A Garganta da Serpente
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Estranho

(Lehgau-Z Qarvalho)

Acorda ao meio dia e meio sentindo-se um tanto quanto estranho. Dormira por mais de quinze horas consecutivas e ainda sente-se cansado. Ajeita com as mãos a roupa amassada. Lava o rosto na pia da cozinha, pega as chaves do carro em cima da mesa e sai sem saber para onde ir. Apenas roda pela cidade. Sem rumo. Sem pretensões. Sem pensamentos. Trafega devagar. Olha inepto para frente sem nada enxergar. Perde-se nos vapores urbanos. Não sabe mais nenhum porquê. Aliena-se do caos. Desconecta-se da vigília. Mantém langue o pé frouxo no pedal do acelerador, interrompendo o curso da realidade. É só mais um dia.

De repente depara-se com uma imensa foto de seu rosto afixada em um carrinho de um coletor de papeis velhos que o conduz a frente do seu automóvel. Tem uma ponta de orgulho misturada a uma estranheza atroz. Limita-se a segui-lo. A acompanhar o homem a governar o carrinho cheio de lixo seco. Olha-se e quase não se reconhece. Em seguida distrai-se ao se ver em um outdoor ao longo da via. Coça a cabeça. Passa a mão na testa. Perde o carrinho de vista. Confere a sua volta. Mais cinco outdoors. Todos com a mesma foto. A sua. Passa por um shopping center. Envereda para o estacionamento. Desliga o motor atira-se para trás no banco. Depois do tempo de mil e cem pensamentos sai do carro e tenta encontrar-se com a realidade novamente. Erra o lugar. Procura por uma livraria e passa a pegar, um a um, todos os volume que vê pela frente sem dar nenhuma atenção especial a qualquer deles. Até que, ao resolver sair dali, esbarra com um livro grande, grosso e de acurado rigor gráfico. E com sua foto na capa. Pega-o súbito e folheia-o desesperado. Toda a sua vida e a de seus familiares estão ali. Impressas. Contadas em forma de fotografias. Ordenadas com a devida cronologia. Senta-se no chão da loja e começa a chorar. Compulsivo. Ermo. Soluçante. Um segurança é chamado para dar-lhe orientação. Não o escuta. Não consegue enxergar nem ouvir mais nada. Aos poucos a visão vai ficando embaçada. O segurança ajuda-o a levantar-se. Um grupo de pessoas, funcionários e clientes, ajuntam-se para ver o que está havendo. Olha para eles e todos têm a sua cara. O segurança também. Desvencilha-se e corre alucinado. Entra em um banheiro. Estaca na frente do espelho gigante. Observa-se. Espanta-se. Aterroriza-se. A seu rosto não é mais seu. Tem outro semblante enquanto todos estampam o seu, colados aos próprios corpos tão diferenciados quanto a vida. Quanto o todo. Solta um urro. Tremendo. Potente. Avassalador. Pede desculpas a si mesmo e desaparece.

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