A Garganta da Serpente
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Entre o real e o virtual

(Lira Vargas)

Sheila, escritora de uma grande editora, recebe o convite para apresentar seu novo livro. Casada com Leopoldo, médico ortopedista bem sucedido em sua especialidade e grande admirador de Sheila, ambos repartiam suas profissões com respeito e muito amor. Sem filhos, o casal dedica as horas noturnas para contarem como fora o dia e para trocarem carinho com a alegria de um casal feliz.

Amanheceu, Leopoldo despede-se de Sheila, depois das tarefas domésticas, entre uma ordem aqui, outra ali com as duas empregadas, chega a hora do almoço, depois Sheila desanca e só vai para o escritório na parte da tarde, iniciar o romance do livro comprometido com a editora.

Nos anos 50, Carolina completou dezesseis anos, o orfanato arranja um emprego num fábrica de soro de sua cidade. Trabalhando numa seção de altoclave ,próximo às

Caldeiras. Na hora do almoço, quando vai para o refeitório, Carolina senta numa mesa e a sua frente está um rapaz moreno, meigo, que logo faz amizade. Silvio tinha vindo do nordeste, perdera seus pais de doença desconhecida, nasce daquela troca da experiência difícil de vida, uma grande amizade. Tornam-se namorados, e uma grande paixão unia aquele casal sofrido. Da seção que Carolina trabalha, do outro lado ficam as caldeira, onde Silvio é responsável pelo desempenho das mesmas, cuidando da temperatura e válvulas. Carolina sentia orgulho de sua função, ao meio daquela barulhada, da fumaça e dos apitos, Silvio ficava manchado de óleo, Carolina o amava a cada dia mais.

Foi numa tarde de inverno, fazia frio na fábrica, lá fora a chuva caia, fazendo as plantas do jardim da fábrica mais verde. Da seção, Carolina olhava a chuva e pensava com ansiedade na hora de sair com seu grande amor. Nesse instante, uma turma de uns quatro diretores, percorria a seção para uma avaliação, entre eles estava o Dr. Willis, presidente da empresa com seus cinquenta anos, de olhar penetrante, bigode bem tratado, pele morena, de forte personalidade. Parou diante da seção de Carolina, olhou-a firmemente, parecia que ia falar algo. Carolina tremeu diante aquele olhar, suas colegas à volta notaram o silêncio, Carolina olhou em direção à caldeira, ao meio a fumaça lá estava Silvio trabalhando numa válvula que escapava fumaça branca.


Sheila dá um suspiro, estica os braços e com um sorriso de satisfação, salva o texto, e resolve dar uma navegada pela Internet. Vai até um portal famoso, onde tem muitas salas, Sheila tem a intenção de conversar com alguém, para distrair até que descanse um pouco. Entra numa sala com o nick de Estrela. E alguém com o nick de Flamingo a chama para conversar. De trocas de informações banais, o papo estende-se pôr muito tempo, Sheila chega a ficar feliz com o Flamingo, uma alegria nunca sentida no mundo virtual, essa era a primeira vez que Sheila conversava com alguém nas salas de bate papo. Mas Sheila teve uma certa preocupação com a hora, pois tinha compromisso com o livro. No relógio do computador marcava dezenove horas, quase na hora de Leopoldo chegar, e quando a conversa estava animada, de repente Flamingo some da sala. Sheila fica olhando o visor com uma ponta de frustração. Desliga o computador e vai se arrumar para esperar Leopoldo chegar. E como toda noite, Sheila dá atenção a Leopoldo que fala do que acontecera durante o dia, e pergunta sobre o livro que Sheila escrevia, e vão para o quarto dormir. De madrugada, Sheila desperta pensando no Flamingo, dá um sorriso, acreditando que o mundo virtual, era fácil de construir e destruir, fica lembrando das palavras do flamingo, e até das risadas que escrevera no visor.

Dr. Willis sem cerimônia pergunta à chefe da seção, qual o nome daquela mocinha loira de olhos azuis que embalava o soro. A chefe responde que é Carolina. O Dr. Willis anota seu nome e vai embora. Carolina sente medo daquele homem, sabia que ele era o presidente da empresa, e se a mandasse embora? Seus pensamentos ficaram confusos, e mais ainda quando a chefe disse que ele perguntara seu nome. Na saída Carolina diz a Silvio o que acontecera, o mesmo a conforma, dizendo que ele deve ter achado-a parecida com alguém. Numa manhã, quando chega a hora do lanche, a chefe da seção, diz para Carolina que o Dr. Willis queria falar algo e que ela deveria ir até sua sala. Na inocência de sua situação, Carolina vai assustada, bate na porta do presidente da empresa, logo a secretária abre. Carolina parada a sua frente, as mãos trêmulas, olhos no chão, no pensamento o medo de ser despedida. O Dr. Willis, levanta da mesa, abraça-a num falso carinho e oferece a cadeira para Carolina, que balbucia recusando sentar. O Dr. Willis, sem rodeio, pergunta se ela tinha namorado, Carolina, inocentemente responde que sim, esse dá uma pausa de silêncio e oferece a ela uma grande quantia em dinheiro para que ela comprasse um vestido e calçados para um jantar que ele a convidava. Carolina nervosa, recusa, mas a imposição do Dr. Willis a faz pegar. Este informa o local do encontro e seria no dia seguinte. Dizendo que ela teria que guardar segredo daquela conversa. Carolina sai de sua sala assustada e chorando, vai ao vestuário e lava o rosto. Confusa e assustada, Carolina conta a quantia, era três vezes seu salário. Passa o dia todo trêmula, olhava para Silvio, não tinha coragem de falar. Chega a tarde, quando soa o apito de final de expediente, Carolina vai ao encontro de Silvio, de mãos dadas, Silvio percebe seu nervosismo, pergunta, mas Carolina nada fala. O encontro seria no dia seguinte. Carolina morava sozinha em um quarto alugado num pensionato, a noite foi de sofrimento, como faria para sair daquela situação, o dinheiro permanecia intacto. Carolina toma uma decisão, no dia seguinte, entregaria o dinheiro, mas o medo que Dr. Willis a mandasse embora da fábrica, como faria, se já saíra do orfanato, alugara aquele quarto, todas essa perguntas a tormentaram durante a noite. E amanhece, Carolina vai para a fábrica, seu semblante era de sofrimento, ao chegar encontra rapidamente com Silvio, este pergunta se ela estava doente, Carolina nega com lágrimas nos olhos. No trabalho as pessoas percebem seu nervosismo, mas silenciosamente, Carolina vivia um turbilhão de angústia. Antes do almoço o Dr. Willis mandou chamá-la, Carolina tomou um susto, e obedeceu, foi até sua sala, o corredor longo, de muitas portas fechadas, ela ouvia as teclas das máquinas de datilografia que pareciam aplausos a cada passo. Chega a sala do Dr. Willis, este fecha a porta e pergunta se ela estava preparada para o jantar que seria num hotel de luxo. Carolina de cabeça baixa, acena que não, este então diz que lamentava mas que seu emprego e do Silvio, seu namorado, estava perdido. Carolina imediatamente suplica que ele a perdoasse, ela aceitaria. Dr. Willis, dá um sorriso, aproxima-se de Carolina, aperta levemente seu ombro, passa as mãos pelo seu corpo, imóvel, gelado e trêmulo, percebe que Carolina é virgem, e sorrindo de triunfo, o Dr. Willis, dá um abraço nela, e diz que ela deve ir para o trabalho, que a noite seria de muita alegria. Carolina retorna pelos corredores, as máquinas de datilografia agora, pareciam dar gargalhadas assustadoras. Carolina corre, as lágrimas rolando, colando os fios de seus cabelos pelo rosto. As horas foram passando, a tarde chega rápida, Carolina trabalha incansável na seção, silenciosa, de vez em quando sentia o olhar de Silvio, ansioso, perguntando o que estava acontecendo. Carolina o olha por um instante, a ansiedade de correr até seus braços e pedir ajuda. Permanece assim por uns instantes. O tempo vai passando, a tarde findava, logo ela estaria caminhando para o encontro do Dr. Willis para garantir emprego dela e do Silvio, o medo e a raiva se misturavam em seu coração quando antes só havia amor e felicidade depois que conhecera Silvio, pois de sua vida no orfanato trazia solidão e sofrimento.

Sheila, olha para o relógio, dezenove horas, lembra do Flamingo, dá um sorriso, salva o texto e vai até a sala, a sua procura, e lá estava o Flamingo. Parecia silencioso o monitor nesse instante. E num cumprimento de novos amigos, timidamente, falam e perguntam como fora o dia. Depois de alguns instantes, Flamingo a convida para um beijo virtual, Sheila dá um sorriso, como seria um beijo virtual, Flamingo diz que bastaria ela fechar os olhos e ficar silenciosa, que ele se transportaria até ela, que imaginassem juntos as pedras do Arpoador, que desceriam até perto do mar, que as ondas jogariam chuvas do mar para abençoarem aquela união. Sheila fica silenciosa, se deixa transportar até a praia, e sente suas mãos tocando as suas, sente seu corpo unindo-se ao dela, uma alegria imaginária, mas que chegava verdadeira até sua alma. E como Estrela, prateia as asas de Flamingo, numa cena misteriosa, mergulham no mar azul, até as profundezas do infinito. Quando, nas areias do fundo do mar, os peixes passeiam em seus corpos, em juras de amor virtual eterno, Flamingo a convida para voltar à tona. Sheila acorda daquela sensação, fica estarrecida olhando o visor vazio, Flamingo sai sem uma despedida, Sheila, percebe que está suada e trêmula, da alegria que sentira do primeiro encontro, que agora se transformava em preocupação e ansiedade, pensando com pena que o novo encontro seria no dia seguinte.

Leopoldo chega, abraça Sheila que parecia distante, a preocupação o faz perguntar o que acontecera, Sheila sem saber o que responder, diz que o livro a preocupava, que se envolvia com os personagens. Leopoldo quer ler o livro, Sheila nega, a insistência de Leopoldo a irrita, mas vai até o computador e mostra o romance, e sobre o sorriso de admiração, Leopoldo a abraça parabenizando-a. Diz que Carolina terá que sair daquela situação, que Sheila tivesse muito cuidado para não estragar aquele romance. Nesse momento, Sheila se envolve com o entusiasmo de Leopoldo, e de seu coração brota o amor real, e o abraça agradecida pela força que ela dá em sua obra.

Seus pensamentos vão tomando forma, olha para Silvio, decididamente, Carolina pára de trabalhar, vai se afastando da esteira, os frascos de soro acumulando-se um por cima do outro, Carolina retorna, tem que continuar. Nesse instante soa o alarme de incêndio, uma explosão seguida de fumaça negra. Carolina pensa em Silvio, ele estaria nas caldeiras em chamas, as pessoas correm em direção à saída, Carolina ao contrário corre até o local do incêndio, ao meio da fumaça. Silvio estava caído, Carolina grita seu nome, mergulha no vapor quente, arrasta destemperadamente Silvio até a porta. Num esforço sobre humano, Carolina vai arrastando seu corpo misturado a óleo. Nesse instante alguém grita que ela tinha que sair dali, mas Carolina não obedece, tinha que salvar seu grande amor. Nesse instante uma outra explosão, o telhado cai pesadamente sobre as penas de Silvio, e silêncio total. Carolina acorda no hospital, fica sabendo que Silvio perdera a perna. Passados os meses, Carolina recupera os ferimentos, volta a trabalhar. O Dr. Willis aguarda a primeira oportunidade para retornar a marcar um novo encontro. Silvio não mais trabalhava, e em uma de suas visitas, Silvio diz a Carolina que o médico dissera que havia uma chance dele voltar a andar, que havia prótese, mas era muito cara. Carolina de frente ao Dr. Willis, lembra da importância de uma prótese. Implora ao dr. Willis o valor da prótese, que ela não usara o dinheiro que ele dera, mas que precisava de um valor dez vezes mais. Este concorda, mas a condição seria dela nunca mais encontrar Silvio. Carolina aceita, e o Dr. Willis manda a secretária providencia uma clinica de próteses.

Na solidão dos dias em casa, Silvio sofre a saudade e o desprezo de Carolina, sem saber que essa seria a condição dele voltar a andar.

Numa tarde de verão, o Dr. Willis, marca com Carolina, esta deveria esperá-lo no ponto do ônibus em frente a fábrica bem depois que os funcionários teriam ido embora. Carolina com o coração apertado vai para o ponto. Os ônibus paravam bruscamente levantando poeira, Carolina olha para o portão da fábrica, e percebe o Dr. Willis caminhando até seu carro, Carolina esfrega as mãos uma na outra, o coração dispara, a lágrima desce uma após outra em seu rosto. Pára um ônibus, ela olha para o itinerário, Rio Bonito, o ônibus da cidade de Silvio, Carolina ameaça subir no ônibus, o portão da fábrica se abre, um farol ilumina seu rosto, e a lembrança de Silvio chega.


Sheila pára, salva o texto e vai ansiosa até a sala, agora desejando encontrar Flamingo, e lá estava seu pássaro misterioso. Num breve cumprimento, Sheila percebe a ansiedade sendo recíproca, as teclas traduziam suas almas, dessa vez navegaram do infinito mar, subiram ao céu e se acomodaram em blocos de nuvens para amar rodeados do céu azul e o silêncio do infinito. Saborearam a frescura das nuvens, e nesse instante passa um avião, acordam do torpor, E sorrindo em nas teclas cúmplices daquele estranho amor, onde o mundo virtual era mais leve, mais fácil de ser feliz. Flamingo então diz que o amor era verdadeiro, que eles deveriam marcar um encontro real. Sheila toma um susto, mas concorda com a ideia, marcaram de se encontrar num bar em Copacabana, ele vestiria blusão azul marinho e calça jeans, Sheila queria ver o rosto daquele misterioso pássaro virtual. Marcam para a tarde seguinte. E Flamingo some do visor. Sheila fica parada, se perguntando se deveria ir ao encontro. Leopoldo chega, Sheila esta tranquila, parecia que nada acontecera, consegue nessa noite administrar aquela situação. Quando vão para o quarto, Leopoldo abraça Sheila com carinho, mas essa recusa carinhosamente seu abraço dizendo que precisava retornar ao livro, pois tivera uma ideia para o trecho que parara. Leopoldo compreensivo, beija-a, e Sheila levanta para o escritório.

O farol do carro vai se aproximando, o ônibus parado, o vento soprando forte, era início da noite, alguém passou cantando ... "é tão calma a noite, a noite é de nós dois, ninguém amou assim, nem amará depois, quando a manhã nos separar, em nossas lembranças, hão de ficar...". O ônibus se afasta, as luzes vão ficando cada vez mais longe, o farol do carro do Dr. Willis apagam. Carolina paga a passagem, e senta no banco perto do motorista, como se assim ele correria mais e mais. Chega na casa de Silvio, ele estava na janela como a esperá-la. Carolina entra e abraça-o, Silvio segura seu rosto suado. Já adaptado a prótese, Silvio a leva até seu quarto, e se amam. Quando amanhece, Carolina o olha com carinho, tinha que ir trabalhar. Agora estava feliz. Vai para o ponto do ônibus, lembrando da música de Moacir Franco... "é tão calma a noite... quando a manhã nos separar...".

Chega na fábrica, vai até o escritório do Dr. Wiilis, e diz que no dia anterior, ela teve muito medo, mas que agora estava pronta para ser dele.


Sheila desliga o monitor e volta para acama. Leopoldo dormia, deita com cuidado ao seu lado e adormece.

Na tarde seguinte, Sheila se arruma, passa pela sala do computador, e suspira, não tinha escrito nada naquele dia, a espera do encontro. Segue em direção a Copacabana, no túnel um acidente atrapalha o trânsito. Irritada, Sheila desvia o carro batendo no meio fio, consegue chegar no encontro atrasada quase uma hora, vai até o local, o coração disparando, mas nas mesas não tinha ninguém de roupa azul marinho. Triste, Sheila volta pra casa, vai direto para o monitor, e seu Flamingo não estava lá. Espera ansiosa pela chegada de seu pássaro, diria tudo que guardara no visor da saudade e do desejo.

O Dr. Willis abraça Carolina, carinhosamente, e olhando-a nos olhos, diz baixinho que seu amor era grande muito grande por ela, e que a faria a mulher mais feliz do mundo, tira do bolso um anel com um coração e diz: volte para seu trabalho, e para seu namorado, quero que vocês sejam felizes. Nunca mais exigirei nada de você.

Carolina levanta o rosto, dá um beijo em seu rosto, um beijo de agradecimento e sai sorrindo da sua sala. Ao passar pelo corredor, as máquinas de datilografia aplaudiam sua felicidade.

No término do expediente, Carolina vai para a casa de Silvio para sempre.


Sheila para acaba o texto, vai até as salas de conversa, Flamingo não estava lá. Nesse instante o telefone toca, Sheila fica sabendo que Leopoldo sofrera um acidente, Sheila vai para o hospital, fica sabendo que Leopoldo sofrera o acidente no túnel. Sheila fica apreensiva, justamente o acidente que ela não parou para olhar e a fizera chegar atrasada no encontro. Sheila chora desesperada, fica sabendo que Leopoldo perdera a perna no acidente. Uma enfermeira entrega sua roupa num saco plástico. Na sala de cirurgia Leopoldo lutava contra a morte. Sheila na sala de espera, orava, pedia a Deus que o salvasse, Sheila percebe a roupa muito escura dentro da sacola, olha assustada, o sangue em quantidade, a roupa rasgada, Sheila tira de dentro da sacola um blusão azul marinho e uma calça jeans.

Sheila fica parada, segurando aquelas roupas rasgadas de seu Flamingo, e como uma estrela, Sheila vai até o céu pedir a Deus que o salve.

Passaram os anos, Sheila e Leopoldo vivem felizes, mas nunca comentaram sobre o que acontecera.

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