vileza com que lhe traí os sentimentos e a confiança e sinto arrepios.

Abri as feridas mais profundas, provoquei dores atrozes. Conspurquei-lhe corpo e alma, envenenei-lhe os sonhos e a língua, destruí as certezas e referências. Fui a causa do vinco de amargura que lhe anuvia os olhos, do ceticismo cinza e estéril que lhe turva as palavras e os sentidos.

Revejo incessantemente suas lágrimas abundantes, transbordando vergonha e mágoa. Presenciei sua agonia e o choque foi suficiente para despertar-me do torpe torpor em que mergulhara. Atingiu-me desespero fulminante, não entendia como pudera cair tanto. Sufoquei de culpa, cambaleei ante a força do amor que me invadiu. Mas então era muito tarde, não havia mais volta.

A pena que me coube foi o degredo e, no cimo da montanha, expio meus pecados. Meu libelo, repetido continuamente pelo meu algoz, ecoa em meus ouvidos, inflingindo-me tortura impiedosa, causticante. Apenas experimento alguns momentos de alívio quando o abutre - bendito - vem bicar-me o fígado, todos os dias.

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