A Garganta da Serpente
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Engenho de almas

(Leonardo Teixeira)

Pois foi num novembro friorento, mês de muitas frutas, que teve o derradeiro dia do levantamento completo do engenho, trabalho de muito prazo e igual esforço. A cana-caiana, doce como favo de mel das jataís, estava rachando talo maduro e largo, em boa parte da plantação. Um pequeno roçado de milho graúdo, de grão dourado, já pendia pardas espigas caídas e secas. Sô Druvaldo tinha feito metade da quebra, era a vez de picar a cana, deixando o broto e cortando a ponta pro seguimento. Mas, Sô Druvaldo, que tinha as graças com o Senhor Patrão, apesar de ser experiente em lida, forte qual touro, da pele crioula, das mais tostadas e aguentadoras de robusto arrocho, deixou a tarefa de picar a cana pro Zequinha, filho do finado Severino e da finada Maria das Dô, queimados num acidente na carvoaria. Sô Druvaldo tinha ajeitado um paiol pro Zequinha e intermediava com o Senhor Patrão que o menino queria ser bagaceiro no novo engenho. Por certo que tinha pouca altura, mas não miserava suor e nem negava garrar o pesado. Já tinha acostumado a desleitar vacas, bater pastos, caprichar no aceiro, limpar roçado, só não podia levantar cerca sozinho. A ideia era boa. Zequinha picaria a cana e dava um prazo pro Sô Druvaldo visitar uma irmã no rancho do Pega-Seriema, que tinha parido com muito custo um sobrinho rebento. O menino Zequinha era de sangue mestiço, da pele de barro, franzino das canelas secas, mais finas que o talo de cana, com as costelas apontando a esqueletura. Tinha o costume de andar descalço, com uma bermuda marrom, já encardida, quase camuflando nas paredes de adobe. Sô Druvaldo era um dos poucos que se importava com Zequinha, e se não fosse ele, capaz do menino viver perdido nesse mundão, ou até largar ossada num oco qualquer. Foi lá o Zequinha picar a cana e atou com as folhas uns amarrilhos para transportar nas costas. Carregou a cana cortada durante toda a tarde. Ele já era íntimo do canavial, sabia se esconder e avistar algum perigo. Aquelas folhas que provocavam braba coceira em novato já não faziam efeito no Zequinha. Mas o danado, mesmo esperto, conseguia até pegar coelho, não viu lá a ferroada no pé. Só deu prazo de sentir a picada. Imaginou um espinho de laranjeira, mas a dor era bem pior. Quando percebeu os dois furos pingando as gotas vermelhas já ficou preocupado. Afastou a macega de palhas e brotos no chão e viu a jararaca se enrolar lisa, campeando nova sombra, nitidamente perturbada com o importuno que a despertara, esmagada pelo peso do pé. Depois, tornou-se a frontear ameaçadora, com as pupilas verticalmente rajadas em cólera maligna, a língua de forquilha a bambear freneticamente. Zequinha saltou de fasto e aos choros topou o Sô Druvaldo no trieiro, percorrendo a volta. Sô Druvaldo desatou um amarrilho e fez um torniquete no tornozelo e no peito do pé, estancando o prurido com um chumaço de palha. Chegando na casa do monjolo, apertou uma pedra pomar ?????? e juntou uma gema de ágata, esperando sugar o veneno. Saiu lá uma mancha oleosa, esbranquiçada e um tanto quanto verdolenta, grudada na pedra. O menino ganhou um mocassim velho, pôs um calço de palha pra disfarçar o tamanho maior e saiu correndo. Atravessou o galpão, onde eram guardados algumas selas, cangalhas, baixeiros, sacas de milho e sementes de braquiara e jaraguá. Alcançou a mata íntima, companheira e traiçoeira ao mesmo tempo, com seus perigos de morte e ferida, que chegam sempre num rompante inesperado. Sô Druvaldo perdeu nas vistas a correria do menino e cuidou de empilhar as canas para a moagem.

Sô Druvaldo tinha tento pro menino. Teve que cortar na raiz a querência de Zequinha com o estudo. Afinal, se deixasse o menino frequentar a escola, teria um desfalque na lida. Alguém tinha que estender os braços na labuta pra tirar o sustento. Deixar o menino no paiol e tratar o de comer é uma dívida que Zequinha pagava na lavração. Não dava pra permitir que o menino enchesse a cabeça com outras coisas e sonhos. Se tinha pernas pra campear trabalho, braços pra cumprir tarefa, mãos para segurar o empenho, para quê queria a cabeça desviadeira de caminho? Sô Druvaldo sabia que o menino voltaria a seguir com o cumprimento da dívida. Mesmo assim, começou a se preocupar com a altura daquelas horas e nenhum barulho ciscando o paiol. Já tinha checado pelas frestas das ripas com o candieiro três vezes. Decidiu então procurar o menino. Sô Druvaldo, preto de carvão, saiu no meio daquela treva escura, só riscando o breu com o fogo pendente do candieiro, fagulhando um ouro medonho com coisa de outro mundo. Vicente, um camarada sulista, de couro e olho branquiazuis, era quem fincara o pé sem convite por ali, mas acabou sendo agregado do Senhor Patrão, também era quem mais fechava o semblante pro Sô Druvaldo, como se branco e preto jamais pudessem se misturar, cada um no seu lugar, afinal, a vida não é tal e qual um tabuleiro. Sô Druvaldo não se importava com o jeito carrancudo de Vicente, o tomador de chimarrão. Já estava no sangue familiar de Sô Druvaldo, desde a origem escravista e as formações de currutelas com os quilombos. "Esse povo pintado com cor da noite se gaba de andar solto por aí. Veigonhoso. U'a reiva!", dizia o velho Vicente. Sô Druvaldo se diluía na noite escura, pouco se via o amarelo dos olhos; não fosse o candieiro, Sô Druvaldo virava uma sombra. Arriscou uma espichada de olho no mato, mas resolveu voltar quando a vista reconheceu um esterco novo de jaguatirica. Dia seguinte, já no fim da tarde, o menino Zequinha apontou lá no morro, mancando torto. Sô Druvaldo aguardou o menino chegar perto:

- Qué rechear a boca de formiga, molecote? Pois não queria ser bagaceiro? Ligeiro pro engenho que a labuta não espera a sua lerdeza!

Zequinha pendeu pro engenho sem revolta. Ficaria encarregado de tratar com o Ceará, um camarada nordestino, desses andeiros que volta e meia mergulham nas estradas nômades, garimpando lugar diferente para desamoitar uma vida melhor. É fácil acertar o seu naipe. Embora longe da meia idade, já cultiva marcas do tempo, pés de galinha, buracos e cicatrizes de uma dura caminhada. Corpo franzino, magro e ossudo, tal e qual a serra calorenta de onde veio. O ventre crescido revelando um bucho saliente, abastecido por águas salobras, possivelmente uma antiga barriga d'água, no mais é a certeza de gerar e colecionar alguns vermes insistentes em permanecer gerações a fio. A corcunda curva de anzol é a postura indisciplinada, a enxada precoce e o olho procurando calango ou outra carne rasteira. Pode ser o peso da enorme cabeça que nenhum chapéu consegue encaixar. Por isso as emendas de couro e as abas curtas. Mãos calejadas com perfurações velhas de descascar cactos. Pernas finas como seriemas, olhos fundos de pouco sono, lábios queimados e desidratados, judiados pelo sol. Os pés já pisaram tantos chãos extintos, tentando fazer roça numa área enxuta, que mal vinga espinho ou planta brava. Paisagem de pedra e areia, não servem nem para imaginar num deserto de uma ampulheta. As roupas pardas, porque a terra embaralha os tecidos e o suor cozinha as cores a vapor. A pele acompanha a sina dos tecidos. Na capanga, possivelmente um pedaço de rapadura e farinha, embrulhadas num pano sujo. Vez por outra um sorriso de alegria, arrancada por milagre, revela um parcial e banguelo jeito de rir em disparada, assim como o falatório apressado escolhendo a verve nordestina:

- Oxente, se avexe não minino. Cá adianti, se arribe aqui, c'o vô mostrar uma coisa pra tu!

Sô Druvaldo deixou tudo recomendado e Zequinha seria o bagaceiro do alimentador de cana: o próprio Ceará. O menino viu um tacho de melado quase dando ponto pra rapadura. Tuneco, um rapaz novo, que diziam ser bastardo do Senhor Patrão com a finada Tereza lavadeira, ficava em pé açoitando com um relho dois bois que rodeavam a moenda. Ali ajoujados, com a canga apertada, as brochas dos canzis devidamente abotoadas, circulavam já acostumados, girando o braço, puxando a almanjarra, torcendo a moenda, estralando os mancos de madeira, verdadeiras engrenagens rústicas, cantando a madeira velha da aroeira, com o aparador assoalhado de jatobá tinindo. O Ceará alimentava as canas na moenda e o menino puxaria o bagaço do outro lado, voltando pro Ceará passar outra vez, mode não desperdiçar garapa em trapo de bagaço. Pro menino não tinha tanto risco, só não abobar no tempo, senão leva os gomos do bagaço direto no rosto. As mãos de Zequinha, caso encostassem nos mancos da junta ou no próprio rolo levariam uma pancada repelidora, que o reflexo ajudaria a recolher. Deveria esperar o bagaço apontar pra fora e só depois puxá-los. De fato largaram já de noite a moagem. Os bois já exaustos, com a língua para fora caminhavam pro curral lentamente. Nem sequer evitavam passar na saroba apinhada de carrapatos. Eram tantas as voltas diárias que um contorno a mais seria impossível. A liberdade momentânea os forçava a caminhar em reta estreita. Em linha reta caminhou Zequinha com o pé ainda latejando a ferida da cobra. Engoliu a rapadura que o Ceará havia lhe dado e dormiu pesado.

Ceará perambulou por muito tempo em estradas que não conhecia; de currutelas a vilas, era só morte que via. Andava no seu próprio cortejo, a cada passo uma cova de gia. Viu logo que ser retirante envelhecia, tratou de interromper os caminhos que percorria. Agora não há mais jeito de voltar a caminhar, a dívida de fato o prendia. Labuta não se desfazia, porque outras nem sempre havia. Maria era sua mulher, de origem que bem conhecia. Afinal, partilhavam de mesma sina, de ser caminheiro sem trilha. De fome e sede se acabavam um pouco por dia. Garimpava roçados amarelentos, cujos frutos jamais colheria. Finalmente afastaram da seca daquela terra nordestina. E agora enraizaram nesse barro, que nem um vaso de esperança produzia. Ceará tem cinco filhos, todos de sua cria. Todos paridos pela Maria. Um cuida dos bois, dois picam a cana, as três meninas estão na carvoaria. Casal do sertão tem mesmo essa mania. Mania de cada ano gerar uma cria. Fábrica de crianças, engenho de almas pra vida. É muita gente pra pouca comida. Mesmo assim, socializam a partilha. É pouca gente pra rachar tanto serviço, trabalho que jamais cessaria. Mesmo que se fizesse longa empreitada com todos que conhecia. Todo ano a mesma angústia da gravidez: passar noites e noites que não se dormia. O choro a estrelejar o barulho infantil de dor, de frio que de longe se ouvia. Tinha que se conter com o leite aguado do peito da Maria. Era mais pano de urina, menos sono que tinha. Passavam anos e o moleque pouco crescia. E vinha lá notícia de nova cria. Ê miséria que tinha, resignação sem fim; ê vida que judia! Agora Ceará era encarregado do bagaceiro Zequinha: servir deveria!

Um tiro furou o silêncio à bala. Os berros do Senhor Patrão ecoaram a ira, chacoalhando a mansidão daquela madrugada. Não dava pra saber se era a fúria costumeira e azeda daquele jeitão de ser, ou se tinha algumas doses a mais de pinga. Certo é que nessas horas nenhum cansaço conseguia manter o corpo deitado. Só se via os candieiros e lamparinas alumiando em desvairado zigue-zague de um repentino e assustado despertar. Topadas pelas portas, escorregões no chão e até corridas desenfreadas rumo ao engenho.

- O engenho tá parado, seus mandruvá! Sai da lama, seus porco roncador imundo! Faz valer a farinha que come! Eu vou é vestir uma camisa de terra nos atrasado. Quer ver só? Hã, hã!

A rudeza é por certo um jeito áspero e costumeiro de se tratar nessas bandas mais cá escondidas. Pois não havera de ser um fato diferente por ali. Com pouco entendimento percebe-se que a lei tinha letra diversa naquele canto de mundo esquecido. Na lavoura, os instrumentos eram cobrados, não os olhos, mas a cara inteira do indivíduo. Quase não se pagava os aluguéis e as estadias naqueles casebres sem recursos. Os juros acabavam galopando nos armazéns. Praticamente pagava para trabalhar, o indigente, sempre preso às eternas dívidas nesse mundo barrento, de curtas rédeas e pontudo ferrão. As coisas funcionavam aos gritos e ao respeito baseado no medo da hierarquia politiqueira. O apego pela terra se justificava pelo sonho de voar. Ao resignado lavrador não era dado o dom de sonhar, muito menos em altura livre. Almejar um suspiro por uma terra própria é luxo que não se tem acesso. O pé devia ficar colado ao chão. Com muito custo abraçaria seu pedaço de terra, numa cova rasa de palmo e meio, que esforço não compensava nem um fundo cavoucado, pro resto maltrapilho do miserento. Aos retirantes que se achegam naquelas terras na querência de um trabalho, uma água, ou um simples favor, acabava vendo o fim de seus passos peregrinos. Contrair dívida ou dever favor é laço e coleira, é cela escraveira, durante a vida inteira.

De fato o corre-corre apressado cantou o engenho alto como nunca. O braço estralando e rodando, os bois, ainda abobados por aquela pressa e hora antes do sol, circulavam apunhalados pelos ferrões do Tuneco, o rapaz bastardo. Só o fogo fraco e mixuruca do lampião brilhava as sombras naquele engenho construído na taipa de supapo, técnica velha do Sô Druvaldo, meio desajeitada e sem capricho, "serviço de preto", conforme dizia o velho Vicente. Tuneco não tinha diferença de trato, era mosca igual aos outros. Pro Senhor Patrão era tudo bicho do mato, a ser tratado no arrocho, sem alisar a cabeça, porque coisa selvagem se dá um toco de carne e lhe arranca logo um braço, solta pra fazer um agrado e estragava a roça, acabando com as crias. Por isso, aquela regulagem na madrugada de susto era uma constância. Quem é novo não viu as ferramentas que ainda ficam guardadas no galpão. É grilhão, gargantilha, viramundo... Fugitivo era no libanho. Quem é novo não viu uma coisa dessas. Mas ainda está lá pra quem quiser ver. Faz uma diferença na regulagem do povo! O Zequinha, o Tuneco e os filhos do Ceará têm sorte de não conhecerem na pele essas tranqueiras.

Já tinha dado uma terceira mão de tacho do caldo grosso. Outro melado estava no ponto ao meio-dia. Os recursos do Senhor Patrão iam se acabando e vinha lá nova regulagem de susto na madrugada. Rapadura, garapa, açúcar, melado. Tinha também além da carvoaria, uma fornalha no engenho, que o Tuneco fazia alguns tijolos e aproveitava a cerâmica. De porta larga, quase passava um boi, a fornalha esquentava ainda mais aquele calor dos dias no sertão. Tudo o Senhor Patrão vendia no mercadinho lá no vilarejo, inclusive a cerâmica. O Tuneco tinha o modo do Senhor Patrão: a caminhada forte, a engasgada na garganta, a piscadela em tremelique vez por outra e até o tipo de ficar parado. Nem por isso o Senhor Patrão lhe dava um agrado. Talvez o povo tenha acolhido o espúrio como um dos seus por pena mesmo. A mãe dele também faleceu queimada num acidente na carvoaria. A carvoaria vivia acidentando gente. Curiosa coincidência os queimados serem desafetos ou de desagrado do Senhor Patrão. Outro fogo que direto acendia era tocado em palavra do Vicente no ouvido do Senhor Patrão contra a figura do Sô Druvaldo. "Nego lerdo que escora no Zequinha. Preto safado que foge do trabalho qual o diabo da cruz!" E assim o Senhor Patrão foi perdendo as graças com o Sô Druvaldo. O camarada já foi constrangido na primeira perambulada.

- Hora braba dessa e ocê desafogado sôrto por aí na saroba! Circulando quar reindimunho e o povo labutando arrochado! Faísso não, faç'avor Sô Druvaldo. Ansim eu desgosto incrinado pra sua banda! Vai enfornar a rapadura no engenho!

O velho Vicente ficou encabulado e achou que não tinha cabimento o Senhor Patrão tratar com jeito aquele "preto lerdo". Tomou uma ojeriza danada de tudo que é preto. Sobrou até pra noite, coitada, as desavenças e as palavras ríspidas de um total descrédito. Perdeu a magia da lua e das estrelas, a noite serena dos grilos, sapos e corujas, ficaram sem graça as mágoas dos violeiros. Vicente ranzinza engolia bravo os ares noturnos e azedava a feição pro mundo. Foi nesse intervalo que articulou um plano infalível de acabar com o problema de ainda ver a figura escura do Sô Druvaldo. "Vai acabar tostado, qual o irmão do tipo queimado: o famoso carvão assado! A morte vai lhe dar asa, que aquele preto lá não serve nem de brasa! Nem trabalho de ir na carvoaria eu tenho, aquele nego vai apagar na chama acesa da fornalha do engenho! Não demora acabar com aquela vida de atraso, merece ser queimado e muito bem passado! Crioulo manso daquele nem se deve dar o trabalho de enterrar; só se enterra semente pra vingar, e aquele preto sujo não serve nem de adubo; ali é caboclo torto que não endireita, é semente que não rende jamais uma colheita! Terás um destino novo, envolverás todo numa coberta de fogo. Fugirás finalmente deste estranho nicho, nego manso será jogado no lixo. Cabra pintado de sombra, ficará finalmente acabado, ali jaz Sô Druvaldo incinerado! Abraça esse fogo e se envolve qual mulher querida, aquece o teu corpo que o final te chama, vai com gosto e te abriga, que essa chama é o último calor que sentirás em vida! Pra sua pessoa não gasto nem uma bala de um tiro, serás de fogo o seu derradeiro suspiro! Pra sua vida pobre não merece nem um esforço de faca, e da sua cor quero ver só a derradeira fumaça! Agora basta. Vai arder no fogo pra acabar com a sua raça, e pra ter certeza de seu passamento atearei cachaça! Já que não posso te usar o libanho, pra não fugir será de pinga o último banho! Nesse grande corpo assado, ficarás empalhado, até que o fogo lhe consuma bem tostado, e pra não ter de ouvir a súplica demente do teu grito, será mesmo rápido o atrito do teu osso frito! Que o fogo lhe bem cinja, e não deixe nem o trabalho de remover tua cinza! Que lhe baste um simples empurrão para findar seus passos nesse chão! Sairás desse paiol indecente, serás livre eternamente depois de lhe cobrir com a centelha incandescente. E que a cinza lhe clareie a negrura, para amenizar tua horrível figura!"

De fato o velho Vicente estava tomado de ódio, um tipo de amor ao contrário, desejando a morte, um tipo de vida ao contrário. E o engenho, no final da tarde já estava lotado de rapadura feita anteriormente e um tachão preparado indo pra fornalha dar ponto na garapa. O Senhor Patrão ali na supervisão de regulagem. O velho Vicente chegou por ali mode assuntar o movimento, fingindo alisar um cabo pra fazer uma enxada. Ceará alimentava a moenda com a cana e o Zequinha tirando o bagaço do outro lado. Tuneco ferrava o boi fronteiro que estava visivelmente desgastado, apesar do vigor com que puxava e girava o braço, o boi de trás, no ajoujo seguia os contornos. A madeira estralava e cantava. O Senhor Patrão enxergava cifras no caldo da caiana, num pisar ligeiro dos bois, no canto estrelejado da madeira, no fogo vermelho da fornalha rendendo um tacho daquele e uma cerâmica lá no fundo. Sô Druvaldo carregou o tacho e com ajuda do Tuneco de apoio, ajeitou ali na fornalha. Aquele fogo acendeu as chamas no brilho do olhar do velho Vicente. Os olhos azuis ficaram amarelos e vermelhos com a oportunidade do plano em prática. Já não importavam as consequências. Havia um mistério nas chamas que lhe puxava o incentivo. Era só um empurrão. O velho Vicente andou de fininho igual garça pescando lambaris. O Senhor Patrão só vendo notas naquele cabo de enxada. Foi então que começou a disparar como uma onça que aproxima matreira e espicha rápido pro bote. Era só um empurrão! "E que a cinza lhe clareie a negrura, para amenizar tua horrível figura!" Era tarde demais, já estava tomado pelo contrário do amor. Não havia freio que segurasse a corrida do velho. Uma cabacinha cheia de pinga na mão, com a boca aberta e quebrada pronta no gatilho. Ceará deixou cair uma tala gorda da caiana e Sô Druvaldo abaixou pra apanhar. Acabou que na abaixada o Sô Druvaldo de alvo passou a toco tropicão. O velho Vicente bateu as canelas no Sô Druvaldo e mergulhou de cheio naquele fogo. A cabaça despejou a pinga em cima do Vicente. Ah! Que gritos eram aqueles!? O velho ainda saiu incandescente, do umbigo pra cima estava todo tomado pelo fogo. E partiu desfigurado - a tocha humana -, rumo ao Sô Druvaldo para lhe dar uma abraço de chamas. Nesse exato momento, um zangão preto, daqueles besourudos injetou o ferrão bem na virilha do boi fronteiro. O bicho ficou danado, acertou um coice na fuça do outro boi. Os dois espicharam carreira e a almanjarra empurrou o velho Vicente pro miolo da moenda. O braço girou qual maquinário de usina. Nunca se viu tanta carreira, tanta pressa. O Senhor Patrão, ao ver o velho na moenda estragando uma tacha de melado, viu as notas fugindo e segurou o pé do Vicente. Mas, qual força nunca se viu que o engenho triturou o velho Vicente e engoliu o Senhor Patrão, esmagando e quebrando os ossos. Os dois saíram do outro lado finos e quebrados, torcidos e molhados, deixando um bagaço que Zequinha jamais poderia tirar. O tacho ficou colorido tal qual o pôr-do-sol, o dourado do melado e o vermelho em desproposita pintura. O sol foi a joia e a gema do oriente que Zequinha, Ceará, Tuneco e Sô Druvaldo correram em direção, fugindo do arrocho. Os bois arrebentaram o braço e seguiram sua linha reta, em revoada livre. A almanjarra ficou retida num arame farpado arrebentado. Tuneco, que seria o único descendente conhecido do Senhor Patrão, deixou partilhar a herança com aquele povo, e foi buscar uma moça casamenteira noutro lugar. A fazenda foi vendida sem contar o infortúnio da moenda. Ceará, Maria e os filhos seguiram pro sul, montando um negócio num vale repleto de água doce. Sô Druvaldo comprou terra no beira-mar e montou pouso pra turista. Zequinha acompanhou Sô Druvaldo, depois foi trabalhar com Ceará, mas juntou montante pra se manter sozinho, voando livre pelas ruas, fazendo seu caminho. E assim, aquela terra que era um engenho de almas, fábrica de meninos para a vivência, tornou-se a fazenda Engenho de Almas, de enorme querência sentida; uma moenda da morte e uma revoada em liberdade para a vida.

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