A Garganta da Serpente
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Canção de Natal

(Lira Vargas)

Local: Manaus
Feira: informação - as feiras de Manaus funcionam à noite, costume da terra: músicas no estilo da terra, danças do boi, etc.
Sugestão: filmar o porto de Manaus, no entardecer, onde o sol reflete nas águas formando o espelho da água, os igarapés, barcos, o prédio do cais. A praça da polícia, zona franca.
Fundo musical: Porto de Lenha instrumental, essa música é considerada o hino de Manaus.
Em câmera lenta, os barcos deslizando nas águas do Rio Negro, sempre que possível no entardecer.

Severino, trabalhador de obra. Recebe seu décimo terceiro salário sonhado durante o ano inteiro. Finalmente as mãos ásperas pegam o "bolo" de notas, no rosto suado exibe um sorriso momentâneo, vai fazer uma farra. Lembra que a mulher pedira uma pregadeira de cabelo para segurar aqueles cabelos negros que flutuavam quando embalados nas noites de amor na rede ao pé do barraco. Cabocla matreira! Severino lembra do último vestido que lhe dera, florido, hoje já desbotado, o decote mostrando os seios bronzeados pelo sol que a acaricia durante toda sua vida, nas lavagens à beira do rio. Cabocla matreira, seu sorriso revela os olhos brilhantes, negros como o rio em noite alta, um sorriso matreiro, debochado, cheio de desejos, brilhando como gotas de chuva nas folhas do cupuaçu, e o perfume de carne saudável, quente como as florestas do Amazonas. Cabocla matreira. Severino alisa os bolsos, pensa, um pensamento de vitória, vai comprar um vestido bem bonito pra ela, um vestido que faça saltar os seios quando ela correr nas matas à beira do rio, que o vento levante e deixe à mostra aquelas pernas de jambo, que o calor aqueça aquela pele e o suor desça e sinta o perfume do suor da mulher amada. Diz uma voz ao trabalhador de obra, uma voz lá de dentro. (Essas cenas passando em sua mente). Vem à lembrança dos filhos, três meninos e uma menina, um deles o Chico, tem os olhos pequeninos, olhos de índio, olhos de pidão. Severino lembra que nunca pôde dar um presente de Natal a eles. E a menina, Tina, caboclinha bonita, cópia da mãe de olhar brilhante. Pensa em voz alta "comprarei um montão de presentes". E vem a lembrança da taberna, débito de todo mês. Sempre ameaçando de perder o fiado pelo Seu Cardoso.

Severino alisa o bolso, tira as notas e começa a contar uma a uma, pensa na taberna - "maldito ladrão" - lembra da farmácia: marditos vermes da barriga das crianças. Severino levanta do banco da parada de ônibus, faz sinal e vai pra feira do agricultor perto do cais do porto. Roberta Miranda canta numa das barracas "...vai com Deus, o amor ainda está aqui, vai com Deus...". Severino sorri, parece que era pra ele. Compra pirarucu salgado, anda mais um pouco, pára numa barraca e toma uma cachaça, duas, três, quatro, e a voz da Roberta Miranda "...cada dia que se passa, um rosto tão bonito se perdeu na indiferença...".

Severino olha para o céu, noite escura, lua alta, céu estrelado, mas nuvens carregadas tentando estragar aquele cenário. Os primeiros pingos de chuva refrescam a cara cansada do trabalhador amazonense. Pode chover! Pensou, só não pode molhar meu décimo terceiro salário. Arrastava-se pela feira à procura de um vestido bem florido, que deixasse à mostra os seios bronzeados da cabocla matreira, que deixasse à mostra, quando na corrida pela mata, as pernas da cor de jambo!.E lembra as corridas dos dois que acabavam fazendo amor nas matas e depois se banhando nos igarapés.

Parou numa barraca, protegendo-se da chuva que aumentara. É quase Natal, Severino ensopado, lameado, sentindo os primeiros arrepios, compra uma garrafa de cachaça, toma em golada, procura um lugar para sentar, a chuva cai, no céu uns pássaros cortam a chuva à procura de abrigo, as pessoas atropelam-se em alegria total, parece que a felicidade de Severino contagiou o mundo. O cheiro de tapioca misturado à fumaça de um braseiro de carne de sol. Um misto de alegria e tristeza atravessa o peito de severino. O céu está unido com a terra e o rio, (cena do cais) faz parecer que todos os problemas estão solucionados. Toma outro gole. Severino sorri. Agora o som é música do boi. Severino já trôpego vai mais perto ouvir o musical. Uma cabocla dançava, atrevida, balançava os quadris, os seios saltavam no decote desbotado do vestido velho, o sorriso alegre, desvendando o mistério da noite de Natal (pensa em voz alta) é a alegria de todos. Severino aproxima-se trôpego até a cabocla, sua língua enrolada, sob o braço a garrafa vazia, o pirarucu salgado já molhado no refugio do corpo de Severino. Era sua cabocla amada nos braços de outro. Severino tenta gritar, mas as palavras se confundem no pensamento e na visão turva, e no som do "boi" a cabocla o olha insinuante, Severino dá um murro na cabocla matreira. É formada a confusão, foi embora a alegria. Batem em sua cabeça, no corpo, pisoteado, a cabocla de longe o agride com palavras, em meio de tantos murros o soluço entrecortado, o sangue misturado ao suor e a chuva, as lágrimas brotam como o fiasco de um rio nascendo. O corpo não obedece, levanta as mãos num suplício de menino chorão, os olhos fechados para conter a dor do ciúme, do sonho esfacelado em pedaços e as palavras saem em dor: cabocla me ajude, eu te amo, não me deixe. A polícia chega para acalmar a multidão, Severino é levado pro hospital desmaiado.

Da janela, à beira do rio, a cabocla de Severino, chora, nas águas barrentas do Solimões, passa um cargueiro apitando, Zefinha pensa: Severino tá chegando, mas da escuridão alguém grita: Feliz Natal Zefinha, Feliz Natal Severino... Zefinha não responde, da garganta a voz está embargada, nos olhos as lágrimas escorrem, naquele rosto queimado pelo sol das lavagens de roupa do rio Solimões. E no silêncio da noite de Natal, a saudade de Severino. Cadê Severino? Pensa a cabocla matreira.

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