Acorda ao meio dia e meio sentindo-se um tanto quanto estranho. Dormira por
mais de quinze horas consecutivas e ainda sente-se cansado. Ajeita com as mãos
a roupa amassada. Lava o rosto na pia da cozinha, pega as chaves do carro em
cima da mesa e sai sem saber para onde ir. Apenas roda pela cidade. Sem rumo.
Sem pretensões. Sem pensamentos. Trafega devagar. Olha inepto para frente
sem nada enxergar. Perde-se nos vapores urbanos. Não sabe mais nenhum
porquê. Aliena-se do caos. Desconecta-se da vigília. Mantém
langue o pé frouxo no pedal do acelerador, interrompendo o curso da realidade.
É só mais um dia.
De repente depara-se com uma imensa foto de seu rosto afixada em um carrinho
de um coletor de papeis velhos que o conduz a frente do seu automóvel.
Tem uma ponta de orgulho misturada a uma estranheza atroz. Limita-se a segui-lo.
A acompanhar o homem a governar o carrinho cheio de lixo seco. Olha-se e quase
não se reconhece. Em seguida distrai-se ao se ver em um outdoor ao longo
da via. Coça a cabeça. Passa a mão na testa. Perde o carrinho
de vista. Confere a sua volta. Mais cinco outdoors. Todos com a mesma foto.
A sua. Passa por um shopping center. Envereda para o estacionamento. Desliga
o motor atira-se para trás no banco. Depois do tempo de mil e cem pensamentos
sai do carro e tenta encontrar-se com a realidade novamente. Erra o lugar. Procura
por uma livraria e passa a pegar, um a um, todos os volume que vê pela
frente sem dar nenhuma atenção especial a qualquer deles. Até
que, ao resolver sair dali, esbarra com um livro grande, grosso e de acurado
rigor gráfico. E com sua foto na capa. Pega-o súbito e folheia-o
desesperado. Toda a sua vida e a de seus familiares estão ali. Impressas.
Contadas em forma de fotografias. Ordenadas com a devida cronologia. Senta-se
no chão da loja e começa a chorar. Compulsivo. Ermo. Soluçante.
Um segurança é chamado para dar-lhe orientação.
Não o escuta. Não consegue enxergar nem ouvir mais nada. Aos poucos
a visão vai ficando embaçada. O segurança ajuda-o a levantar-se.
Um grupo de pessoas, funcionários e clientes, ajuntam-se para ver o que
está havendo. Olha para eles e todos têm a sua cara. O segurança
também. Desvencilha-se e corre alucinado. Entra em um banheiro. Estaca
na frente do espelho gigante. Observa-se. Espanta-se. Aterroriza-se. A seu rosto
não é mais seu. Tem outro semblante enquanto todos estampam o
seu, colados aos próprios corpos tão diferenciados quanto a vida.
Quanto o todo. Solta um urro. Tremendo. Potente. Avassalador. Pede desculpas
a si mesmo e desaparece.