A Garganta da Serpente

Moreno Aguilar

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Tortura

(Moreno Aguilar)

- Apodreça por aí, seu desgraçado!

E fechou a porta numa batida nervosa. Na cela, um corpo. Todo batido, ensanguentado, sujo. Quase nu. Quase gente...

Dias se passaram. A mesma cela, a mesma penumbra, a mesma umidade, a mesma ração, o mesmo "quase-gente".

Era uma tortura. A mais longa, a mais desumana, a mais temida. O cubículo tinha, aproximadamente, dois metros e meio de comprimento, um e meio de largura, e dois de altura. No teto, uma lâmpada de luz amarela e fraca e um interfone para comunicação. Sem janelas. Sem esperanças. Sobre o cimento gelado, um colchão podre e duro. Na porta, uma abertura pequena, colada ao chão, era a passagem do prato, raso de comida. Fuga? Impossível. Só isso... Só isso e aquele silêncio esquizofrênico e aquele odor repugnante.

Mas isso não era a tortura... A tortura não era isso. O sofrimento estava por começar.

Ele sabia. Ele sabia que o teto não pararia. Não, nunca... Num movimento excessivamente lento, aproximar-se-ia. Era como um relógio marcando a hora da morte. Ele podia até calcular. Um centímetro por dia, aproximadamente... Dois metros... Certamente não passaria de seis meses.

Era tempo para pensar, para enlouquecer. Era tempo de recordar a vida, os amores, os ódios, as mortes... Lembrava-se das primeiras ideias de revolução, dos primeiros amigos revolucionários. Sonhava com aquelas reuniões em quartos escondidos na cidade... Sonhava com os sonhos de liberdade e igualdade.

Todo fim do dia, o interfone perguntava: vai contar? O silêncio era a resposta. Não. Ele não queria prejudicar os amigos.

A cada dia um centímetro. A cada centímetro, menos lucidez, mais desespero, mais medo.

Passado o primeiro mês, já não conseguia ficar totalmente em pé. Sua mente ficava mais confusa. Começava a pensar num meio eficiente de suicídio. Sabia que a morte seria fatal. Só queria sofrer menos...

Dois meses. Pediu papel e caneta para o interfone que perguntava. Começou a escrever. Começou assim:

"Diário de um morto

Não importa que dia é hoje, que horas são e qual é o meu nome. Estas coisas são para vivos. Eu já estou morto.".

Quase não havia lugar para ele. A cela estava infestada de insetos que se nutriam dos excrementos.

"Quando olho para estes pequeninos seres que ajudei a desenvolver, sinto-me como um grandioso pai. Cada defecada que dou é um ato de amor. Estou alimentando dezenas de vidas. No entanto, frustro-me. Não consigo diferenciar um filho do outro. Acho que eles nem merecem, pois não devem considerar-me como pai. São mal educados: atrapalham meu sono e estão matando-me com doenças. Alguns foram embora, junto com o prato de comida. Estão livres! Mas a maioria deles fica aqui, comigo... Companheiros de cela..."

Escreveu regularmente durante um mês, aproximadamente. Estava quase morto. Febre, feridas, dores, gemidos... Realmente o carcereiro acertou quando disse: apodreça por aí, seu desgraçado.

"Diário! Hoje nos salvaremos! Vamos começar vida nova. Mandei o Tim avisar a turma. Ele saiu com o prato de ontem. Acho que já deve ter chegado. Grande Tim... Foi o mosquito mais legal que conheci. Agora, é só contar onde é o esconderijo e pronto: liberdade!".

Pobre ser. Seu cérebro também apodrecia. Nesse mesmo dia contou tudo para o interfone. Logo que acabou:

- Então? Pode me libertar!

- Quem disse em liberdade? - tremeu vigorosamente o diafragma do alto-falante.

- Mas, mas...

O teto descia rapidamente. O barulho das engrenagens abafava os berros de misericórdia. Em poucos segundos, teto e piso colados. No meio, feito massa de pastel, mais um revolucionário.

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