Pois foi num novembro friorento, mês de muitas frutas, que teve o derradeiro
dia do levantamento completo do engenho, trabalho de muito prazo e igual esforço.
A cana-caiana, doce como favo de mel das jataís, estava rachando talo
maduro e largo, em boa parte da plantação. Um pequeno roçado
de milho graúdo, de grão dourado, já pendia pardas espigas
caídas e secas. Sô Druvaldo tinha feito metade da quebra, era a
vez de picar a cana, deixando o broto e cortando a ponta pro seguimento. Mas,
Sô Druvaldo, que tinha as graças com o Senhor Patrão, apesar
de ser experiente em lida, forte qual touro, da pele crioula, das mais tostadas
e aguentadoras de robusto arrocho, deixou a tarefa de picar a cana pro
Zequinha, filho do finado Severino e da finada Maria das Dô, queimados
num acidente na carvoaria. Sô Druvaldo tinha ajeitado um paiol pro Zequinha
e intermediava com o Senhor Patrão que o menino queria ser bagaceiro
no novo engenho. Por certo que tinha pouca altura, mas não miserava suor
e nem negava garrar o pesado. Já tinha acostumado a desleitar vacas,
bater pastos, caprichar no aceiro, limpar roçado, só não
podia levantar cerca sozinho. A ideia era boa. Zequinha picaria a cana
e dava um prazo pro Sô Druvaldo visitar uma irmã no rancho do Pega-Seriema,
que tinha parido com muito custo um sobrinho rebento. O menino Zequinha era
de sangue mestiço, da pele de barro, franzino das canelas secas, mais
finas que o talo de cana, com as costelas apontando a esqueletura. Tinha o costume
de andar descalço, com uma bermuda marrom, já encardida, quase
camuflando nas paredes de adobe. Sô Druvaldo era um dos poucos que se
importava com Zequinha, e se não fosse ele, capaz do menino viver perdido
nesse mundão, ou até largar ossada num oco qualquer. Foi lá
o Zequinha picar a cana e atou com as folhas uns amarrilhos para transportar
nas costas. Carregou a cana cortada durante toda a tarde. Ele já era
íntimo do canavial, sabia se esconder e avistar algum perigo. Aquelas
folhas que provocavam braba coceira em novato já não faziam efeito
no Zequinha. Mas o danado, mesmo esperto, conseguia até pegar coelho,
não viu lá a ferroada no pé. Só deu prazo de sentir
a picada. Imaginou um espinho de laranjeira, mas a dor era bem pior. Quando
percebeu os dois furos pingando as gotas vermelhas já ficou preocupado.
Afastou a macega de palhas e brotos no chão e viu a jararaca se enrolar
lisa, campeando nova sombra, nitidamente perturbada com o importuno que a despertara,
esmagada pelo peso do pé. Depois, tornou-se a frontear ameaçadora,
com as pupilas verticalmente rajadas em cólera maligna, a língua
de forquilha a bambear freneticamente. Zequinha saltou de fasto e aos choros
topou o Sô Druvaldo no trieiro, percorrendo a volta. Sô Druvaldo
desatou um amarrilho e fez um torniquete no tornozelo e no peito do pé,
estancando o prurido com um chumaço de palha. Chegando na casa do monjolo,
apertou uma pedra pomar ?????? e juntou uma gema de ágata, esperando
sugar o veneno. Saiu lá uma mancha oleosa, esbranquiçada e um
tanto quanto verdolenta, grudada na pedra. O menino ganhou um mocassim velho,
pôs um calço de palha pra disfarçar o tamanho maior e saiu
correndo. Atravessou o galpão, onde eram guardados algumas selas, cangalhas,
baixeiros, sacas de milho e sementes de braquiara e jaraguá. Alcançou
a mata íntima, companheira e traiçoeira ao mesmo tempo, com seus
perigos de morte e ferida, que chegam sempre num rompante inesperado. Sô
Druvaldo perdeu nas vistas a correria do menino e cuidou de empilhar as canas
para a moagem.
Sô Druvaldo tinha tento pro menino. Teve que cortar na raiz a querência
de Zequinha com o estudo. Afinal, se deixasse o menino frequentar a escola,
teria um desfalque na lida. Alguém tinha que estender os braços
na labuta pra tirar o sustento. Deixar o menino no paiol e tratar o de comer
é uma dívida que Zequinha pagava na lavração. Não
dava pra permitir que o menino enchesse a cabeça com outras coisas e
sonhos. Se tinha pernas pra campear trabalho, braços pra cumprir tarefa,
mãos para segurar o empenho, para quê queria a cabeça desviadeira
de caminho? Sô Druvaldo sabia que o menino voltaria a seguir com o cumprimento
da dívida. Mesmo assim, começou a se preocupar com a altura daquelas
horas e nenhum barulho ciscando o paiol. Já tinha checado pelas frestas
das ripas com o candieiro três vezes. Decidiu então procurar o
menino. Sô Druvaldo, preto de carvão, saiu no meio daquela treva
escura, só riscando o breu com o fogo pendente do candieiro, fagulhando
um ouro medonho com coisa de outro mundo. Vicente, um camarada sulista, de couro
e olho branquiazuis, era quem fincara o pé sem convite por ali, mas acabou
sendo agregado do Senhor Patrão, também era quem mais fechava
o semblante pro Sô Druvaldo, como se branco e preto jamais pudessem se
misturar, cada um no seu lugar, afinal, a vida não é tal e qual
um tabuleiro. Sô Druvaldo não se importava com o jeito carrancudo
de Vicente, o tomador de chimarrão. Já estava no sangue familiar
de Sô Druvaldo, desde a origem escravista e as formações
de currutelas com os quilombos. "Esse povo pintado com cor da noite se
gaba de andar solto por aí. Veigonhoso. U'a reiva!", dizia o velho
Vicente. Sô Druvaldo se diluía na noite escura, pouco se via o
amarelo dos olhos; não fosse o candieiro, Sô Druvaldo virava uma
sombra. Arriscou uma espichada de olho no mato, mas resolveu voltar quando a
vista reconheceu um esterco novo de jaguatirica. Dia seguinte, já no
fim da tarde, o menino Zequinha apontou lá no morro, mancando torto.
Sô Druvaldo aguardou o menino chegar perto:
- Qué rechear a boca de formiga, molecote? Pois não queria ser
bagaceiro? Ligeiro pro engenho que a labuta não espera a sua lerdeza!
Zequinha pendeu pro engenho sem revolta. Ficaria encarregado de tratar com o
Ceará, um camarada nordestino, desses andeiros que volta e meia mergulham
nas estradas nômades, garimpando lugar diferente para desamoitar uma vida
melhor. É fácil acertar o seu naipe. Embora longe da meia idade,
já cultiva marcas do tempo, pés de galinha, buracos e cicatrizes
de uma dura caminhada. Corpo franzino, magro e ossudo, tal e qual a serra calorenta
de onde veio. O ventre crescido revelando um bucho saliente, abastecido por
águas salobras, possivelmente uma antiga barriga d'água, no mais
é a certeza de gerar e colecionar alguns vermes insistentes em permanecer
gerações a fio. A corcunda curva de anzol é a postura indisciplinada,
a enxada precoce e o olho procurando calango ou outra carne rasteira. Pode ser
o peso da enorme cabeça que nenhum chapéu consegue encaixar. Por
isso as emendas de couro e as abas curtas. Mãos calejadas com perfurações
velhas de descascar cactos. Pernas finas como seriemas, olhos fundos de pouco
sono, lábios queimados e desidratados, judiados pelo sol. Os pés
já pisaram tantos chãos extintos, tentando fazer roça numa
área enxuta, que mal vinga espinho ou planta brava. Paisagem de pedra
e areia, não servem nem para imaginar num deserto de uma ampulheta. As
roupas pardas, porque a terra embaralha os tecidos e o suor cozinha as cores
a vapor. A pele acompanha a sina dos tecidos. Na capanga, possivelmente um pedaço
de rapadura e farinha, embrulhadas num pano sujo. Vez por outra um sorriso de
alegria, arrancada por milagre, revela um parcial e banguelo jeito de rir em
disparada, assim como o falatório apressado escolhendo a verve nordestina:
- Oxente, se avexe não minino. Cá adianti, se arribe aqui, c'o
vô mostrar uma coisa pra tu!
Sô Druvaldo deixou tudo recomendado e Zequinha seria o bagaceiro do alimentador
de cana: o próprio Ceará. O menino viu um tacho de melado quase
dando ponto pra rapadura. Tuneco, um rapaz novo, que diziam ser bastardo do
Senhor Patrão com a finada Tereza lavadeira, ficava em pé açoitando
com um relho dois bois que rodeavam a moenda. Ali ajoujados, com a canga apertada,
as brochas dos canzis devidamente abotoadas, circulavam já acostumados,
girando o braço, puxando a almanjarra, torcendo a moenda, estralando
os mancos de madeira, verdadeiras engrenagens rústicas, cantando a madeira
velha da aroeira, com o aparador assoalhado de jatobá tinindo. O Ceará
alimentava as canas na moenda e o menino puxaria o bagaço do outro lado,
voltando pro Ceará passar outra vez, mode não desperdiçar
garapa em trapo de bagaço. Pro menino não tinha tanto risco, só
não abobar no tempo, senão leva os gomos do bagaço direto
no rosto. As mãos de Zequinha, caso encostassem nos mancos da junta ou
no próprio rolo levariam uma pancada repelidora, que o reflexo ajudaria
a recolher. Deveria esperar o bagaço apontar pra fora e só depois
puxá-los. De fato largaram já de noite a moagem. Os bois já
exaustos, com a língua para fora caminhavam pro curral lentamente. Nem
sequer evitavam passar na saroba apinhada de carrapatos. Eram tantas as voltas
diárias que um contorno a mais seria impossível. A liberdade momentânea
os forçava a caminhar em reta estreita. Em linha reta caminhou Zequinha
com o pé ainda latejando a ferida da cobra. Engoliu a rapadura que o
Ceará havia lhe dado e dormiu pesado.
Ceará perambulou por muito tempo em estradas que não conhecia;
de currutelas a vilas, era só morte que via. Andava no seu próprio
cortejo, a cada passo uma cova de gia. Viu logo que ser retirante envelhecia,
tratou de interromper os caminhos que percorria. Agora não há
mais jeito de voltar a caminhar, a dívida de fato o prendia. Labuta não
se desfazia, porque outras nem sempre havia. Maria era sua mulher, de origem
que bem conhecia. Afinal, partilhavam de mesma sina, de ser caminheiro sem trilha.
De fome e sede se acabavam um pouco por dia. Garimpava roçados amarelentos,
cujos frutos jamais colheria. Finalmente afastaram da seca daquela terra nordestina.
E agora enraizaram nesse barro, que nem um vaso de esperança produzia.
Ceará tem cinco filhos, todos de sua cria. Todos paridos pela Maria.
Um cuida dos bois, dois picam a cana, as três meninas estão na
carvoaria. Casal do sertão tem mesmo essa mania. Mania de cada ano gerar
uma cria. Fábrica de crianças, engenho de almas pra vida. É
muita gente pra pouca comida. Mesmo assim, socializam a partilha. É pouca
gente pra rachar tanto serviço, trabalho que jamais cessaria. Mesmo que
se fizesse longa empreitada com todos que conhecia. Todo ano a mesma angústia
da gravidez: passar noites e noites que não se dormia. O choro a estrelejar
o barulho infantil de dor, de frio que de longe se ouvia. Tinha que se conter
com o leite aguado do peito da Maria. Era mais pano de urina, menos sono que
tinha. Passavam anos e o moleque pouco crescia. E vinha lá notícia
de nova cria. Ê miséria que tinha, resignação sem
fim; ê vida que judia! Agora Ceará era encarregado do bagaceiro
Zequinha: servir deveria!
Um tiro furou o silêncio à bala. Os berros do Senhor Patrão
ecoaram a ira, chacoalhando a mansidão daquela madrugada. Não
dava pra saber se era a fúria costumeira e azeda daquele jeitão
de ser, ou se tinha algumas doses a mais de pinga. Certo é que nessas
horas nenhum cansaço conseguia manter o corpo deitado. Só se via
os candieiros e lamparinas alumiando em desvairado zigue-zague de um repentino
e assustado despertar. Topadas pelas portas, escorregões no chão
e até corridas desenfreadas rumo ao engenho.
- O engenho tá parado, seus mandruvá! Sai da lama, seus porco
roncador imundo! Faz valer a farinha que come! Eu vou é vestir uma camisa
de terra nos atrasado. Quer ver só? Hã, hã!
A rudeza é por certo um jeito áspero e costumeiro de se tratar
nessas bandas mais cá escondidas. Pois não havera de ser um fato
diferente por ali. Com pouco entendimento percebe-se que a lei tinha letra diversa
naquele canto de mundo esquecido. Na lavoura, os instrumentos eram cobrados,
não os olhos, mas a cara inteira do indivíduo. Quase não
se pagava os aluguéis e as estadias naqueles casebres sem recursos. Os
juros acabavam galopando nos armazéns. Praticamente pagava para trabalhar,
o indigente, sempre preso às eternas dívidas nesse mundo barrento,
de curtas rédeas e pontudo ferrão. As coisas funcionavam aos gritos
e ao respeito baseado no medo da hierarquia politiqueira. O apego pela terra
se justificava pelo sonho de voar. Ao resignado lavrador não era dado
o dom de sonhar, muito menos em altura livre. Almejar um suspiro por uma terra
própria é luxo que não se tem acesso. O pé devia
ficar colado ao chão. Com muito custo abraçaria seu pedaço
de terra, numa cova rasa de palmo e meio, que esforço não compensava
nem um fundo cavoucado, pro resto maltrapilho do miserento. Aos retirantes que
se achegam naquelas terras na querência de um trabalho, uma água,
ou um simples favor, acabava vendo o fim de seus passos peregrinos. Contrair
dívida ou dever favor é laço e coleira, é cela escraveira,
durante a vida inteira.
De fato o corre-corre apressado cantou o engenho alto como nunca. O braço
estralando e rodando, os bois, ainda abobados por aquela pressa e hora antes
do sol, circulavam apunhalados pelos ferrões do Tuneco, o rapaz bastardo.
Só o fogo fraco e mixuruca do lampião brilhava as sombras naquele
engenho construído na taipa de supapo, técnica velha do Sô
Druvaldo, meio desajeitada e sem capricho, "serviço de preto",
conforme dizia o velho Vicente. Tuneco não tinha diferença de
trato, era mosca igual aos outros. Pro Senhor Patrão era tudo bicho do
mato, a ser tratado no arrocho, sem alisar a cabeça, porque coisa selvagem
se dá um toco de carne e lhe arranca logo um braço, solta pra
fazer um agrado e estragava a roça, acabando com as crias. Por isso,
aquela regulagem na madrugada de susto era uma constância. Quem é
novo não viu as ferramentas que ainda ficam guardadas no galpão.
É grilhão, gargantilha, viramundo... Fugitivo era no libanho.
Quem é novo não viu uma coisa dessas. Mas ainda está lá
pra quem quiser ver. Faz uma diferença na regulagem do povo! O Zequinha,
o Tuneco e os filhos do Ceará têm sorte de não conhecerem
na pele essas tranqueiras.
Já tinha dado uma terceira mão de tacho do caldo grosso. Outro
melado estava no ponto ao meio-dia. Os recursos do Senhor Patrão iam
se acabando e vinha lá nova regulagem de susto na madrugada. Rapadura,
garapa, açúcar, melado. Tinha também além da carvoaria,
uma fornalha no engenho, que o Tuneco fazia alguns tijolos e aproveitava a cerâmica.
De porta larga, quase passava um boi, a fornalha esquentava ainda mais aquele
calor dos dias no sertão. Tudo o Senhor Patrão vendia no mercadinho
lá no vilarejo, inclusive a cerâmica. O Tuneco tinha o modo do
Senhor Patrão: a caminhada forte, a engasgada na garganta, a piscadela
em tremelique vez por outra e até o tipo de ficar parado. Nem por isso
o Senhor Patrão lhe dava um agrado. Talvez o povo tenha acolhido o espúrio
como um dos seus por pena mesmo. A mãe dele também faleceu queimada
num acidente na carvoaria. A carvoaria vivia acidentando gente. Curiosa coincidência
os queimados serem desafetos ou de desagrado do Senhor Patrão. Outro
fogo que direto acendia era tocado em palavra do Vicente no ouvido do Senhor
Patrão contra a figura do Sô Druvaldo. "Nego lerdo que escora
no Zequinha. Preto safado que foge do trabalho qual o diabo da cruz!" E
assim o Senhor Patrão foi perdendo as graças com o Sô Druvaldo.
O camarada já foi constrangido na primeira perambulada.
- Hora braba dessa e ocê desafogado sôrto por aí na saroba!
Circulando quar reindimunho e o povo labutando arrochado! Faísso não,
faç'avor Sô Druvaldo. Ansim eu desgosto incrinado pra sua banda!
Vai enfornar a rapadura no engenho!
O velho Vicente ficou encabulado e achou que não tinha cabimento o Senhor
Patrão tratar com jeito aquele "preto lerdo". Tomou uma ojeriza
danada de tudo que é preto. Sobrou até pra noite, coitada, as
desavenças e as palavras ríspidas de um total descrédito.
Perdeu a magia da lua e das estrelas, a noite serena dos grilos, sapos e corujas,
ficaram sem graça as mágoas dos violeiros. Vicente ranzinza engolia
bravo os ares noturnos e azedava a feição pro mundo. Foi nesse
intervalo que articulou um plano infalível de acabar com o problema de
ainda ver a figura escura do Sô Druvaldo. "Vai acabar tostado, qual
o irmão do tipo queimado: o famoso carvão assado! A morte vai
lhe dar asa, que aquele preto lá não serve nem de brasa! Nem trabalho
de ir na carvoaria eu tenho, aquele nego vai apagar na chama acesa da fornalha
do engenho! Não demora acabar com aquela vida de atraso, merece ser queimado
e muito bem passado! Crioulo manso daquele nem se deve dar o trabalho de enterrar;
só se enterra semente pra vingar, e aquele preto sujo não serve
nem de adubo; ali é caboclo torto que não endireita, é
semente que não rende jamais uma colheita! Terás um destino novo,
envolverás todo numa coberta de fogo. Fugirás finalmente deste
estranho nicho, nego manso será jogado no lixo. Cabra pintado de sombra,
ficará finalmente acabado, ali jaz Sô Druvaldo incinerado! Abraça
esse fogo e se envolve qual mulher querida, aquece o teu corpo que o final te
chama, vai com gosto e te abriga, que essa chama é o último calor
que sentirás em vida! Pra sua pessoa não gasto nem uma bala de
um tiro, serás de fogo o seu derradeiro suspiro! Pra sua vida pobre não
merece nem um esforço de faca, e da sua cor quero ver só a derradeira
fumaça! Agora basta. Vai arder no fogo pra acabar com a sua raça,
e pra ter certeza de seu passamento atearei cachaça! Já que não
posso te usar o libanho, pra não fugir será de pinga o último
banho! Nesse grande corpo assado, ficarás empalhado, até que o
fogo lhe consuma bem tostado, e pra não ter de ouvir a súplica
demente do teu grito, será mesmo rápido o atrito do teu osso frito!
Que o fogo lhe bem cinja, e não deixe nem o trabalho de remover tua cinza!
Que lhe baste um simples empurrão para findar seus passos nesse chão!
Sairás desse paiol indecente, serás livre eternamente depois de
lhe cobrir com a centelha incandescente. E que a cinza lhe clareie a negrura,
para amenizar tua horrível figura!"
De fato o velho Vicente estava tomado de ódio, um tipo de amor ao contrário,
desejando a morte, um tipo de vida ao contrário. E o engenho, no final
da tarde já estava lotado de rapadura feita anteriormente e um tachão
preparado indo pra fornalha dar ponto na garapa. O Senhor Patrão ali
na supervisão de regulagem. O velho Vicente chegou por ali mode assuntar
o movimento, fingindo alisar um cabo pra fazer uma enxada. Ceará alimentava
a moenda com a cana e o Zequinha tirando o bagaço do outro lado. Tuneco
ferrava o boi fronteiro que estava visivelmente desgastado, apesar do vigor
com que puxava e girava o braço, o boi de trás, no ajoujo seguia
os contornos. A madeira estralava e cantava. O Senhor Patrão enxergava
cifras no caldo da caiana, num pisar ligeiro dos bois, no canto estrelejado
da madeira, no fogo vermelho da fornalha rendendo um tacho daquele e uma cerâmica
lá no fundo. Sô Druvaldo carregou o tacho e com ajuda do Tuneco
de apoio, ajeitou ali na fornalha. Aquele fogo acendeu as chamas no brilho do
olhar do velho Vicente. Os olhos azuis ficaram amarelos e vermelhos com a oportunidade
do plano em prática. Já não importavam as consequências.
Havia um mistério nas chamas que lhe puxava o incentivo. Era só
um empurrão. O velho Vicente andou de fininho igual garça pescando
lambaris. O Senhor Patrão só vendo notas naquele cabo de enxada.
Foi então que começou a disparar como uma onça que aproxima
matreira e espicha rápido pro bote. Era só um empurrão!
"E que a cinza lhe clareie a negrura, para amenizar tua horrível
figura!" Era tarde demais, já estava tomado pelo contrário
do amor. Não havia freio que segurasse a corrida do velho. Uma cabacinha
cheia de pinga na mão, com a boca aberta e quebrada pronta no gatilho.
Ceará deixou cair uma tala gorda da caiana e Sô Druvaldo abaixou
pra apanhar. Acabou que na abaixada o Sô Druvaldo de alvo passou a toco
tropicão. O velho Vicente bateu as canelas no Sô Druvaldo e mergulhou
de cheio naquele fogo. A cabaça despejou a pinga em cima do Vicente.
Ah! Que gritos eram aqueles!? O velho ainda saiu incandescente, do umbigo pra
cima estava todo tomado pelo fogo. E partiu desfigurado - a tocha humana -,
rumo ao Sô Druvaldo para lhe dar uma abraço de chamas. Nesse exato
momento, um zangão preto, daqueles besourudos injetou o ferrão
bem na virilha do boi fronteiro. O bicho ficou danado, acertou um coice na fuça
do outro boi. Os dois espicharam carreira e a almanjarra empurrou o velho Vicente
pro miolo da moenda. O braço girou qual maquinário de usina. Nunca
se viu tanta carreira, tanta pressa. O Senhor Patrão, ao ver o velho
na moenda estragando uma tacha de melado, viu as notas fugindo e segurou o pé
do Vicente. Mas, qual força nunca se viu que o engenho triturou o velho
Vicente e engoliu o Senhor Patrão, esmagando e quebrando os ossos. Os
dois saíram do outro lado finos e quebrados, torcidos e molhados, deixando
um bagaço que Zequinha jamais poderia tirar. O tacho ficou colorido tal
qual o pôr-do-sol, o dourado do melado e o vermelho em desproposita pintura.
O sol foi a joia e a gema do oriente que Zequinha, Ceará, Tuneco
e Sô Druvaldo correram em direção, fugindo do arrocho. Os
bois arrebentaram o braço e seguiram sua linha reta, em revoada livre.
A almanjarra ficou retida num arame farpado arrebentado. Tuneco, que seria o
único descendente conhecido do Senhor Patrão, deixou partilhar
a herança com aquele povo, e foi buscar uma moça casamenteira
noutro lugar. A fazenda foi vendida sem contar o infortúnio da moenda.
Ceará, Maria e os filhos seguiram pro sul, montando um negócio
num vale repleto de água doce. Sô Druvaldo comprou terra no beira-mar
e montou pouso pra turista. Zequinha acompanhou Sô Druvaldo, depois foi
trabalhar com Ceará, mas juntou montante pra se manter sozinho, voando
livre pelas ruas, fazendo seu caminho. E assim, aquela terra que era um engenho
de almas, fábrica de meninos para a vivência, tornou-se a fazenda
Engenho de Almas, de enorme querência sentida; uma moenda da morte e uma
revoada em liberdade para a vida.