Era por sessenta e tantos... Musa, lembra-me as causas desta paixão
romântica, conta as suas fases e o seu desfecho. Não fales em verso,
posto que nesse tempo escrevi muitos. Não; a prosa basta, desataviada,
sem céus azuis nem garças brancas, a prosa do tabelião
que sou neste município do Ceará.
Era no Rio de Janeiro. Tinha eu vinte anos feitos e mal feitos, sem alegrias,
longe dos meus, no pobre sótão de estudante à rua da Misericórdia.
Certamente a vida do estudante de matemáticas era alegre, e as minhas
ambições, depois do café e do cigarro, não iam além
de um e outro teatro, mas foi isto mesmo que me deitou "uma gota amarga
na existência". É a frase-textual que escrevi em uma espécie
de diário daquele tempo, rasgado anos depois. Foi no teatro que vi uma
criaturinha bela e rica, toda sedas e joias, com o braço pousado
na borda do camarote, e o binóculo na mão. Eu, das galerias onde
estava, dei com a pequena e gostei do gesto. No fim do primeiro ato, quando
se levantou, gostei da figura. E dai em diante, até o fim do espetáculo,
não tive olhos para mais ninguém, nem para mais nada: todo eu
era ela.
Se estivesse com outros colegas, como costumava, é provável que
não gastasse mais de dois minutos com a pequena; mas naquela noite estava
só, entre pessoas estranhas, e inspirado. Ao jantar, fizera de cabeça
um soneto. Demais, antes de subir à galeria quedara-me à porta
do teatro a ver entrar as famílias. A procissão de mulheres, a
atmosfera de cheiros, a constelação de pedrarias entonteceram-me.
Finalmente, acabava de ler um dos romances aristocráticos de Feuillet,
exemplar comprado por um cruzado em não sei em que belchior de livros.
Foi nesse estado de alma que descobri aquela moça do quinto camarote,
primeira ordem, à esquerda, teatro lírico.
Antes de acabar o espetáculo, desci a escada, quatro a quatro, e vim
colocar-me no corredor, defronte do camarote de Sílvia. Dei-lhe este
nome por ser doce, e por havê-lo lido não sei onde. Silvia apareceu
à porta do camarote, logo depois de cantada a ópera, metida em
capa rica de cachemira, e com uns olhos que eu não pudera ver bem de
cima, e valiam, só por si, todas as joias e todas as luzes do
teatro. Outra senhora estava com ela, e dois homens também; deram-lhes
os braços, e eu acompanhei-as logo. A marcha foi lenta, eu desejava que
não acabasse mais, mas acabou. Silvia entrou no carro que esperava a
família, e os cavalos pegaram do meu tesouro e o levaram atrás
de si.
Nessa mesma noite escrevi os meus versos - A visão. Dormi mal e acordei
cedo. Abri a janela do sótão, e a luz que entrou no meu pobre
aposento, ainda mais aumentou o meu delírio da véspera. Comparei
as minhas alfaias de estudante com as sedas, cachemiras, joias e cavalos
de Sílvia, e compus umas sextilhas que não transcrevo aqui para
não dar ciúmes à minha tabelioa, a quem já as recitei,
dizendo que não prestavam para nada. E creio que não. Se as citasse
não seria mais que por veracidade e modéstia, mas prefiro a paz
doméstica ao complemento do escrito. Em verdade, não há
negar que por esses dias andei tonto. Não seria exatamente por aquela
moça do teatro, mas por todas as outras da mesma condição
e de iguais atavios. Tornei ao teatro dali a dias, e vi-a, em outro camarote,
com igual luxo e a mesma graça fina. Os meus companheiros de escola não
me permitiram fitá-la exclusivamente: mas como deveras amavam a música,
e a ouviam sem mais nada, eu aproveitava os melhores trechos da ópera
para mirar a minha incógnita.
- Quem é aquela moça? perguntei a um deles, à saída
do saguão.
- Não sei.
Ninguém me disse nada, não a encontrei mais, nem na rua do Ouvidor,
nem nos bairros elegantes por onde me meti, à espera do acaso. Afinal
abri mão deste sonho, e deixei-me estar no meu sótão, com
os meus livros e os meus versos. Foi então que a outra moça me
apareceu.
O meu sótão dava para o morro do Castelo. Numa daquelas casas
trepadas no morro, desordenadamente, vi um vulto de mulher, mas só adivinhei
que o era pelo vestido. Cá de longe, e um pouco de baixo, não
podia distinguir as feições. Estava afeito a ver mulheres nas
outras casas do morro, como nos telhados da rua da Misericórdia, onde
algumas vinham estender as roupas que lavavam. Nenhuma me atraía mais
que por um instante de curiosidade. Em que é que aquela me prendeu mais
tempo? Cuido que, em primeiro lugar, o meu estado de vocação amorosa,
a necessidade de uma droga que me curasse daquela febre recente e mal extinta.
Depois, - e pode ser que esta fosse a principal causa - porque a moça
de que trato parecia justamente olhar de longe para mim, ereta no fundo escuro
da janela. Duvidei disto a principio, mas erigi também o corpo, ergui
a cabeça, adiantei-a sobre o telhado, recuei, fiz uma série de
gestos que revelassem o interesse e a admiração. A mulher deixou-se
estar; - nem sempre na mesma atitude, inclinava-se, olhava para um e outro lado,
mas tornava logo, e continuava ereta no fundo escuro.
Isto aconteceu de manhã. De tarde, não pude vir a casa, jantei
com os rapazes. Na manhã seguinte quando abri a janela, já achei
na outra do morro a figura da véspera. Esperava-me, decerto; a atitude
era a mesma, e, sem poder jurar que lhe vi algum movimento de longe, creio que
fez algum. Era natural fazê-lo, caso me esperasse. No terceiro dia cumprimentei-a
cá de baixo; não respondeu ao gesto e pouco depois entrou. Não
tardou que voltasse, com os mesmos olhos, se os tinha, que eu não podia
ver nada, estirados para mim. Estes preliminares duraram cerca de duas semanas.
Então eu fiz uma reflexão filosófica, acerca da diferença
de classes; disse comigo que a própria fortuna era por essa graduação
dos homens, fazendo com que a outra moça, rica e elegante, de alta classe,
não desse por mim, quando estava a tão poucos passos dela, sem
tirar dela os olhos, ao passo que esta outra, medíocre ou pobre, foi
a primeira que me viu e me chamou a atenção. É assim mesmo,
pensei eu; a sorte destina-me esta outra criatura que não terá
de subir nem descer, para que as nossas vidas se entrelacem e nos deem
a felicidade que merecemos. Isto me deu uma ideia de versos. Lancei-me
à velha mesa de pinho, e compus o meu recitativo das Ondas: "A vida
é onda dividida em duas..." "A vida é onda dividida
em duas..." Oh! quantas vezes disse eu este recitativo aos rapazes da Escola
e a uma família da rua dos Arcos! Não frequentava outras
casas; a família compunha-se de um casal e de uma tia que também
fazia versos. Só muitos anos depois vim a entender que os versos dela
eram maus; naquele tempo achava-os excelentes. Também ela gostava dos
meus, e os do recitativo dizia-os sublimes. Sentava-se ao piano um pouco desafinado,
logo que eu lá entrava e, voltada para mim:
- Sr. Josino, vamos ao recitativo.
- Ora D. Adelaide, uns versos que...
- Que o que? Ande: "A vida é onda dividida em duas..."
E eu:
- A vida é onda dividida em duas...
- Delicioso! exclamava ela no fim, entornando os olhos murchos e cobiçosos.
Os meus colegas da Escola eram menos entusiastas: alguns gostavam dos versos,
outros não lhes davam grande valor, mas eu lançava isto à
conta da inveja ou da incapacidade estética. Imprimi o recitativo nos
semanários do tempo. Sei que foi recitado em várias casas, e ainda
agora me lembro que, um dia passando pela rua do Ouvidor, ouvi a uma senhora
dizer a outra: "Lá vai o autor das Ondas"
Nada disso me fez esquecer a moça do morro do Castelo, nem ela esquecia.
De longe, sem nos distinguirmos um ao outro, continuávamos aquela contemplação
que não podia deixar de ser muda, posto que eu às vezes desse
por mim a falar alto: "Mas quem será aquela criatura?" e outras
palavras equivalentes. Talvez ela perguntasse a mesma coisa. Uma vez, lembrando-me
de Sílvia, consolei-me com esta reflexão:
- Será uma por outra; esta pode ser até que valha mais. Elegante
é; isso vê-se cá mesmo de longe e de baixo.
Os namoros dos telhados são pouco sabidos das pessoas que só
têm namorado nas ruas; é por isso que não têm igual
fama. Mais graciosos são, e romanescos também. Eu já estava
acostumado a eles. Tivera muitos, de sótão a sótão,
e mais próximos um do outro. Víamo-nos os dois, ela estendendo
as roupas molhadas da lavagem, eu a folhear os meus compêndios. Risos
de cá e de lá, depois rumo diverso, um pai ou mãe que descobria
a troca de sinais e mandava fechar as janelas, uma doença, um arrufo
e tudo acabava.
Desta vez, justamente quando eu não podia distinguir as feições
da moça, nem ela as minhas, é que o namoro estava mais firme e
continuava. Talvez por isso mesmo. O vago é muito em tais negócios;
o desconhecido atrai mais. Assim foram decorrendo dias e semanas. Já
tínhamos horas certas, dias especiais em que a contemplação
era mais longa. Eu, depois dos primeiros tempos, temi que houvesse engano da
minha parte, isto é, que a moça olhasse para outro sótão,
ou simplesmente para o mar. O mar não digo: não prenderia tanto,
mas a primeira hipótese era possível. A coincidência, porém,
dos gestos e das atitudes, a espécie de respostas dadas à espécie
de perguntas que eu lhe fazia, trouxeram-me a convicção de que
realmente éramos nós dois os namorados. Um colega da Escola, por
esse tempo meu camarada intimo, foi o confidente daquele mistério.
- Josino, disse-me ele, e porque é que não vais ao morro do Castelo?
- Não sei onde fica a casa.
- Ora essa! Marca bem a posição cá de baixo, vê
as que lhe ficam ao pé e sobe; se não estiver na ladeira, há
de estar no alto em algum lugar...
- Mas não é só isto, disse eu; penso que se lá
for e achar a casa é o mesmo que nada. Poderei conhecê-la, mas
como é que ela saberá quem eu sou?
- É boa! Tu ficas conhecendo a pessoa, e escreve-lhe depois que o moço
assim e assim lhe passou pela porta, em tal dia, a tantas horas, é o
mesmo do sótão da rua da Misericórdia.
- Já pensei nisso, respondi dali a um instante, mas confesso-te que
não quis tentar nada.
- Por que?
- Filho, o melhor deste namoro é o mistério...
- Ah! poesia!
- Não é poesia. Eu, se me aproximo dela, posso vir a casar, e
como me hei de casar sem dinheiro? Para ela esperar que eu me forme, e arranje
um emprego...
- Bem; é então um namoro de passagem, sempre dá para versos
e para matar o tempo.
Deitei fora o cigarro, apenas começado (estávamos no Café
Carceler), e dei um murro no mármore da mesa; acudiu o criado a perguntar
o que queríamos, respondi-lhe que fosse bugiar, e após alguns
instantes declarei ao meu colega que não pensava em matar tempo.
- Vá que faças versos; é um desabafo, e ela merece-os;
mas matar o tempo, deixá-la ir aos braços de outro...
- Então... queres... raptá-la?
- Oh! não! Tu bem sabes o que eu quero, Fernandes. Eu quero e não
quero; casar é o que eu quero, mas não tenho meios, e estou apaixonado.
Esta é a minha situação.
- Francamente, Josino; fala sério, não me respondas com chalaças.
Tu estás deveras apaixonado por essa moça?
- Estou.
- Essa moça, quero dizer, esse vulto, por que tu não sabes ainda
se é moça ou velha.
- Isso vi; a figura é de moça.
- Em suma, um vulto. Nunca lhe viste a cara, não sabes se é feia
ou bonita.
- É bonita.
- Adivinhaste?
- Adivinhei. Há um certo sentido na alma dos que amam que faz ver e
saber as coisas ocultas ou obscuras, como se fossem claras e patentes. Crê,
Fernandes; esta moça é bela; é pobre, e está doida
por mim; eis o que te posso afirmar, tão certo como aquele tílburi
estar ali parado.
- Que tilburi, Josino? perguntou ele depois de puxar uma fumaça ao cigarro.
Aquilo é uma laranjeira. Parece tilburi por causa do cavalo, mas todas
as laranjeiras têm um cavalo, algumas dois; é a matéria
do nosso segundo ano. Tu mesmo és um cavalo pegado a uma laranjeira,
como eu; estamos ambos ao pé de um muro, que é o muro de Troia,
Troia é dos troianos, e a tua dama naturalmente cose para fora.
Adeus, Josino, continuou ele erguendo-se e pegando o café; não
dou três meses que não estejas doido, a menos que o doido não
seja eu.
- Vai caçoar para o diabo que te leve! exclamei furioso.
- Amém!
Este Fernandes era o chalaceiro da Escola, mas todos lhe queriam bem e eu mais
que todos. No dia seguinte foi visitar-me ao sótão. Queria ver
a casa do morro do Castelo. Verifiquei primeiro se ela estava à janela;
vendo que não, mostrei-lhe a casa. Reparou bem onde era, e acabou dizendo-me
que ia passar por lá.
- Mas eu não te peço isto.
- Não importa. Vou descobrir a caça, e direi depois se é
má ou boa. Ora espera; lá está um vulto.
- Entra, entra, disse-lhe puxando por ele. Pode ver-te e desconfiar que estou
publicando o nosso namoro. Entra e espera. Lá está, é ela...
A vista do meu colega não dava para descobrir de baixo e de longe as
feições da minha namorada. Fernandes não pôde saber
se ela era feia ou bonita, mas concordou que o ar do corpo era elegante. Quanto
a casa estava marcada; iria rondar por ela, até descobrir a pessoa. E
por que não comprava eu um binóculo? perguntou-me. Achei-lhe razão.
Se na ocasião achasse igualmente dinheiro teria o binóculo na
manhã seguinte; mas, na ocasião faltava-me dinheiro e os binóculos
já então não eram baratos. Respondi com a verdade, em primeiro
lugar; depois aleguei ainda a razão do vago e do incerto. Era melhor
não conhecer a moça completamente. Fernandes riu-se e despediu-se.
A situação não mudou. Os dias e as semanas não
fizeram mais que apertar-nos um ao outro, sem estreitar a distância. Mostras
e contemplações de longe. Cheguei aos sinais de lenços
e ela também. De noite, tinha vela acesa até tarde; ela se não
ia até à mesma hora, chegava às dez, uma noite apagou a
vela às onze. De ordinário, apesar de já não ver
a luz dela, conservava a minha acesa para que ela dormisse tarde, pensando em
mim. As noites não foram assim seguidas, desde principio; tinha hábitos
noturnos, passeios, teatros, palestras ou cafés, que eram grande parte
da minha vida de estudante; não mudei logo. Mas ao cabo de um mês,
entrei a ficar todas as noites em casa. Os outros estudantes notavam a ausência;
o meu confidente espalhava que eu trazia uns amores secretos e criminosos.
O resto do tempo era dado às musas. Convocava-as - elas vinham dóceis
e amigas. Horas e horas enchíamos o papel com versos de vária
casta e metro, muitos dos quais eram logo divulgados pelas gazetas. Uma das
composições foi dedicada à misteriosa moça do Castelo.
Não tinham outra indicação; aquela pareceu-me bastante
ao fim proposto, que era ser lido e entendido. Valha-me Deus! Julguei pelas
suas atitudes daquele dia que realmente os versos foram lidos por ela, entendidos
finalmente e beijados.
Chamei-lhe Pia. Se me perguntares a razão deste nome, ficarás
sem resposta; foi o primeiro que me lembrou, e talvez porque a Ristori representava
então a Pia de Tolomei. Assim como chamei Silvia à outra, assim
chamei Pia a esta; mania de lhes dar um nome. A diferença é que
este se prestava melhor que o outro a alusões poéticas e morais;
atribuí naturalmente à desconhecida a piedade de uma grande alma
para com uma pobre vida, e disse isto mesmo em verso, - rimado e solto.
Um dia, ao abrir a janela, não vi a namorada. Já então
nos víamos todos os dias, a hora certa, logo de manhã. Posto que
eu não tivesse relógio, sabia que acordava cedo, à mesma
hora; quando erguia a vidraça, já a via à minha espera,
no alto. Daquela vez esperei; o tempo correu, saí para o almoço
e para a Escola. O mesmo no dia seguinte. Supus que seria ausência ou
moléstia; esperei. Passaram-se dois dias, três, uma semana. Fiquei
desesperado; não exagero, fiquei fora de mim. E não pude dissimular
esse estado; o meu confidente da Escola desconfiou que havia algum a coisa,
eu contei-lhe tudo. Fernandes não acabava de crer.
- Mas como, Josino? Pois uma criatura que nem sequer conheces... é impossível!
A verdade é que nunca a viste; mirar de longe um vulto não é
ver uma pessoa.
- Vi-a, gosto dela, ela gosta de mim, aí tens.
- Confessa que amanhã, se a encontrares na rua, não és
capaz de a conheceres.
- O meu coração há de conhecê-la.
- Poeta!
- Matemático!
Tínhamos razão os dois. Não é preciso explicar
a afirmação dele; explico a minha. O meu amor, como vistes, era
puramente intelectual; não teve outra origem. Achou-me, é verdade,
inclinado a amar, mas não brotou nem cresceu de outra maneira. Tal era
o estado de minha alma, - e porque não do meu tempo? - que assim mesmo
me governou. Acabei amando um fantasma. Vivi por uma sombra. Um puro conceito
- casada ou solteira, feia ou bonita, velha ou moça - quem quer que era
que eu não conheceria na rua, se a visse, enchia-me de saudades. Fiquei
arrependido de não a ter buscado no morro; haver-lhe-ia escrito, saberia
quem era, e para onde fora, ou se estava doente. Esta última hipótese
sugeriu-me a ideia de ir ao morro procurar a casa. Fui; ao cabo de algum
tempo e trabalho dei com a casa fechada. Os vizinhos disseram-me que a família
saíra para um dos arrabaldes, não sabiam qual deles.
- Está certo que é a família Vieira? perguntei eu cheio
de maquiavelismo.
- Vieira? Não, senhor; é a família Maia, um Pedro Maia,
homem do comércio.
- Isso mesmo; tem loja na rua de São Pedro, São Pedro ou Sabâo...
- A rua não sabemos; não se dá com vizinhos. Há
de crer que só ultimamente nos cumprimentava? Muito cheio de si. Se é
seu amigo, desculpe...
Fiz um gesto de desculpa, mas fiquei sem saber a loja do homem, nem o arrabalde
para onde fora; sabia só que tornaria à casa, e era muito. Desci
animado. Bem; não a perdi, ela volta, disse comigo.
E terá pensado em mim?
Resolvi pela afirmativa. A imaginação mostrou-me a desconhecida
vendo passar as horas e os dias, onde quer que estava com a família,
a cuidar do desconhecido da rua da Misericórdia. Talvez me tivesse feito
na véspera da partida algum sinal que não pude ver. Se cuidou
que sim, estaria um pouco mais consolada, mas a dúvida poderia assaltá-la,
e a inquietação complicaria a tristeza.
Entramos nas férias. A minha ideia era não ir a província,
ficar por qualquer pretexto, e esperar a volta da minha diva. Não contava
com a fatalidade. Perdi minha mãe; recebi carta do meu pai, dizendo estar
à minha espera. Haveis de crer que hesitei? Hesitei; mas a ordem era
imperiosa, a ocasião triste, e meu pai não brincava.
- Vou, não tenho remédio, mas...
Como dizer à misteriosa Pia que ia à província, que voltaria
dois ou três meses depois, e que me esperasse? A princípio lembrou-me
incumbir o meu colega Fernandes de a avisar, de manter o sacro fogo, até
que me achasse de volta. Fernandes era assaz engenhoso e tenaz para desempenhar-se
disto; mas abri mão dele, por vergonha. Então lembrou-me outra
coisa; não deixaria o sótão, conservá-lo-ia alugado,
mediante a garantia do correspondente de meu pai, a pretexto de não haver
melhor lugar para residência de estudante.
Quando voltasse, já ela estaria ali também. Não se enganaria
com outro, porque nunca a janela se abriria na minha ausência; eu, apenas
tornasse, recomeçaria a conversação de outro tempo. Isto
feito, meti-me no vapor. Custa-me dizer que chorei, mas chorei.
Tudo o que vos acabo de dizer é vergonhoso, como plano, e dá ideia
de uma sensibilidade mui pouco matemática; mas, sendo verdade, como é,
e consistindo nesta o único interesse da narração, se algum
lhe achais, força é que vos diga o que se passou naquele tempo.
Embarquei, e fui para a província. Meu pai achou-me forte e belo, disse
que tinha boas notícias minhas, tanto de rapaz como de estudante, dadas
pelo correspondente e outras pessoas.
Gostei de ouvi-lo e cuidei de confirmar a opinião, metendo-me a estudar
nas férias. Dois dias depois, declarou-me ele que estava disposto a fazer-me
trocar de carreira. Não entendi. Ele explicou-me que, bem pensado, era
melhor bacharelar-me em direito; todos os seus conhecidos mandavam os filhos
para o Recife. A advocacia e a magistratura eram bonitas carreiras, não
contando que a câmara dos deputados e o senado estavam cheios de juristas.
Todos os presidentes de província não eram outra coisa. Era muito
mais certo, brilhante e lucrativo. Repetiu-me isto por dias. Eu rejeitei os
presentes de Artaxerxes; combati as suas ideias, desdenhei a jurisprudência,
e nisto era sincero; as matemáticas e a engenharia faziam-me seriamente
crer que o estudo e a prática das leis eram ocupações ocas.
Para mim a linha mais curta entre os dois pontos valia mais que qualquer axioma
jurídico. Assim que não era preciso ter nenhuma paixão
amorosa para me animar a recusar o Recife; é certo, porém, que
a moça do Castelo deu algum calor à minha palavra. Já agora
queria acabar um romance tão bem começado.
Sobretudo havia em mim, relativamente à moça do Castelo, uma
aventura particular. Não queria morrer sem conhecê-la. O fato de
haver deixado o Rio de Janeiro sem tê-la visto de perto, cara a cara,
pareceu-me fantástico. Achei razão ao Fernandes. A distância
tornava mais dura esta circunstância, e a minha alma começou a
ser castigada pelo delírio. Delírio é termo excessivo e
ambicioso, bem sei; maluquice diz a mesma coisa, é mais familiar e dá
a esta confissão uma nota de chufa que não destoa muito do meu
estado. Mas é preciso alguma nobreza de estilo em um namorado daqueles
tempos, e namorado poeta, e poeta cativo de uma sombra. Meu pai, depois de teimar
algum tempo no Recife, abriu mão da ideia e consentiu em que eu
continuasse as matemáticas. Como me mostrasse ansioso por tornar à
Corte, desconfiou que andassem comigo alguns amores espúrios, e falou
de corrupção carioca.
- A Corte sempre foi um poço de perdição; perdi lá
um tio...
O que lhe confirmou esta suspeita foi o fato de haver ficado por minha conta
o sótão da rua da Misericórdia. Custou-lhe muito aceitar
este arranjo, e quis escrever ao correspondente; não escreveu, mas agora
pareceu-lhe que o sótão ficara em poder de alguma moça
minha, e como não era de biocos, disse-me o que pensava e ordenou-me
que lhe confessasse tudo.
- Antes quero que me fales verdade, qualquer que seja. Sei que és homem
e posso fechar os olhos, contanto que te não percas... Vamos, o que é.
- Não é nada, meu pai.
- Mau! fala verdade.
- Está falada. Meu pai escreva ao Sr. Duarte, e ele dirá se o
sótão não está fechado à minha espera. Não
há muitos sótãos vagos no Rio de Janeiro; quero dizer em
lugar que sirva, porque não hei de ir para fora da cidade, e um estudante
deve estar perto da Escola. E aquele é tão bom! continuei com
o pensamento na minha Pia. Não pode imaginar que sótão,
a posição, o tamanho, a construção; no telhado há
um vaso com miosótis, que dei à gente de baixo, quando embarquei;
hei de comprar outro.
- Comprar outro? Mas tu estudas para engenheiro ou para jardineiro?
- Meu pai, as flores alegram, e não há estudante sério
que não tenha um ou dois vasos de flores. Os próprios lentes...
Hoje dói-me escrever isto; era já uma troça de estudante,
tanto mais condenável quanto meu pai era bom e crédulo. Certamente,
eu possuía o vaso e a doce flor azul, e era verdade que o tinha dado
à gente da casa; mas vós sabeis que o resto era invenção.
- E depois és poeta, concluiu meu pai rindo.
Parti para a Corte alguns dias antes do prazo. Não esqueço dizer
que, durante as férias, compus e mandei publicar na imprensa fluminense
várias poesias datadas da província. Eram dedicadas "à
moça do Castelo", e algumas falavam de janelas cerradas. Comparava-me
aos pássaros que emigram, mas prometem voltar cedo, e voltam. Jurava
neles que tornaria a vê-la em breves dias. Não assinei esses versos;
meu pai podia lê-los, e acharia assim explicado o sótão.
Para ela a assinatura era desnecessária, visto que me não conhecia.
Encontrei a bordo um homem, que vinha do Pará, e a quem meu pai me apresentou
e recomendou. Era negociante do Rio de Janeiro; trazia mulher e filha, ambas
enjoadas. Gostou de mim, como se gosta a bordo, sem mais cerimônia, e
viemos conversando por ali fora. Tinha parentes em Belém, e era associado
em um negócio de borracha. Contou-me coisas infinitas da borracha e do
seu futuro. Não lhe falei de versos; dando comigo a ler alguns, exclamou
rindo:
- Gosta de versos? A minha Estela gosta, e desconfio até que é
poetisa.
- Também faço o meu versinho de pé quebrado, disse eu
com modéstia.
- Sim? Pois ela... Não confunda, não falo de minha mulher, mas
de minha filha. Já uma vez dei com Estela a escrever, com uma amiga,
na mesma mesa, uma de um lado, outra de outro, e as linhas não iam ao
fim. Feliciana falou-lhe nisso, e ela respondeu rindo - que era engano meu;
desconfio que não.
No porto do Recife, vi Estela e a mãe, e daí até o Rio
de Janeiro, pude conversar com elas. A filha, como eu lhe falasse do que o pai
me contara, autorizado por ele, que disse que os poetas naturalmente têm
mais confiança entre si que com estranhos, respondeu envergonhada que
era falso; tinha composto meia dúzia de quadrinhas sem valor. Naturalmente
protestei contra o juízo, e esperei que me desse alguma estrofe, mas
teimou em calar. Era criatura de vinte anos, magra e pálida; faltava-lhe
a elegância e a expressão que só em terra lhe vi, uma semana
depois de chegados. Os olhos eram cor do mar. Esta circunstância fez-me
escrever um soneto que lhe ofereci, e que ela ouviu com muito prazer, entre
a mãe e o pai. O soneto dizia que os olhos, como as vagas do mar, encobriam
o movimento de uma alma grande e misteriosa. Assim, em prosa, não tem
graça; os versos não eram absolutamente feios, e ela fez-me o
favor de os achar parecidos com os de Gonçalves Dias, o que era pura
exageração. No dia seguinte disse-lhe o meu recitativo das Ondas:
"A vida é onda dividida em duas..." Achou-o muito bonito.
- Tem a beleza da oportunidade; estamos no mar, retorqui eu.
- Não, senhor, são bonitos versos. Peço-lhe que os escreva
no meu álbum quando chegarmos.
Chegamos. O pai ofereceu-me a casa; eu dei-lhe o número da minha, explicando
que era um sótão de estudante.
- Os pássaros também moram alto, disse Estela.
Sorri, agradeci, apertei-lhe a mão, e corri para a rua da Misericórdia.
A moça do Castelo chamava-me. De memória, tinha ante mim aquele
corpo elegante, ereto, no escuro da janela, erguendo os braços curvos,
como asas de uma ânfora... Pia, Pia santa e doce, dizia o meu coração
batendo; aqui venho, aqui trago o sangue puro e quente da mocidade, ó
minha doce Pia santa!
Nem Pia nem nada. Durante três, quatro, cinco dias, não me apareceu
o vulto do Castelo. Não sabendo que eu tornara ao sótão,
é natural que não viesse ali às nossas horas de outro tempo.
Também podia estar doente, ou fora, na roça ou na cidade. A ideia
de que se houvesse mudado só me acudiu no fim de duas semanas, e admirou-me
que não houvesse pensado nisto mais cedo.
- Mudou-se, é o que é.
A esperança disse-me que era impossível haver-se mudado. Mudado
para onde? Onde iria uma moça, cujo busto ficava tão bem no escuro
da janela e no alto do morro, com espaço para se deixar admirar de longe,
levantar os braços, e tão em direitura do meu sótão?
Era impossível; assim ninguém se muda.
Já então visitara o negociante. A filha deu-me o álbum
para escrever o recitativo das Ondas, e mostrou-me duas poesias que fizera depois
de chegar: Guanabara e Minhas Flores.
- Qual acha mais bonita?
- Ambas são bonitas.
- Mas uma há de ser mais que a outra, insistiu Estela: é impossível
que o senhor não ache diferença.
- Tem a diferença do assunto; a primeira canta a cidade, e as águas;
a segunda é mais íntima, fala das flores que não quiseram
esperar pela dona, e compara-as às felicidades que também não
esperam; eis a diferença.
Estela ouviu-me com os olhos muito abertos, e toda a vida neles. Uma sombra
de sorriso mostrava que a minha apreciação lhe dava gosto. Após
alguns instantes abanou a cabeça.
- Parece-me que o senhor gosta mais da Guanabara...
- Não há tal!
- Então não presta?
- Que ideia, d. Estela! Pois um talento como o seu há de fazer
versos que não prestem?
- Acha-me talento?
- Muito.
- É bondade sua. Então a outra é que lhe parece melhor?
Como teimasse tanto, achei de bom aviso concordar que uma delas era melhor,
e escolhi Minhas Flores. E pode ser que fosse assim mesmo; Guanabara era uma
reminiscência de Gonçalves Dias. Pois a escolha foi o meu mal.
Estela ficou meio alegre, meio triste, e daí em diante, quando me mostrava
alguns versos, e eu achava bons, tinha de lutar muito para prová-lo;
respondia-me sempre que já da primeira vez a enganara.
A ação do tempo fez-se naturalmente sentir, em relação
à moça do Castelo. Um dia vi ali um vulto, e acreditei que fosse
a minha incógnita; tinha uma blusa branca; atentei bem, era um homem
em mangas de camisa. Fiquei tão vexado de mim e daquela interminável
esperança, que pensei em mudar de casa. A alma de rapaz é que
principalmente reagiu - e as matemáticas venceram a fantasia, - coisa
que poderiam ter feito muito antes. Conto assim a minha história, sem
confiança de ser crido, não por ser mentira, mas por não
saber contá-la. A coisa vai como me lembra e a pena sabe, que não
é muito nem pouco. As matemáticas não só venceram
a fantasia, mas até quiseram acabar com os versos; disseram-me que nem
fosse mais à casa de Estela.
- É o que vou fazer; nem versos de homens nem de mulheres. E depois,
já penso demais naquela espevitada...
Espevitada! Dai a algumas semanas a lembrança deste nome enchia-me de
remorsos; estava apaixonado por ela. Achava-lhe os versos deliciosos, a figura
angélica, a voz argentina (rimando com divina, musa divina) toda ela
uma perfeição, uma fascinação, uma salvação.
Os versos que fiz por esse tempo, não têm conta na aritmética
humana. A musa entrou-me em casa e pôs fora as matemáticas. Ficou
ela só, e os seus metros e consoantes que ainda não eram ricos
nem raros como agora. As flores que rimei com amores, os céus que rimei
com véus, podiam receber outros mundos e cobri-los a todos. Ela era menos
fecunda que eu, mas os versos continuavam a ser deliciosos. Já então
eu os declarava tais com entusiasmo.
- Não está caçoando?
- Não, meu anjo! Pois eu hei de...? São lindíssimos; recite-os
outra vez.
E ela recitava, e eu ouvia com os olhos em alvo. Projetamos imprimir e publicar
os nossos versos em um só volume comum, com esse título: Versos
dela e dele. A ideia foi minha, e ela gostou tanto que começou
logo a copiá-los em um livro que tinha em branco. As composições
seriam alternadas, ou as de um de nós formariam uma parte do livro? Nesta
questão gastamos muitos dias. Afinal resolvemos alterná-los.
- Uns serão conhecidos pela própria matéria, outros pela
linguagem, disse eu.
- Quer dizer que a minha linguagem não presta para nada?
- Que ideia, minha Estela!
- E acho que tem razão: não presta.
Como estávamos sós, ajoelhei-me e jurei pelo céu e pela
terra, pelos olhos dela, por tudo o que pudesse haver mais sagrado que não
pensava assim. Estela perdoou-me e começou a cópia dos versos.
Nisso estávamos, eu ia pouco à Escola, e via raras vezes o Fernandes;
este um dia levou-me a um café, e disse-me que ia casar.
- Tu?
- Sim; caso-me no principio do ano, depois de tomar o grau, e mal sabes com
quem.
- Pois também eu caso-me, disse-lhe daí a alguns segundos.
- Também?
- Ainda não está pedida a noiva, mas é certo que me caso,
e não espero o fim dos estudos. Há de ser daqui a meses.
- Não é a do Castelo?
- Oh! não! Nem pensei mais nisso, é outra, e falta só
pedir-lhe autorização e falar ao pai. É filha de um negociante.
Conheci-a a bordo.
- Que singular caso! exclamou o Fernandes. Sabes tu com quem me caso? com a
moça do Castelo.
Explicou-me tudo. Sabendo que a noiva morara no Castelo, falou-lhe de mim e
do namoro; ela negou, mas ele insistiu tanto que Margarida acabou confessando
e rindo muito do caso.
- Sabes que não sou de ciúmes retrospectivos. Queres tu vê-la?
Agora que vocês dois estão para casar, e nunca se conheceram, há
de ser curioso verem-se e conhecerem-se; eu direi a Margarida que és
tu, mas que tu não sabes; tu ficas sabendo que é ela e que ela
não sabe.
Poucos dias depois, Fernandes levou-me à casa da noiva. Era na rua do
Senado, uma família de poucos meios, pai, mãe, duas filhas, uma
de onze anos. Margarida recebeu-me com afabilidade; estimava muito conhecer
um amigo e colega do noivo, e tão distinto como lhe ouvira dizer muitas
vezes. Não respondi nada; quis honrar a escolha da esposa que o meu Fernandes
fizera, mas não achei palavra que exprimisse este pensamento. Todo eu
era, ou devia ser uma boca aberta e pasmada. Realmente, era uma bela criatura.
Ao vê-la, recordei os nossos gestos de janela a janela, estive a ponto
de lhe atirar, como outrora, o beijo simbólico, e pedir-lhe que levantasse
os braços. Ela não respondera nunca aos beijos, mas erguia os
braços de si mesma por um instinto estético. E as longas horas,
as tardes, as noites... Todas essas reminiscências vieram ali de tropel,
e por alguns minutos encheram-me a alma, a vista, a sala, tudo o que nos cercava,
- O doutor fala-me muita vez no senhor, insistiu Margarida.
- Fala de um amigo, murmurei finalmente.
Tendo-me ele dito que ela sabia ser eu o namorado do sótão pareceu-me
ver em cada gesto da moça alguma repetição daquele tempo.
Era ilusão; mas que esperar de uma alma de poeta, perdida em matemáticas?
Sai de lá com recordações do passado. A vista da rua e
do presente, e sobretudo a imagem de Estela refizeram aqueles fumos.
Há encontros curiosos. Enquanto eu conversava com Margarida, e evocava
os dias de outrora, Estela compunha versos, que me mostrou no dia seguinte,
com este título: Que é o passado? Imediatamente peguei do lápis,
respondi com outros que denominei: Nada. Não os transcrevo por não
me parecerem dignos do prelo; falo dos meus. Os dela eram bons, mas não
devo divulgá-los. São segredos do coração. Digo
só que a modéstia de Estela fê-los achar inferiores aos
meus, e foi preciso muito trabalho para convencê-la do contrário.
Uma vez convencida, releu-os à minha vista três e quatro vezes;
pelo meio da noite, dei com os olhos dela perdidos no ar, e, como tinha ciúmes,
perguntei-lhe se pensava em alguém.
- Que tolice!
- Mas...
- Estava recitando os versos. Você acha mesmo que são bonitos?
- São muito bonitos. Recite você.
Peguei dos versos de Estela e recitei-os outra vez.
O prazer com que ela os ouvia foi, não digo enorme mas grande, muito
grande; tão grande que ainda os recitei uma vez mais.
- São lindos! exclamei no fim.
- Não diga isso!
- Digo sim; são deliciosos.
Não acreditou, posto sorrisse; o que fez foi recitar os versos ainda
uma vez ou duas, creio que duas. Eram só três estrofes; vim de
lá com elas de cor.
A poesia dava à minha namorada um toque particular. Quando eu estava
com o Fernandes dizia-lhe isso, ele dizia-me outras coisas de Margarida, e assim
trocávamos as nossas sensações de felicidade. Um dia comunicou-me
que ia casar dali a três meses.
- Assentou-se tudo ontem. E tu?
- Eu vou ver, creio que breve.
Casaram no dito prazo. Lá estive na igreja do Sacramento. Ainda agora
penso como é que pude assistir ao casamento da moça do Castelo.
Verdade é que estava preso à outra, mas as recordações,
qualquer que fosse o meu atual estado, deviam fazer-me repugnante aquele espetáculo
da felicidade de um amigo, com uma pessoa que... Margarida sorria encantada
para ele, e aceitou os meus cumprimentos sem a menor reminiscência do
passado... Sorriu também para mim, como qualquer outra noiva. Um tiro
que levasse a vida ao meu amigo seria duro para mim, far-me-ia padecer muito
e longo; mas houve um minuto, não me recordo bem qual, ao entrar ou sair
da igreja, ou no altar, ou em casa, minuto houve em que, se ele cai ali com
umas cãibras, eu não amaldiçoaria o céu. Expliquem-me
isto. Tais foram as sensações e ideias que me assaltaram
e com algumas delas sai da casa deles, às dez horas da noite: iam dançar.
- Então a noiva estava bonita? perguntou-me Estela no dia seguinte.
- Estava.
- Muito?
Refleti um instante e respondi.
- Menos que você quando cingir o mesmo véu.
Estela não acreditou, por mais que lhe jurasse, que tal era minha convicção:
eram cumprimentos. Tinha justamente composto na véspera uma poesia, sobre
o assunto, mas tão ruim, que não a mostraria; disse apenas o primeiro
verso:
Se hei de cingir um véu de noiva ou freira...
- Diga os outros!
- Não digo, que não prestam.
Como eu teimasse, e ela quisesse provar que não prestavam, recitou-os
assim mesmo, e confesso que não os achei tão ruins. Foi o nosso
primeiro e sério arrufo. Estela suspeitou que eu estava caçoando,
e não me falou durante uns vinte minutos. Afinal reconciliamo-nos. Como
eu lhe não pedisse os versos, viu nisso a prova de que eles não
prestavam para nada, e disse-mo. Provei-lhe o contrário, arrancando-lhe
o papel da mão.
- Amanhã lhe dou cópia deles.
Copiei-os à noite, sonhei com ela, e no dia seguinte levei-lhe a cópia.
Encontrei-a em caminho, com algumas amigas; iam ver um grande casamento. Acompanhei-as;
à porta da igreja estavam ricas carruagens, cavalos magníficos,
librés de bom gosto, povo à porta, povo dentro. Os noivos, os
pais, os convidados esperavam o padre, que apareceu alguns minutos depois. Compreendi
o gosto das moças em ver casamentos alheios; também eu estava
alvoroçado. O que ninguém ali teve, creio e juro, foi a impressão
que recebi quando dei com os olhos na noiva; era nada menos que a moça
do teatro, a quem eu dera o nome de Silvia, por lhe não saber outro.
Só uma vez a vira, mas as feições não se apagaram
da memória apesar de Margarida, apesar de Estela. O estremeção
que tive não foi visto por ninguém: todos os olhos eram poucos
para ela e para ele. Quem era ele? Um jovem médico.
Não houvera entre mim e esta moça mais que o encontro daquela
noite do teatro; mas a circunstância de assistir ao seu casamento, como
já assistira ao de Margarida, dava-lhe agora um cunho especial. Estaria
eu destinado a ver ir para os braços alheios os meus sonhos mais íntimos?
Assisti ao casamento de Sílvia o menos que pude, olhando para outras
pessoas; afinal tudo acabou, os noivos, os pais e os convidados saíram;
Estela e as amigas foram vê-los entrar nas carruagens.
- Que é que tens? perguntou-me ela na rua.
- Dir-lhe-ei depois.
- Quando?
- Logo.
Em casa disse-lhe que pensava no dia em que fossemos objeto da curiosidade
pública, e a nossa felicidade se consumasse assim.
- Não tardará muito, acrescentei, uma vez formado.
O olhos dela confirmaram este acordo, e a musa o fez por versos que foram dos
mais belos que li da minha poesia.
Sim, o casamento aparecia-me como uma necessidade cada vez maior. Tratei de
ir preparando as coisas de modo que, uma vez formado, não me demorasse
muito. Antes disso, era impossível que meu pai consentisse. Estela estava
por tudo; assim mo disse em prosa e verso. A prosa era a das nossas noites de
conversação, ao canto da janela. O verso foi o de um soneto em
que se comparava à folha, que vai para onde o vento a leva; o fecho era
este:
Eu sou a folha, tu serás o vento.
Ao recordar todas essas coisas, sinto que muitas delas era melhor que se perdessem;
revivê-las não paga o esforço, menos ainda a tristeza, a
saudade, ou como quer que chamemos a um sentimento que, sem levar a gente a
detestar o dia de hoje, traz não sei que remoto sabor do dia de ontem.
Não, não deixo o meu cartório de tabelião do Ceará;
na minha idade, e depois da minha vida, é o melhor Parnaso que conheço.
As escrituras, se não rimam umas com as outras, rimam com as custas,
e sempre me dão algum lazer para recordar versos perdidos, de par com
outros que são eternos... Fiquemos tabelião.
Íamos passando o tempo, sem grave incidente, quando uma tarde o pai
de Estela entrou em casa, anunciando à mulher e à filha que tinha
de ir a São Paulo. Não compreendi porque razão D. Feliciana
empalideceu. Era uma senhora de vida severa e monótona, sem paixões,
sem emoções. Depois é que me contaram algo que me explicou
tudo. O marido de D. Felicíana tinha agora os negócios complicados
e parece que uma vez falara à mulher em fugir do Rio de Janeiro. Foi
o que me disseram uns; outros falavam de amores. Tudo era mentira, mas D. Feliciana
creio que teve medo de uma e de outra coisa, senão de ambas, e, com uma
doçura incomparável, murmurou:
- Guimarães, leva-me a São Paulo!
Guimarães recusou; mas a esposa insistiu, alegando que tinha imensa
vontade de ver São Paulo. Como o marido continuasse a negar, dizendo-lhe
que ia a negócio e não podia carregar a família, além
de ser um desarranjo, a mulher trocou de maneiras, e pôs nos olhos tal
expressão de desconfiança que o fez recuar.
- Vamos todos, Guimarães; havemos de ir todos a São Paulo.
- Sim, podíamos ir... mas é que... por tão pouco tempo...,
cinco ou seis semanas, dois meses... Valerá a pena, Feliciana? Mas, vamos,
se queres; os vapores são pouco cômodos.
Olhei para Estela, pedindo-lhe com o gesto que interviesse contra o desejo
da mãe. Estela empalidecera e perdera a voz; foi o que me pareceu, mas
a prova do contrário é que, passados alguns instantes, como ouvisse
ao pai dizer que sim, que iriam a São Paulo, suspirou esta palavra cheia
de resignação e melancolia:
- Outra vez o mar! Um dia ir-me-ei ao fundo, procurar a pérola da morte!
- Deixe de poesia, menina! ralhou a mãe. O mar até faz bem às
pessoas.
As nossas despedidas foram o que são despedidas de namorados, ainda
por ausências curtas de um ou dois meses. Na véspera da minha partida
tivemos inspiração igual, compor uns versos em que chorássemos
a dor da separação e ríssemos a alegria da volta. Ainda
desta vez os versos dela eram melhores; mas, ou a tristeza ou outra coisa fiz-lhe
crer o contrário; e gastamos alguns minutos em provar, eu a superioridade
dos dela, ela a dos meus. Não menos namorado que poeta, murmurei finalmente:
- Quaisquer que sejam eles, os melhores versos são as tuas lágrimas.
Estela não chorava; esta minha palavra fê-la chorar. Mordeu o
beiço, levou o lenço aos olhos, e disse com um tom único,
um tom que nunca mais esqueci:
- Já sei! é que os meus versos não prestam para nada,
são próprios para o fogo; nem arte nem inspiração,
nada, nada!
- Que dizes, Estela?
- Basta: compreendo. O senhor nunca me teve amor.
- Meu anjo!
- Nunca!
Não pude pegar-lhe na mão; correra à janela. Como eu ali
fosse também, entrou novamente. Só depois de grande resistência
consentiu em ouvir gabar-lhe os versos e explicar a preferência dada às
lágrimas; era por serem dela. As lágrimas, disse-lhe eu, eram
os próprios versos dela mudados em pérolas finas... Estela engoliu
um sorriso vago, enxugou os olhos e releu para si os versos, depois quis que
eu os relesse também, e novamente os releu, até que o pai veio
ter conosco.
- Doutor, disse-me ele, e se fosse também conosco?
- A São Paulo?
- Sim.
- Iria, se pudesse. Já pensei nisso, mas os exames do fim do ano...
- Também são apenas dois meses, ou menos.
Embarcaram para Santos. Fui despedir-me a bordo, e ao voltar para o meu sótão,
comecei logo a escrever a primeira carta; no dia seguinte, remeti-a. Três
dias depois tive a primeira carta de Estela, uma breve e triste carta que falava
mais do mar que de mim, mais de si que do mar, e mais da poesia que de nenhum
dos três. "A musa é a consolação final de tudo".
Compreendi que assim fosse, teria mostrado a carta à mãe, e não
conviria escrever intimidades. Cuidei de ser mais discreto que na primeira.
Assim se passaram as primeiras semanas. No fim das seis ainda me falava em vir,
mas não veio. Passados dois meses, contei-lhe as minhas saudades. Não
me respondeu; escrevi-lhe outra; recebi um bilhete em que contava um baile do
presidente da província, descrição longa e amorosa, as
valsas, as quadrilhas, e no fim uns versos que compôs na seguinte manhã,
com o pedido de os fazer imprimir em alguma folha, "e um pequeno juízo".
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