A Garganta da Serpente
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Náufrago

(Marcele Aires)

[...] el mundo es un infierno unánime para los perseguidos.
(Bioy Casares em La invención de Morel)

Reconheço que as vias eram escassas. Tive de me limitar ao processo, embora reconheça que a ação cadenciada, apoiada em movimentos ordenados nunca é um legítimo caminho. Indubitavelmente, a natureza de cada reflexo humano se esparrama fértil, sem que se possa controlar o que o destino traz em seu bojo. É como um ventre que se abre em pássaros, alvoroçados, no tempo do ocaso.

A vida jamais é linear, euclideana; mas octogonal, circular, circulante, cambaleante, pirueta de palhaço, salto de saltimbanco em picadeiro. A vida corre. A vida escorre. A vida foge. Ela escapa. Pulsa. A vida salta. Ela é elástica, deformável, plástica, da maleabilidade da matéria que não se prende nos dedos - é pura luz; pó de ouro caindo no espaço.

Passados alguns dias do episódio foi que me dei conta do grande engano - embora fosse tarde demais... Toda uma vida bem delineada, cada palavra, cada gesto arquitetadamente traçados, como se eu fosse o pirata a desenhar a carta marítima de minha própria rota. Porém um pirata errado, mergulhado no equívoco da certeza e na desmedida ingenuidade de não contar com os sobressaltos, que assim como o desalinho da maré em tempestade arrebenta embarcações, afoga a tripulação e afunda até mesmo mastro de imponente e destemida bandeira.

Sempre fui um homem muito reservado. Sem amigos. Tímido para o amor. Da família, restavam alguns sobrinhos, tios e primos que moravam no Maranhão, mas com eles eu não mantinha contato há mais de quinze anos. Aliás, naquele fatídico dia, certamente não haveria a quem comunicar o desenlace. Ninguém da família. Telefone, endereço, e-mail: nada. O mais provável é que recorressem - último recurso - à senhora corcunda que me aluga esse pequeno apartamento sem elevador, localizado na sobreloja de um comércio de ferragens.

Apesar de eu ser um sujeito extremamente metódico e organizado, não preso o hábito de frequentar os mesmos estabelecimentos. Talvez pela minha condição de solitário extremista, passei a última década evitando a repetição de itinerários: jamais a mesma padaria, jamais a mesma lavanderia, o mesmo mercado, o mesmo restaurante, o mesmo cinema, o mesmo boteco. Jamais. Esta minha orientação mutável se justificava por dois motivos paradoxais, ainda que interdependentes entre si: 1) repetir locais seria, de certa forma, um meio de alargar meus laços afetivos com os donos e funcionários do estabelecimento - e esta não era minha vontade; 2) minha solidão se revestia tão pesada que eu precisava estar em meio à multidão - mesmo incógnito, ela me acolhia, tornava meu monólogo menos pesado.

Hoje, passado o episódio, acredito que talvez (sempre “talvez”!) eu evitasse quaisquer tipos de intimidades por sentir vergonha da minha solidão. Todos têm um amigo, um vizinho, um parente, um amor. Eu não tinha ninguém. Meus “diálogos” resumiam-se em “sim”, “não”, “obrigado”, “quanto foi?”, “eu gostaria de...”, “até logo”. Só conversava o essencial, pois se concedesse intimidades a qualquer pessoa, teria o mal-estar de confessar minha falta de vínculos. Professar minha reclusão devastadora seria o mesmo que confessar a miséria de minha inexpressiva existência.

Não frequentava bares. Garçons são bastante comunicativos e sensíveis, e quem sabe, etílico, eu me abrisse com um deles, confessando minha solidão. E ele, ao notar minha voz de pesar, poderia, ali mesmo, iniciar uma piedosa amizade. De tal maneira que eu só bebia em casa, o que tornava o vazio ainda mais acentuado.

Natal, Ano-Novo, Páscoa, Carnaval: estas eram datas que a mim nada significavam. Minha única semelhança com os demais nestas festividades era ligar a tevê e assistir à programação de cada evento. De certa forma, as vozes e as luzes que irradiavam da caixa eletrônica, calcada feito um maciço no meio da minha sala, tornavam-se companhias que abrandavam meu silêncio.

Mas naquele fatídico dia, aprendi que a resistência à coletividade era um subterfúgio que poucos, raríssimos indivíduos se dão ao luxo de idealizar - embora sem sucesso. Pois estamos jogados num poço de gente e suas intermináveis e ilustres histórias.

Talvez (sempre “talvez”!) tenha me acostumado à clausura porque desde a morte de minha mãe, há dezoito anos, eu não senti necessidade de me relacionar com ninguém - fossem parentes, amigos ou amores. Sei que causa estranhamento o que vou confessar agora, mas eu, um homem de cinquenta e sete anos, jamais trabalhei. Vivo da renda do aluguel que duas salas comerciais, localizadas estrategicamente no centro da cidade, proporcionam-me. Não sou um sujeito ambicioso, de modo que meu poder aquisitivo sempre foi suficiente para que eu pagasse a sobreloja no subúrbio, comesse e sustentasse certas regalias como tomar vez ou outra um bom vinho e assistir a filmes de aventura com o Charles Bronson e o Nicolas Cage.

Sou um homem desprovido de grandes feitos. Jamais viajei ao exterior - nem mesmo ao Paraguai eu fui. Minha solidão se bastava nesta cidade feita de multidão. Viagens trazem aventuras, produzem experiências e cenários que instigam o indivíduo a narrar; e isso, eu realmente não buscava.

Contudo, hoje sei que um homem não pode inventar o disparate de controlar o destino, forçando-se à reclusão. Afinal, nunca a solidão é um direito garantido; um bem estabelecido. Não há como resistir.

Hoje eu sei. Como um flash de luz; um relâmpago, tudo se iluminou naquele dia. Naquele distinto dia...

Naquele dia eu me levantei cedo. O corpo pesava na cama, a coluna doía porque havia passado a noite na mesma posição e sempre quando dormia em excesso, levantava-me com uma incômoda cefaleia. Como de praxe, pus a água do café para ferver enquanto tomava meu banho morno.

Naquela manhã eu não senti fome - só tomei café, sem procurar pelo pão, pela mortadela gordurosa ou pelas rosquinhas crocantes, dessas que a gente molha no líquido preto. Só uns goles, nada mais. Não sei dizer com exatidão, mas naquele dia eu sentia uma sensação de desamparo, como se pudesse prever os acontecimentos. Com um vazio, ronco no estômago de ansiedade, peguei o ônibus em direção ao centro. Naquela manhã iria ao banco conferir o depósito de meus aluguéis. Até pensava em comprar umas cortinas novas para o meu quarto, pois as antigas estavam rotas, velhas e deixavam a luz da rua transpassar direto na minha cara, de tal maneira que minhas madrugadas eram sempre muito iluminadas.

Naquele dia a viagem não seria a mesma. Ao passar pela catraca, o cobrador me perguntou:

- Você não tem trinta centavos?

Respondi-lhe que não e então o sujeito, evidentemente ruim em matemática, levou quase um minuto para me voltar sete reais e setenta centavos. Nem me dei ao trabalho de conferir o troco, pois os movimentos bruscos do ônibus me desequilibravam como mamulengo e a qualquer momento eu poderia levar um estrondoso tombo. Dirigi-me ao primeiro assento depois da catraca. Aliviado, sentei-me, pois confesso que sempre fico bastante enjoado com o vai-e-vem dos coletivos - principalmente quando estou de estômago vazio.

O ônibus seguiu a avenida marginal e, no período de vinte minutos, quase não encontrou empecilhos em seu trajeto habitual. Contudo, ao avançar à direita, em direção à Santa Casa de Misericórdia, um imenso, fabuloso, perturbador tráfico se abriu frente aos meus olhos. Todas as quatro pistas da Avenida dos Correios estavam tomadas por carros, luzes, buzinas, fumaças e reclamações dos motoristas impacientes e atrasados. A chuva, que havia se iniciado a poucos minutos, ralinha, parecia ganhar forma e força. Todos - inclusive o cobrador - trataram de fechar suas janelas, o que me transtornou severamente, pois tenho pavor de lugares fechados. Não chega a ser propriamente claustrofobia, porém eu começo a me angustiar ao ver as janelas cerradas, em especial quando tenho o desprazer de presenciar os vidros se embaçando com a respiração matinal, compartilhada no espaço enclausurado. A agonia me atinge de modo contundente quando observo alguma criança brincando de desenhar no vidro, e, logo em seguida, coloca o delicado dedinho na boca. Nestes momentos, tenho vontade de dar uns petelecos na orelha da mãe, pois fico me perguntando se ela não imagina o quanto de “vitamina B - de bactéria” a criança está levando ao organismo? E quanto à tuberculose? Será que ninguém pensa nisso?

O transtorno de me ver naquele ambiente sem frestas e ventilação ia, aos poucos, agravando-se, pois em razão do congestionamento, sabia que o trajeto rotineiro, cumprido em quarenta e cinco minutos, haveria de se alongar infinitamente. “Merda!”, sussurrei. Meu desconforto era tamanho que nem reparei na entrada de dois “elementos suspeitos” (e agora eu até pareço um delegado de polícia falando...). Um deles, pele muito alva, espinhas no rosto, cabelos loiros encaracolados, olhos verdes, trajava uma bermuda vermelha e uma blusa bastante gasta, com a estampa de um time de basquete da superliga americana. O outro, negro, alto, cabelo raspado, extremamente magro, usava uma camisa com a propaganda de um supermercado e shorts de futebol, desses antigos, design da década de oitenta. Ambos calçavam chinelos de borracha. Seus olhos, fixos, luziam um vermelho intenso, revelando o consumo de crack. Obviamente, processei tais informações somente nos momentos anteriores ao desfecho, pois quando os tais “elementos” entraram no coletivo, estava muito ocupado em concentrar meus pensamentos ao meu destino final.

Tudo aconteceu num átimo. Ao distribuir as moedas ao cobrador, o sujeito loiro passou pela catraca, enquanto o negro permaneceu na parte da frente do ônibus. Três, dois, um e o camarada alvo, visivelmente drogado, sacou da cintura uma arma, gritando freneticamente:

- Abaaaaaaaaxa! Abaaaaaaaaxa todo mundo! Barriga no chão, mão nais cabeça! Isso aqui é um assalto!!!

Uma atmosfera de pânico se condensou e todos entraram em histeria. O assaltante, profundamente irritado, berrou:

- Abaaaaaaaaxa pooooorraaaaa!!! Eu mandei abaxáááá!!! Cala a boca seus filu-da-puta ou eu meto bala! No mesmo segundo, um silêncio se instaurou e os passageiros o obedeceram prontamente, enquanto ele prosseguia a disseminar o terror: - Tão vendo isso aqui na minha mão? Não é brinquedo não!!! Quietinhuuu, porque o primeiro barulho que eu escutá, eu atiro! Quem é que qué morre primêro?. Suas palavras ecoavam com um misto de gozo e sadismo, enquanto apontava a arma contra a cabeça do rapaz deitado à minha esquerda.

Neste instante, o ônibus abafado e o trânsito parado não mais me afligiam. Só sentia o coração acelerado, descompassado, parecendo inflar no peito. Era como se aquela situação não passasse de um estranho pesadelo.

Na frente do ônibus, o rapaz negro apontava a arma para as costas do próprio companheiro, demonstrando não saber direito o que fazia ali. Certamente, ele não tinha o domínio da pontaria, muito menos o campo de visão de um atirador. Num relance, o loiro gritou-lhe, surpreendido:

- Caraaaaaalho Mosquito! Vira esse bagulho aí cabeça do motorista! Tu doidão meu irmão! Qué me ferrá, é?

- Foi mal aí Cavêra!! Fica frio bródi. tudo sob controle!!

“Sob controle?”, eu pensava. Como poderia estar tudo “sob controle” se um ônibus lotado era agora refém de dois assaltantes drogados e violentos? Detalhe: em pleno congestionamento? Como aqueles caras podiam ser tão burros?, eu me revoltava.

O fato é que ambos não tinham consciência de seus atos. Na angústia incontida de arrumar dinheiro para sustentar o vício, aqueles indivíduos drogados agiam no rompante, sem coordenar seus pensamentos. E era exatamente aí que residia o perigo: o impulso desenfreado sempre foi irmão siamês do problema.

Ainda apontando a arma em direção à cabeça do rapaz, “Cavêra” comandava as “instruções”:

- Se vocêis não querêre levá bala, é bom me obedecê. O primêro disgraçado que tentá fazê gracinha, vai encontrá o capeta no inferno! Tão ligado?

Ninguém se mexeu. Sem motivo aparente, “Cavêra” fixou o olhar em uma moça abaixada exatamente ao lado do sujeito à minha esquerda. Deslocando a arma da cabeça do rapaz, num centésimo de segundo, passou a mirá-la em direção à nuca da jovem. Com voz mansa, disse:

- Levanta benzinho! Vâmo! Levanta!!! Isso, devagar, beeeem gostoooosaaaa...

A moça, apavorada, seguiu suas ordens. Ele então afrouxou o corpo da bonita morena contra o seu e, imobilizando-a pelo pescoço, passou a forçar a arma contra sua têmpora direita. Num tom jocoso, cheirando seu pescoço, falou:

- Noooossa! Mas que perfume, hein? Isso é que é mulher!!! Bonitinha, cheirosinha, bundinda redonda, é assim que eu gosto..., abusou-a, apalpando suas nádegas.

Subitamente, ouviu-se um choro de criança:

- Mãããããããe!!! Mãããããããe!!! Solta a minha mãe!, berrou a pobre menina, imobilizada por uma senhora mais velha, aparentemente sua avó.

Como se era de esperar, “Cavêra” não se sensibilizou com o sofrimento da garotinha. Aliás, esperar que um sujeito daqueles - drogado, dentes podres, com uma tatuagem horrorosa no braço direito, exibindo uma caveira pingando sangue - sentisse comoção por uma criança, era o mesmo que esperar que o XV de Piracicaba se tornasse campeão brasileiro da Série A... Frio, ele soltou a voz:

- Cala a boca pirrrraaalha! Cala a boca ou eu meto um balaço na cabeça dessa vagabunda da tua mãezinha!

A criança continuou chorando, porém sua voz foi abafada pelo casaco da provável avó, que tentava conter os impulsos da pequena para que o bandido não se zangasse ainda mais.

Não sei dizer muito bem, mas ao ver aquela menina de seis, sete anos, batendo os pés contra o chão; sua voz querendo escapar; seu corpinho se rebelando para “salvar” a mãe - nesta fração de segundo uma comoção me invadiu. Era uma combinação de piedade, senso de justiça e inquietação. Irrequieto, levantei a cabeça, fitei o bandido e lhe dirigi a palavra:

- Ei, por favor, larga a moça! Eu fico no lugar dela.

“Cavêra” abaixou a cabeça em minha direção. Com um sorriso cínico no rosto, respondeu-me:

- Cala a boca aí, tio! Fica na tua!

Sem saber exatamente de onde garimpava coragem para falar com aquele sujeito bronco, violento e fora de si, que apontava sua arma como quem segura um objeto de afeto, forjei uma lógica:

- Óoo, mulher é tuuudo neurótica! Se a polícia baixar, ela vai começar a berrar e os tiras vão pra cima! Besteira se arriscar tanto! Deixa a moça ir!

Ao finalizar meu pensamento rápido e inventado, acreditei que “Cavêra” iria me mandar calar a boca novamente. Mas este foi o meu engano. Depois de ouvir meu argumento, “Mosquito” falou a meu favor:

- Pô “Cavêra”, o tiozinho aí tem razão. Larga a mina, ela com a filha. Mulher é tudo lôôôca mesmo, fica fazêno escândalo. Troca pelo véio!

Aos cinquenta e sete anos, eu nunca havia me considerado um “velho”. Até aquele momento, essa colocação nunca havia passado pela minha cabeça. Porém, ao ouvir Mosquito me chamar de “véio”, percebi quanto tempo eu havia passado em reclusão. Talvez (sempre “talvez!”) por este motivo eu tenha me lançado àquele ato de coragem espontânea. No fundo eu sabia que não era ninguém, um sujeito solitário, mas aquela moça não: ela tinha uma família; três gerações ali se encontravam, uma protegendo a outra. E quanto a mim? Quantas gerações a interceder por mim? Nenhuma. Nunca tive filhos - eu era o verdadeiro “Brás Cubas”, recusando-me a deixar como herança a miséria aos meus.

Um silêncio se fez. “Cavêra” franziu a testa, pensou e acabou acatando o plano do comparsa, liberando-a:

- Vai lá, volta lá sua vaca! Vai lá e cala a boca da putinha da menina porque se ela começá chorá de novo eu cuspo bala!

Ao se afastar do bandido, chorando e tremendo, a moça correu junto à filha. “Cavêra” logo se aproximou de mim. Primeiro, chutou minha cabeça com tamanha violência que um zumbindo estrondoso atacou meus ouvidos. Imaginei que fosse desmaiar. Ele então lançou o olhar aos demais reféns, orgulhoso de seu ato, como se quisesse demonstrar “superioridade”:

- Mané a gente trata assim, óóó, é na porrada!

Ao dizer isso, soltou uma gargalhada longa. Após sua covarde exibição, ordenou:

- Levanta aí tio! Mas d-e-v-a-g-a-r, senão eu te furo na bala! vira presunto na hora!

Zonzo, com a cabeça pesada pelo chute, senti que não conseguiria me levantar. Mas eu sabia que se permanecesse prostrado no chão, ele certamente me “apagaria”, pois sua natureza corrompida pela crueldade facilitava que, sem titubeios, ele atirasse contra meu corpo. Entretanto, ereto, em pé, à sua altura, em posição “nivelada”, sua atitude impiedosa seria menos provável. Aos covardes - assim faziam os nazistas - é muito mais conveniente violentar um corpo inerte; indefeso.

Lentamente fui me levantando. O zumbido em meus ouvidos se intensificou, ao mesmo tempo em que senti uma tontura nauseante. Caí. Ao presenciar minha cena de fraqueza, “Cavêra” soltou uma risada ampla, ecoante, feliz por minha derrocada:

- Levanta aí ôô fracote! Mas é muito veadinho mesmo! Levanta, vâmo, pooorra, eu não tenho o dia intêro não...

Desta vez, respirei fundo, e, concentrado, inicialmente apoiei as mãos contra o chão. Sabia que meus movimentos necessitavam ser minuciosos para que não sofresse outra vertigem. Após levantar o tronco, com o impulso dos pés, ia me segurando na barra de apoio que ficava ao lado do cobrador. Meus movimentos eram pacientes; atentos - em câmera-lenta consegui me levantar. Ligeiro, “Cavêra” agarrou meu pescoço contra o seu tronco e apontou a arma rente à têmpora.

Aturdido, sem forças; bastante atordoado pelo chute na cabeça, tive de realizar um enorme esforço para não desmaiar. A moça e sua provável mãe, juntas à menininha, lançavam-me olhares fraternos - concomitantemente ricos em compaixão e gratidão. Esses foram os últimos olhares que capturei em vida.

Tudo aconteceu em menos de três minutos. Avisados pelo celular de um dos reféns, que, logo no início do assalto, cabisbaixo, enviou uma mensagem ao 190, os policiais invadiram o ônibus. Com destreza, habilidade e agilidade assombrosas, o Esquadrão rendeu “Mosquito”, sem que o bandido esboçasse qualquer tipo de reação.

O grupo, todo vestido de preto, com coletes à prova de bala e máscaras escuras que lhes escondiam o semblante, instaurou o grito de ordem contra “Cavêra”:

- Parado! Larga a arma! Larga a arma! Você está rendido! Não adianta resistir!

Ao virar o pescoço para trás, “Cavêra” viu-se encurralado. Como estava muito próximo do assaltante, senti seus batimentos cardíacos se acelerarem. Porém, sua expressão facial recusava-se a demonstrar sinais de desistência. Forçando ainda mais a arma contra minha cabeça, respondeu-lhes:

- Aí, seus porco filha-da-puta! Se dére mais um passo eu atiro nos miolo do véio!!! Tô falâno sério!

- Calma!, calma!, pediu-lhe um dos policiais. Calma que ninguém quer sair machucado daqui, ?! Vamos negociar...

Enquanto o líder dos policiais proferia estas palavras, quase que imperceptivelmente avançava em direção ao bandido, com a arma apontada na linha de sua nuca. Atrás dele, o Esquadrão emparelhava-se em um bloco condensado; da qualidade de um monolítico imbatível, prestes a desmontar a empáfia do marginal.

Até então, no instante em que aquelas palavras foram proferidas, “Cavêra” não havia percebido a evasão do Esquadrão. Mas ao virar novamente o pescoço à frente do lotação, o desespero tomou-lhe conta:

- Ahhhhaaa! É assim, é? Cêis qué brincá? Vâmo vê quem mata primêro!

Sem raciocinar, tomado pelo impulso da ira, como quem se recusa a perder uma partida de xadrez, “Cavêra” apertou o gatilho. Nesse momento, meu cérebro se estilhaçou em suas mãos, voando pedaços dele até mesmo nas janelas embaçadas do ônibus. Meu corpo caiu. Naquele instante, eu morri.

Como num filme de faroeste, ainda que contrários às ordens superiores de “não” lançar fogo dentro do veículo, o líder do Esquadrão devolveu os tiros, atingindo, com perfeição admirável, a nuca de “Cavêra”. Tiro certeiro. Seu sangue também jorrou como água de cachoeira, e seu corpo caiu sobre o meu.

O choro, misturado ao terror, à comoção e à horripilante cena invadiu o coletivo. O Esquadrão pediu calma. A este ponto, “Mosquito” já se encontrava preso no camburão. Mas eu; eu estava morto.

A imprensa logo chegou. Do alto da cidade, helicópteros sondavam o veículo. Aquele dia não foi mais um dia.

De pessoa completamente reclusa e solitária, passei a ser o nome mais pronunciado em todos os jornais impressos, em todas as estações de rádio e de tevê. No Google, estava associado a milhares de referências. Até na CNN meu corpo inerte foi exibido! Logo eu, um cara sem passaporte, que nem sequer conhecia o Paraguai! No noticiário do horário nobre, um elegante repórter, de terno de cor chumbo e gravata lilás, anunciava minha morte. Sua passagem foi em frente ao ônibus e em meio ao zum-zum-zum da multidão curiosa:

- Hoje pela manhã o Sr. Norberto Dias Ferreira, de cinquenta e sete anos, foi morto à queima-roupa durante um assalto em um ônibus da Linha Dois, exatamente na hora do congestionamento, na Avenida dos Correios. O dependente químico Jessé da Cruz, vinte e três anos, atirou à sangue-frio contra o refém. O Esquadrão Anti-Sequestro, que havia invadido o veículo, não conseguiu salvar o passageiro a tempo. Porém, na troca de tiros, o sequestrador foi morto com um tiro na nuca.

(Pausa. Nesse instante a edição mostrava a cena do crime e a revolta dos passageiros, que criticavam a falta de segurança na cidade). Após as imagens, o jornalista prosseguiu:

- Odilon dos Anjos, vinte e cinco anos, cúmplice no assalto, foi rendido a tempo pelos policiais. Os demais passageiros nada sofreram.

O take de passagem do repórter se acabava e no estúdio do telejornal, o âncora - ainda mais elegante com sua gravata prateada, de listras azuis - perguntava ao jornalista mais detalhes sobre o assalto e sobre o “corajoso” senhor que morreu, tomando o lugar da refém, a auxiliar de cozinha Elizete dos Santos Xavier.

Após uma semana, da condição de recluso e solitário, eu havia me tornado uma “celebridade”; um verdadeiro “herói”. Quem sabe, com o tempo, eu viraria um “mártir”, como tantos outros? Não, acho que não, bastante impossível, pois a imprensa, após falar compulsivamente sobre o caso, um dia, simplesmente, deixaria de lado a história do “herói” da “Linha Dois”.

Entretanto, naqueles dias a imprensa se lembrou de mim a cada minuto. Em um talk show sensacionalista, a bonita morena por quem eu havia intercedido, trajava um vestido pomposo de festa e um penteado cafona, chorando emocionada ao narrar o episódio:

- Ele foi um herói! (Pausa. Lenço secando as lágrimas, para não borrar a maquiagem carregada). Se não fosse por ele, pela coragem dele, agora eu tava morta. E eu tenho a Yasmine Jéssica pra criar. (Pausa. Lenço assoando o nariz).

(Close na menina - observação: que nome horroroso, coitadinha!). Agora ela não mais chorava, era puro sorriso no colo da avó, especialmente porque havia ganhado da produção do programa uma boneca gigante, de cabelos loiros e vestido quadriculado.

Ao final da semana, a imprensa já havia entrevistado a senhora que alugava a sobreloja onde eu morava, os donos da loja de ferragens, o proprietário da padaria ao lado de minha casa, entre outros gatos-pingados que eu mal conhecia, mas que agora me defendiam com unhas e dentes, como se desde a tenra infância tivessem sido meus amigos afetuosos. No domingo, um canal de televisão lançou “com exclusividade” uma entrevista com minha família do Maranhão. Todos (não me lembrava de nenhum daqueles rostos, a não ser o tio Eurípedes e sua mulher Joana) exibiam a mesma camiseta preta - em sinal do “luto” -, estampando uma foto de meu semblante (foto tirada de minha carteira de identidade, por falta de outra! Que infortúnio!). Logo abaixo da imagem, lia-se a seguinte frase, escrita em letras garrafais: “Norberto, nosso herói, nosso orgulho”.

Até mesmo uma vizinha da infância, chamada Eleonora ou Eleodora - um nome assim... - apareceu com a ridícula camiseta. Aparentando “comovida” em razão da tragédia, dizia que eu sempre fui um homem muito corajoso; uma pessoa de coração bom e blá-blá-blá... Quando questionado pela repórter sobre nosso contato, aos prantos, ela soltou:

- Ele foi o meu primeiro beijo! Coitado! É o “nosso herói”, disse ao apontar para a infeliz camiseta com a minha foto. É o nosso Graaaande Herói Brasileiro!

O take fechava nos olhos mareados de Eleonora, Eleodora ou sei lá o nome da infeliz... Ao fundo, em meio às lágrimas, “Love by Grace”, música dessas melosas, horrendas, de tom triste e brega, típica de tema de novela, encerrava a reportagem.

Graças a Deus eu havia morrido.

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