A Garganta da Serpente
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A sola

(Lívia Santana)

Ulisses atravessou a rua correndo esbaforido e escapou por um triz de ser atropelado pelo ônibus que passava em alta velocidade. Chegando à calçada, tropeçou, perdeu o equilíbrio e caiu no chão, indo parar entre os pés dos transeuntes apressados, com um esfolado ardido na palma da mão direita. "Droga!". Sob os olhares de estranheza de alguns passantes que pararam para vê-lo caído - como tem gente que gosta de apreciar os tombos alheios, impressionante! - ele se pôs rapidamente de pé e continuou a corrida, olhando febril para todos os lados e principalmente para o chão, como se tivesse perdido alguma coisa.

Nesse ritmo trombou numa senhora e derrubou os livros de uma garota, mas nem assim se deteve, pensando exasperado: "Por que é que tem tanta mulher nessa calçada?". Andou naquele passou louco por mais três quarteirões, quando finalmente parou e sorriu, aparentando ter encontrado o que estava procurando. Respirando fundo várias vezes, ele cuidou que o coração não saltasse do peito pela boca, da corrida e da emoção. Os olhos brilhavam, dir-se-ia ter ele achado um tesouro. E era mesmo um tesouro, algo único, precioso!

Deu alguns passos vacilantes e ficou olhando com ternura para ele. Lá estava, um pouco à frente, absolutamente lindo e perfeito. Magro, daquele jeito que deixa ver as articulações sob a pele, bronzeado, delicado, bem cuidado. Daquele tipo que dava vontade de tocar. Ulisses tinha a certeza de que seria suave e quente ao toque e que teria um perfume especial e discreto. Mal podia conter o impulso de acariciá-lo, beijá-lo, mordê-lo! Sentia a boca seca de vontade de massagear-lhe o peito e lamber-lhe os dedos um a um, com lascívia. Estremecia só em pensar, antecipava o prazer sublime. Temia não merecê-lo - ele era tão maravilhoso! - mas nada o impediria de tentar.

Apressou o passo, era agora ou nunca. Mas estacou, sentindo o coração parar e ficou olhando, assombrado. "A sola... Ah não, a sola eu não aguento... Assim ela me mata!..."

A moça que Ulisses seguia encostou-se numa parede, tirou a sandália e levantou o pé esquerdo a fim de arrumar a correntinha prateada que pendia do tornozelo. Tinha longos cabelos negros, silhueta longilínea, traços harmônicos. Era muito bonita, mas Ulisses não vira isso. Ele apenas tinha visto os pés pequenos e delgados, que apareciam sob a saia branca longa que ela usava. Era o pé mais lindo que ele já vira e a paixão fora instantânea. Só não estava preparado para ver a sola assim, no primeiro encontro.

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