Toda vez que vejo uma reportagem sobre a palestina, penso na burrice que fiz
em comprar este apartamento. É que ele fica de frente pra uma das favelas
mais violentas da cidade e todo santo dia (ah, como essa expressão -
"santo dia" - me parece irônica), todo santo dia tem um maldito
tiroteio. E eu aqui, um imbecil de bermudas e chinelos de dedo escondido no
quartinho de empregada, que é o lugar mais seguro da casa contra tiros
de fuzil e escopeta. A parede da sala já está com dezenas de buracos.
Pensei em alugar a sala para a polícia como posto de observação
das guerras do tráfico, mas desisti da ideia. Aí é
que eu ia morrer mesmo, e sob torturas lentas e terríveis, como todo
X9, os dedos-duro.
A minha estupidez consistiu em vender o belo apartamento que herdei de minha
falecida mãe no Flamengo. Ele valia duzentos mil reais. Pensei: tenho
quarenta anos e estou desempregado. O que fazer? Vendi o apartamento e comprei
um bem mais barato aqui no alto de Santa Teresa. Estava tão excitado
com o fato de comprar um quarto e sala, aparentemente bastante confortável,
por apenas trinta mil reais, que nem desconfiei de nada.
É claro que eu sabia que a proximidade da favela era um fator de desvalorização,
mas considerei isso apenas pelo lado vantajoso para mim, que era pagar um preço
baixo pelo imóvel. Assim, me sobravam cento e setenta mil reais da venda
do apartamento de minha mãe. Esse dinheiro, se aplicado meticulosamente,
poderia render e me dispensar do trabalho pesado para o resto de meus dias.
Ledo engano. Pelo andar da carruagem, quer dizer, pelo andar da pilantragem,
esses "restos de meus dias" deverão ser desfrutados entre as
nuvens do céu. Isso se o peso de meus pecados não me levarem a
uma caliente temporada no inferno.
Não tenho tempo paz nem de dia nem de noite. Nas noites de sábado,
às vezes, os tiros cessam. Em compensação, os bandidos
patrocinam um baile funk cujas caixas de som parecem estar instaladas dentro
da minha cozinha. Desesperado, comprei um tampão de ouvido. Eis meu destino:
um zé mané de cuecão de bolinhas azuis trancado no quarto
com um tampão de ouvido.
Porque você não vende o apartamento?, perguntam-me meus amigos.
É simples. Ninguém mais quer comprar. Acho que não tiro
nem dez mil reais pela venda dele. E não posso mais gastar o dinheiro
que sobrou da venda do apartamento de minha mãe, porque também
não sobrou muita coisa. Eu me envolvi numa operação de
compra e venda de dólares e me lasquei. Comprei caro e vendi barato.
Os cento e setenta mil reais caíram para menos de oitenta mil. Estou
sendo obrigado a repensar minha decisão de não voltar a trabalhar.
Ainda sou jovem, posso produzir muito. Mas não consegui convencer ainda
nenhum empregador com esse argumento. Enquanto isso, vou ficando por aqui, arrastando-me
pelo chão da sala para chegar à cozinha. Dois vizinhos meus já
morreram este ano, baleados nos próprios apartamentos. Estou começando
a duvidar que sejam mesmo balas perdidas. Acho que os bandidos estão
praticando tiro ao alvo, e o alvo são os moradores deste prédio.
Quem sabe, eu não arrumo um rifle de longo alcance, com mira telescópica,
e comece a revidar? Na TV, o repórter diz que mais cinco palestinos foram
mortos pelas forças de segurança de Israel. Amanhã, outro
repórter poderá dizer que cinco bandidos do Morro dos Prazeres
foram mortos por um atirador desconhecido de Santa Teresa.