A Garganta da Serpente
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Corpo ferido

(Lylia Violet)

Pressiono o dedo na ferida, estou febril
absorvem as ilusões estas mãos que só querem te poder tocar.

Hoje o dia passou lento, S. A brisa fresca entrou pela janela do meu quarto o dia todo. Decidi ficar sentada na cama, criando linhas inexistentes, alinhadas, desalinhadas com a folha. Desenhei o que os dedos permitiram. Doía-me as mãos.
Enigmáticos os olhos que desenho, fazem-me lembrar os teus. Páro! Não posso recordar-me de ti. Sacudo a cabeça na ânsia de te afastar dos meus pensamentos.
Não, não é possível.

Tento deter toda a saudade à porta do pensamento. S, és demasiado grande. Começas a ficar demasiado apertado na minha alma. Não vês? Não sentes?

Hoje queria falar-te do mar que visitei ontem.
Um pequeno paraíso que começava no vasto mar e acabava nas dunas extensas e belas. S, se visses esta beleza. Gostava de ter partilhado contigo.
Tirei os sapatos e comecei a correr na areia, parecia flutuar. Era de cores indecifráveis, deliciosamente belas. Os grãos de areia pareciam pepitas de oiro a escorregar pelas dunas.
No meu rosto rasga-se um sorriso.

O mar enche-se de pássaros, os juncos ensopados, os pequenos barcos silenciosos lá no fundo passeiam, parece que beijam o azul. O céu forma pinturas jamais vistas por mim. Um misto de cores imagináveis, laranja, oiro, azul, cinzento. Os meus lábios incendeiam-se e a pele começa a adquirir um sabor a salgado das algas. Rodopio e canto. A saia parece bordada de búzios que tocam para mim. Uma verdadeira orquestra vinda de um paraíso jamais sentido, jamais tocado.

O vento começa a varrer o corpo, empurra-o. Sinto-me frágil, cansada. Quase desisto de percorrer os longos caminhos das ruas. Chuvisca. A água começa a apagar o fogo que alastra a pele. Sinto-me mais tranquila agora.

Saudade é a única palavra que ecoa aqui e ali, acolá, em todo o lado.
Sabes, dirigi-me ao mar, tive medo das grandes ondas. Enterrei os pés na areia molhada e estiquei as mãos de modo que tocasse na água. Tentei lavar as minhas mãos, tirar todo o teu cheiro e o teu rosto que cravei nelas. Em vão, fui cobarde. Não quis te perder para o mar. Sentir-me-ia enojada, ficaria com ciúmes do oceano. Porque serias somente dele.

Voltei para casa. Deitei-me e derramei lágrimas que se formaram em cristais. Pousei-os na janela, esperando que o tempo os quebra-se. É tarde, meu amor.

Em mim a lama. Os dias-sem-ninguém, as noites-vestidas-de-sombras… Fica em mim o doce da destruição. Aceito o desafio do teu desdém. Sinto na boca o gosto a queimado.

Possuo o corpo ferido destas magoadas palavras que te canto.

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