- O que acha? Melissa perguntou freneticamente como se fosse uma criança
esperando Papai Noel.
- Hum, hum! Responde Nicholas ainda lendo seu jornal sem nem esticar um olhar
pra Melissa, que jazia pasma com tamanha indiferença.
- Ah! Assim não vale. O que acha? Insistiu quase que num suplício.
- Hum, hum! Tá bom...
- Você nem tá olhando. Vê, o que acha? (seu rosto fazia caretas
que iam do ridículo ao desespero).
- Bonito, você está...Hum, hum.
- Nicholas, você acha que sou uma abóbora ou um morango?
- Hum, hum. Tá bom assim.
- Viu como não está prestando atenção. Eu fiz uma
pergunta e você apenas grunhiu como sempre. Não vou mais a lugar
algum.
- Hum, hum. Vista-se logo, senão iremos chegar atrasados, e você
sabe, sou o convidado de honra e seria uma gafe se não chegássemos
na hora.
O relógio, um cuco suíço deixado de herança por
sua bisavó Helena, bateu insistentemente, como se estivesse também
a reclamar tamanha falta de sensibilidade do vestido que lhe tinha caído
perfeitamente, deixando à mostra um pequeno vislumbre do que seria o
seu corpo. Já batiam suas 8 badaladas e a cerimônia estava marcada
para as 22 horas, sem permissão de atraso.
Ao chegarem na entrada dos Duarte, olhares aplaudiram a imagem que se abria:
"Um esvoaçar de laises de sedas lilases escorregando ao chão
encobriam uma sapatilha bordada do mesmo tecido, com brocadinhos delicados,
imitando miúdas tulipas, ambas da mesma cor do vestido, mas num tom mais
arroxeado, que também rebuscavam os seios pequenos e delicados de Melissa.
Uma alça com as mesmas tulipas bordavam seus ombros e lhe ofereciam um
toque mais do que especial, em conjunto com o colar de pérolas"
dado por seu marido quando completaram dois belos anos de casados, numa viagem
ao Caribe, onde o sol se permitiu em arroubos, tudo isto misturado à
sua pele branca e aos seus cachos negros, que agora estavam enrolados num belo
coque. Melissa estava a se olhar no espelho grande do hall de entrada da casa.
- Melissa, como você está linda! Falou Paulo, amigo do casal que
estava quase sem fala.
- Muita gentileza sua, Paulo, estou muito feliz que tenha gostado, porque o
Nicholas nem percebeu se estou nua ou não. A voz pausada e triste de
Melissa saiu como um choro.
- Hum, hum. Oh, Paulo como foi de viagem? Espero que tenha trazido a minha encomenda
em perfeito estado, da última vez você fez grandes estragos, lembra-se?
Nicholas se referia à sua caixa de ferramentas inglesas e nem se deu
conta que sua mulher estava a se queixar.
- Nicholas, você sempre o mesmo bizarro. Não sei como Melissa ainda
está casada com você. Minha querida, se eu tivesse chegado uns
meses mais cedo, com certeza, estaria eu agora a divagar-me com elogios à
sua beleza. Paulo muito animado não tirava os olhos de Melissa.
- Você sabe como agradar uma mulher, admira-me não ter sido fisgado
por ninguém ainda. Se eu soubesse! (e Melissa sorriu seu sorriso mais
meigo, numa mistura que ia da criança à mulher, num único
instante), o que fez com que Paulo a olhasse com olhos que nunca ousara enxergar.
Ele afastou-se para que seu coração não fosse ouvido, para
que seus gestos não pudessem desmascará-lo, apesar de ainda continuar
ali parado, como antes estava; mas alguma coisa havia mudado, estava mudando,
e podia-se perceber tranquilamente o que estava por vir. Sentiu-se constrangido
e se ofereceu para pegar uns drinques pro casal.
Em breve, seria anunciada a homenagem e todos começaram a se arrumar
nas mesas que estavam separadas e nomeadas para cada pessoa que ali estava como
convidada. Nicholas, nesta noite, iria receber a homenagem de empresário
do ano, e esta era uma data muito especial, inclusive para Melissa.
Sua bisavó tinha nascido neste 22 de agosto e também morrido na
mesma data, 90 anos depois. Como se o seu destino tivesse traçado uma
linha reta que tivesse dia certo para ambas as vicissitudes da vida. E Helena
sabia que iria morrer no mesmo dia em que nascera. Talvez por isso Melissa a
adorasse tanto - ambas conviveram um bom pedaço das existências,
pois quando ela se foi a menina tinha já seus 11 anos. Melissa também
tinha nascido sob esse estigma. Sabia quando iria conhecer Nicholas, quando
iriam se casar, como seriam seus filhos, só não sabia que em sua
vida estava marcada também uma outra história.
O sonho da bisavó de Melissa, desde pequena, era que quando fosse colocada
em seu caixão, este comprado desde muito cedo pela família, ela
teria que ser enterrada com seu vestido de seda lilás, bordado com tulipas,
sem falar da sapatilha que lhe fazia conjunto, e ai de quem se atrevesse a esquecer
este desejo funesto. E nem poderiam, porque em sua família desejo de
morto era desejo de vida. Elo sagrado - pois a morte não era vista como
um ponto terminal e sim uma passagem para outras existências. Muitos diziam
que essa crença vinha dos antepassados mouros de Helena e ninguém
se atreveu a contestá-la, tanto que quando se deu a morte, foram atendidos
todos os desejos da moribunda, que mesmo antes de deixar esta vida, tornou a
relembrar seus parentes, que em vigília, lhe acalmavam os ânimos.
Vale lembrar que esta morte foi diferente, pois já se sabia quando Helena
iria morrer. Foi apenas uma questão de esperar a hora certa da viagem.
E foi assim que se deu. Muitos na cidade até hoje comentam este fato
como se fosse alguma história fantasmagórica, ainda mais quando
a história tende a se repetir. Muitos dizem que Melissa é a encarnação
de Helena.
O anúncio da homenagem foi feito impreterivelmente às 22 horas.
Estava Nicholas muito contente a ser aplaudido por mais de 100 convidados, todos
impecavelmente vestidos a rigor, com suas mulheres a tiracolo e Melissa a aplaudir
mecanicamente, como se nada estivesse a ver nem a ouvir. Sua face não
tinha cor, nem figura, não se atrevia nenhuma emoção e,
impassível, assumia sua função social e aplaudia seu marido.
Paulo, por sua vez, não se aproximou mais do casal e ficava de longe,
três mesas à esquerda, a espreitar Melissa, esperando que ela lhe
retribuísse o olhar, que vagava vazio, sem resposta. Ele não se
cansou, continuou assim por todo o discurso, pelo serviço de jantar,
até não aguentar mais e se dirigir à mesa dos dois,
na hora da sobremesa. Tinha vagado uma cadeira e ele pediu que uma senhora trocasse
com ele de lugar, para poder ficar mais perto de Melissa, já que a cadeira
vaga não estava logo ao seu lado, e sim do outro lado da mesa.
- Belo discurso, meu amigo. Como sempre você consegue prender a atenção
de todos ao seu redor, e... falando em atenção, você já
notou como a sua esposa está atraindo olhares? Ela está tão
bonita hoje, tão, deixe-me ver, não sei... está diferente.
Falava Paulo sem olhar pro amigo, seus olhos só podiam enxergá-la.
- Ah, Paulo, você tão galanteador como sempre, é claro que
Melissa está muito bonita, seu vestido preto é feito sob medida
para ela, eu mesmo o comprei. Não podiam ser diferentes os olhares. Nesta
hora Nicholas estava saboreando o creme de morangos que acabara de ser servido.
Melissa ficou sem fala ao ouvir o comentário do marido e levantou-se
da mesa deixando cair seu garfo no chão. Seu movimento foi tão
brusco que agora os olhares não estavam mais a admirá-la e sim
voltados para o acontecimento que estava surgindo na mesa. -Como você
ousa? Será que sou tão transparente assim? Nicholas, olhe pra
mim! Me diga qual é a cor do meu vestido agora! Isto ela falava aos berros.
O salão adquiriu um silêncio absurdo. Paulo não sabia o
que fazer. Os convidados que estavam sentados à mesa do casal pararam
de comer, aliás, todos pararam de comer e o sabor da sobremesa de morango
ficou suspenso no ar, como os olhares, os ouvidos, e Nicholas sem saber como
agir, Melissa a olhá-lo furiosa e o amigo, este, mais em pânico
do que todos, tentando resolver o problema e se sentindo culpado pelo seu comentário
que gerou toda a confusão. - Como é, Nicholas, estou esperando.
Qual é a cor do meu vestido? - Preto, Melissa, está satisfeita.
A voz do marido saiu rouca. Sua saliva havia sumido de sua boca e ele estava
sem entender, pálido, morrendo de vergonha, afinal, acabara de ser homenageado
e Melissa nunca se atrevera a falar alto com ele, nunca tiveram motivo para
tal, e sua cabeça começou a rodar e quando ele ia se levantar
Melissa colocou suas delicadas mãos em seu ombro e o jogou sentado contra
a cadeira, ao ponto de derrubá-los. Ela continuou olhando furiosa para
o marido, parecendo que seu olhos iam saltar das órbitas, só que,
agora, além do olhar ela segurava o vestido e balançava-o como
louca e berrava. -Nicholas, meu vestido é lilás, não estou
vestindo preto, não gosto de vestir preto e não entendi ainda
porque você disse que ele é preto quando ele é lilás.
Nicholas, pelo amor de Deus, diga o que você está vendo, senão
eu vou embora e você nunca mais vai me ver. Paulo não se atrevia
a falar mais nada. O burburinho na sala de jantar dos Duarte estava aumentando,
todos não entendiam porque ela cismava em dizer que seu vestido era lilás,
quando ele era preto. Ao ouvir tal comentário, Paulo ficou mais assustado
ainda e olhava para o vestido sem entender nada, já que ele estava vendo
um vestido lilás, cheio de brocadinhos de tulipas, num tom mais arroxeado
e não entendia porque todos queriam dizer que era preto, quando era lilás,
e Nicholas continuou ali a balbuciar "vestido preto", Melissa a berrar
que era lilás e Paulo a enxergá-lo como ela.
Os Duarte resolveram interceder e retiraram o casal do recinto, pediram desculpas
aos convidados e Paulo acorreu atrás dos quatro, Nicholas, Melissa e
os Duarte, que se dirigiram à biblioteca. Os anfitriões deixaram
os três sozinhos na biblioteca e foram embora, esperando que o problema
fosse resolvido o mais rápido possível e que ambos conseguissem
ser educados, principalmente quanto aos gritos.
Os três ficaram ali, de pé, um olhando para o outro, sem entender
nada. Nicholas suava em bicas e olhava para Melissa com olhos de pena e medo
ao mesmo tempo. Melissa parecia possuída, respirava muito depressa e
apertava o vestido ao ponto de rasgar algumas partes. Paulo, com dó dos
amigos, não sabia se falava, mesmo porque não conseguia entender
o que estava acontecendo e seu coração queria acudir Melissa,
e ficou mais confuso ainda, quando Nicholas resolve perguntar para sua mulher,
o porquê daquilo tudo. -Meu amor, não estou entendendo. Eu te amo
e não vejo motivo para isto. Logo hoje, um dia tão especial para
todos nós. Você está linda como sempre, porque arranjar
todo este vexame por causa de um vestido preto. Melissa ergueu os punhos e saltou
contra o marido e começou a socá-lo sem parar, ao mesmo tempo
que berrava que seu vestido era lilás e não preto. Paulo correu
para segurar os braços de Melissa e pedia-lhe calma e não falou
que o vestido era lilás para Melissa, com medo de aumentar mais ainda
a confusão. Tiveram que dar um calmante para ela, que foi carregada no
colo por Paulo, já que Nicholas estava apavorado para socorrer a mulher,
mesmo porque ele também precisava de socorro.
E os três foram para a casa de Melissa, que foi deixada à sua cama,
meio tonta, falando baixinho que seu vestido era lilás. Paulo ainda ficou
um bom tempo ao seu lado, esperando que ela dormisse, e assim que isto aconteceu,
desceu para encontrar Nicholas, que estava em seu escritório tomando
um copo de Gin. Seus olhos ficavam mirando o copo e lágrimas saíam
com vergonha e, até aquele momento, ele não sabia o que estava
acontecendo. Levantou da mesa e começou a vasculhar uma gaveta que se
encontrava na estante à sua frente. Ao mexer nas coisas que estavam guardadas
ali, uma foto caiu ao chão. Paulo apanhou-a e ficou petrificado com o
que via. Neste instante Nicholas não estava dando muita atenção
para o amigo, pois ainda remexia na gaveta, quando de repente, ao mesmo tempo,
ele encontra o seu calmante e resolve olhar para Paulo que estava parado como
uma estátua segurando a foto em suas mãos sem emitir um som sequer.
Nicholas pega a foto das mãos de Paulo e diz que é da bisavó
de Melissa, que morreu há muito tempo; - se eu me lembro, acho que ela
tinha 90 anos, e Melissa 11. Sei lá, não tenho forças para
falar de nada hoje, muito menos ficar lembrando coisa alguma. Paulo continuava
com a mão estendida, como se ainda estivesse a segurar a foto, e Nicholas
resolve perguntar: -O que houve, vai ter um chilique também? Paulo não
respondia, continuava na mesma posição. - Paulo, o que você
tem? E Nicholas resolve sacudir o amigo, que volta do transtorno e ainda com
as mãos estendidas fala: - Qual é a cor do vestido que a bisavó
da Melissa está usando? Paulo pergunta sem nem olhar para Nicholas. -
Ah, não, outra vez a história deste vestido, sei lá, deixe-me
ver, é lilás eu acho, não sei, não tenho cabeça
para isso hoje, e Melissa já me deixou louco o suficiente com a história
de seu vestido, que eu acho que vou pirar, você também não,
por favor, Paulo, hoje não! Você bate a porta quando sair pois
eu vou me deitar no quarto de hóspedes. Melissa está bem, não
é? Amanhã nos falamos. E deu as costas para o amigo, que ficou
ali, parado no escritório de Nicholas, como se tivessem grudado cola
em seus pés. Sua cabeça começou a doer fortemente, quando
ele resolve olhar direito para a foto e percebe que Melissa estava usando o
mesmo vestido de sua bisavó, aliás, é como se ela fosse
Melissa e Melissa fosse ela. Sua cabeça fica a doer mais forte e Paulo
decide ir embora. Vai ver bebeu muito, amanhã seria um outro dia, hoje
já teve muita emoção. Pensou em voz alta e fechou a porta.