A Garganta da Serpente
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Breviário da danação
(Passado no corrimboque do Dianho)

(Miguel Carneiro)

Aos Queridos amigos
Hermann Moosbrugger,
Marcos Vinicius Fonseca,
Essa história de um Brasil distante.

Artemísia Teixeira Braga tinha seus setenta e oito anos de miragens e implosões cotidianas. Vivera uma vida de entrega ao marido infiel e aos filhos, que, com o passar do tempo, entraram na lapa do mundo, esquecendo-a para sempre. Quando Temístocles Braga batera as botas e a deixara completamente sozinha, passou a viver no casarão da Vitória como uma sonâmbula, a enxergar o fantasma dele dentro do quarto onde falecera. Parecia, às vezes, que ele tinha voltado para lhe fazer companhia. No seu dia a dia ela vivia também a rebuscar lembranças: uma foto preta e branca já amarelada pelo tempo, esquecida no alto da página de um álbum de fotografias sem as cantoneiras, um pé de meia dentro de uma gaveta de uma cômoda de cerejeira, uma gravata em desuso, mofada dentro do guarda-roupa, uma calça de linho branco já encardida ou um colete enxovalhado, tudo para apaziguar seu coração torpedeado de ansiolíticos e antidepressivo.

A sua história de vida passou a se resumir a breves murmúrios que ela ouvia vindo do tempo, por detrás das paredes do quarto, onde um dia seu marido ali se deitou para se encontrar com o cavaleiro da foice. Eram vozes prescutadas de gemidos lascivos que a levou ao delírio. Cenas que o dono da casa, já morto, trazia à baila, recordando em voz alta, para aquele universo de marasmo onde a mulher incrédula participasse de toda a sua misè-en-scène fantasmagórica. Era como se ele tivesse passado a vida inteira a colecionar troféus de conquistas amorosas, sem nunca ter ligado para o sentimento da velha companheira, talvez tentasse se reconciliar com o descaso que ele mantivera para com Artemísia durante toda a vida conjugal, e que ficara cá na terra, tomando conta do casarão, para que a memória não perecesse no devir do tempo. Era como se do outro lado nada apaziguasse a alma de conquistador inveterado e rufião.

No aposento, para o olhar cerimonioso da viúva, surgiam mulheres de seios morenos e fartos, ancas macias e volumosas a torturar aquelas horas baças. Eram trepadas homéricas que fazia deixar a velha vesga de tantas lembranças profanas. Aquelas damas de voz de veludo em pleno dia manchavam todo um passado de respeito e pudor. Mulheres que traziam perfumes e deixava no quarto o odor de cada fragrância estrangeira pelo ar. Elas chegavam a dizer seus nomes, piscavam os olhos, mordia os lábios grossos de batom carmim num jogo de pura sedução. Elas ainda usavam valisères e baby dolls transparentes para agredir o passado moral da velha Teixeira Braga. Traziam entre um seio e outro o suor miscigenado dos amores de outros homens que exalavam no ambiente. As mãos quando tocava no corpo de Temístocles, já morto, eram macias como se estivessem a massagear no passado clientes no templo da Deusa Afrodite. O esmalte das unhas cintilava naquelas tardes calorentas. Havia uma música que ela ainda conseguia ouvir, vinda dos recônditos de sua memória, eram boleros "calientes" intrepretados por Waldick Soriano, que balançavam o coreto. O marido no invultamento trazia para a cena real daquela casa uma galeria de mulheres com seu bailado tentador. Ao andarem dentro do aposento, remexiam fazendo que percebesse que elas consertavam a calcinha que teimava em adentrar o rego da bunda. Essas mulheres tinham nomes, não eram completamente fantasmas que chegavam da sombra para atormentá-lo. Eram madames com sobrenome, algumas de pularem a cerca dos domínios, marcadas com o brasão dos maridos e que traziam na respiração o suspiro atormentado de seus delitos.

A primeira que começou a surgir chamava-se Soraia e que Temístocles conhecera numa cerimônia de formatura no saguão da Reitoria da Universidade Federal da Bahia, e lhe deixara como lembrança daquela noite de flerte na boate Régines, do Hotel Meridien, as luvas macias e negras de pelica, um lenço manchado com o contorno da boca e a bolsa de couro de jacaré que um dia seu pai comprara na Maison Dior, em Paris. Também ela esquecera propositalmente com ele a pequena agenda de telefones que ele mesmo depois de morto vivia a investigar os seus passos e os possíveis casos que aquela morena jambo tivera na terra onde um dia o padre Antônio Vieira pronunciara seus sermões. Eram direções na maioria de homens casados, sérios em suas casas, de filhos crescidos e aprontões. As esposas eram mulheres tristes que viveram a vida entre a cozinha, o supermercado e as reuniões do colégio dos filhos. Frequentavam ao lado do marido infiel, cerimônias de casamentos dos filhos dos amigos, formaturas da garotada da geração dos filhos, mas que no dia a dia buscavam nos inferninhos da Carlos Gomes ou nas casas de massagem da Pituba aquilo que eles não mais encontrava com suas mulheres: o tesão. Ficavam esses homens a ser assíduos clientes de motéis da Paralela, de comerem filé ao molho de madeira acompanhado de champanhe ao lado de meninas de aluguel que eles buscavam nos anúncios populares dos jornais.

Eram homens mal amados que já não desejavam a megera do lar, tratavam como bruxas a atazanar o seu cotidiano. Contas astronômicas a pagar, cartões de créditos que elas detonavam pelos Shoppings da velha província para satisfazerem seus desejos já que eles não lhe propiciavam mais nada na cama. Aquilo que no passado era coisa do povão, de fundo quintal, incrementa a economia do Estado. Havia sim, em Soraia, algo que ficava suspense no ar. O seu rostinho de anjo, de olhos verdes tentadores, de pernas roliças e coxas grossas algo que beirava a cretinice. Em cada coquetel que acontecia na Confraria dos Letrados ela se achava presente, lascivamente a fisgar velhos e sisudos acadêmicos. Alguns deles o mantinham como amante, de despesas pagas no final de mês, servindo a dois patrões. A moça era estampa para qualquer concurso de beleza e o que diziam que na cama era tida como a mais puta das putas que já frequentaram os prostíbulos da Bahia. De retórica erudita falava três idiomas corretamente sem dar bola para a sintaxe. Discorria sobre a poesia de Maria da Conceição Paranhos com tanta familiaridade que na roda todos ficavam boquiabertos com a sua erudição. E com tanta inteligência foi se engalfinhando no universo literário baiano e passando a ter peso o seu juízo de valor quando a Confraria dos Letrados promovia anualmente seus concursos literários. Qualquer escritor que se metia a concorrer a qualquer prêmio literário na Bahia tinha que ter antes o aval da gostosa puta Soraia. Ela era quem mandava na Bahia, sua opinião valia ouro. Frequentava as reuniões festivas da província com tanta desenvoltura que um certo crítico a chamou de "Margareth Tatcher Tupinambá". Os jornalistas a procuravam com insistência quando estavam à cata de algum furo. Sabia de todas as mutreita que rolava na província. Seu cartão de visitas era porta aberta para qualquer emprego. Aquela galera bico de couro que estava em todos os coquetéis da cidade como ratos infestando o ambiente com os seus discursos anarquistas temia aproximar-se de Soraia. Ela tinha poder de mando, parecia uma magistrada a abrir a carteira com o símbolo da República e dar ordem de prisão a seus desafetos. Sobretudo os remanescentes "poetas da praça", que eram vezeiros frequentadores de coquetéis que ao avistarem Soraia no recinto, batiam em retirada com receio de represálias. Soraia além de culta,tinha mestrado em Oxford, mantinha verdadeira ojeriza aos Vates da Piedade. O grupo gostava de falar alto nos coquetéis para serem vistos após tomarem a terceira dose de vinho branco de baixa estação de nome Liebfraumilch, que era servido por um garçom mal-humorado, puto, porque no final do evento não tinha o dinheiro para voltar para casa. E ainda tinha que utilizar o pernoitão e se mandar para a Suburbana, sujeito há um assalto no trajeto. Soraia detestava o pequeno grupo de poetas porque eles eram irônicos e provocativos. Ela lhes olhava de cima para baixo, com desdém, como se ela fosse a Cocada Preta da Cultura na Bahia.

O romance instaurado entre Temístocles e Soraia durou seis meses com direito a um cruzeiro a bordo do Costa Marine pela América do Sul, nem por sonho Artemísia Teixeira Braga poderia um dia suspeitar daquela viagem de lua de mel entre o sexagenário rufião e a perdição da Bahia. Foi, portanto a viagem dos sonhos daquele decrépito garanhão. Afora jantares à luz de vela acompanhada de Bourbon legítimo, caviar, salmão e trufas, tudo que a morena tinha direito no cardápio do navio, fora servido a bordo de sua suíte presidencial. Grupos de "mariates" mexicanos tocaram na luz da lua em serenatas para o casal de apaixonados tupiniquins. A farra fora completa, com direito à compra de um casaco de pele na loja do navio. Peça desnecessária para quem vive debaixo de um sol escaldante de quarenta graus centígrados. Mas Soraia era mulher de capricho e tinha que ostentar perante as amigas, ao desembarcar, o que adquirira naquele novo affair. Temístocles não poupava esforços para seduzir a sua amante querida. O desejo da morena virara uma ordem nem que fosse preciso, pondo em perigo o próprio casamento de mais de cinquenta anos de vida conjugal na bancarrota. O velho se amasiara de vez com a morena que lhe revirava a cabeça a cada amanhecer. Posto que os amigos mais próximos tentavam tirá-lo daquele precipício - mas como todo cavalo velho gosta de capim novo -, Temístocles se entregou de corpo e alma aos encantos daquela morena de rabo de tanajura.

Prostrado no leito com uma pilha de medicamentos na mesinha ao seu lado, uma garrafa d'água e uma aparadeira, Temístocles trazia do limbo da memória a presença de Soraia para seu domínio. A sua voz era ouvida com nitidez e o seu discurso eclodia dentro do aposento. A mulher chegava à beira da porta e vislumbrava a figura avantajada do marido falecido a conversar com uma dama de modos polidos. Era um diálogo permeado por frases carinhosas e recheado de poemas parnasianos. Palavras que ela só ouvira um dia no velho internato do Instituto Feminino. Mas Temístocles teimava diante de seus olhos, a sua presença não trazia pavor, mas apaziguava o coração. Era como se não o tivesse por completo em vida.

A aparição do marido se tornara uma constante naquele casarão. Aos outros, os serviçais da casa, todos suspeitavam de que a velha Artemísia estava louca a ver um morto. E a cada ida ao médico geriatra a dose de antidepressivo era aumentada gradativamente para a infelicidade das coronárias que ficavam sujeitas a uma trombose ou uma parada cardíaca. Sedar a velha, deixando-a sonolenta sem poder andar era o pedido das empregadas que suplicava ao especialista.

Temístocles, porém ficava a se revirar no leito com o mesmo pijama com que desencarnou, a segurar o cacete duro como se tentasse bater uma punheta. A velha, na porta do quarto, levava as mãos aos olhos, tentando esconder aquela cena. Parecia que o falecido, após a passagem, voltara com mais diabrura. O membro ereto despontando debaixo do tecido de seda parecia uma estaca cravada no meio das pernas do morto. Ele não se dirigia para a esposa, a intenção era reviver os romances que aqui deixara na terra.

Foi assim que numa madrugada a velha Artemísia ouvira um barulho estranho vindo do quarto de Temístocles e dirigiu para se certificar se era ele mesmo que estava voltando. E a surpresa foi enxergar o esposo metido no mesmo pijama a dialogar com uma dama misteriosa.

Foi num veranico com chuvas esparsas, na costa da Baía de Todos os Santos que surgiu Marina, a mulher que fez capotar o coração daquele indomável cavalheiro. Para Temístocles tratava-se de um acerto de contas. Propostas que não foram cumpridas, planos que não se realizaram. Vivera a loura durante oito anos a manter um relacionamento com o fantasma do casarão da Vitória, enquanto Aderbal, marido de Marina, nem sonhava que a loura pulava a cerca, deixando-o chifrudo. Traía o besta do Aderbal em represália ao descaso e a falta de trato para lidar com o universo feminino. Imaginava o advogado, que dando carro novo todo ano, entupindo-a de roupas de griffe, a loura se sentiria amada. Quando a noite caía, ela debruçava diante do televisor a assistir sozinha a novela mexicana repletas de cafonices surreais. Enquanto Aderbal retornava da lida de chifre cheio, embolando a língua, com aquele bafo azedo de uísque com pistache. Tinha dias que nem aguentava tomar banho. Deitava-se de terno e virava pro lado. Roncava até de manhã naquela sinfonia miserável que não tinha mulher que aguentasse aquele repuxo. A loura foi se enchendo até levar Temístocles para a própria cama.

O Departamento Jurídico da empresa de Braga requisitara Aderbal para defender junto às instâncias superioras. Era uma querela jurídica envolvendo o cancelamento de uma licitação fraudulenta promovida pelo Governo Federal que deixara a construtora de Temístocles de saia justa. Ele tornou-se ao longo de cinquenta anos de luta um empresário de peso no ramo da construção civil, a construtora tornou-se uma das mais poderosas, no país da impunidade e da remessa ilegal de divisas para os paraísos financeiros da Ilha de Taiwan. Fazia qualquer tipo de negócio, contanto que houvesse lucro e o caso ficasse abafado das hostes da justiça e da imprensa fofoqueira ávida por escândalos. O país vivia debaixo de futricas e violência estampadas nas manchetes das principais revistas de circulação nacional. A cidade maravilhosa que tanto André Filho cantou em versos, mantinha o toque de recolher a mando dos poderosos traficantes. Era a cidade das balas perdidas e do submundo onde prevalecia à lei do narcotráfico.

A sede da Construtora Braga de Temístocles ficava na cidade maravilhosa e ocupava um prédio inteiro da Avenida Atlântica. Para o Rio de Janeiro toda a semana Temístocles se dirigia para resolver seus negócios. E numa dessas viagens entre a província e a Corte, ex-capital da República, o empresário viajara ao lado de seu advogado Aderbal. A conversa foi se estendendo até os limites da vida pessoal de ambos. Aderbal ávido por holofotes e fama, tentando galgar um lugar destaque na sociedade baiana através do empresário, foi bajulando cada vez mais o ladino do Temístocles, até chegar o momento de lhe dar um golpe certeiro. Convidou-o para um passeio de escuna pela Baía de Todos os Santos num domingo de abril. E eis que no cais do Iate Clube, naquela manhã de sol e chuva feito casamento de raposa, surge Aderbal com a bela loura Marina a tiracolo. Foi o bastante para Temístocles se tornar o mais perfeito anfitrião. O passeio durou um dia inteiro regado a rodadas de um bom "scotch". Quando a escuna do empresário alcançou as imediações do Forte de São Marcelo, com o sol se debruçando para os lados da Ilha de Itaparica, à loura já estava completamente apaixonada por Temístocles. Daquela viagem inesquecível para todos foi um pulo até o empresário alcançar a própria alcova do casal. Temístocles, de chinfra, e para despistar ordenava o departamento jurídico de sua empresa mandasse Aderbal viajar para o Rio de Janeiro a fim de resolver qualquer pepino. E nessas ausências do advogado o namoro entre Marina e Temístocles foi se sedimentando. A ponto de uma noite de muita bebida e algumas fileiras de pó que eram aspiradas em notas de cem dólares, Aderbal arriou bêbado e o próprio Temístocles foi quem o ajudou a botar na cama. E após acomodá-lo traiçoeiramente, o fez de travesseiro, e empurrou a vara na esposa querida enquanto Aderbal, de sono solto, roncava do lado.

Agora estava ali, sentado na cabeceira do seu leito, metido em seu pijama, enquanto Artemísia diante da porta assistia o marido morto a dialogar com uma das amantes. A linda loura Marina de tufão nos quadris, vestida numa tanga sacana que mal dava para esconder a testa da xoxota. Aparecera nua com a mesma peça íntima vermelha de bico de cassa, quando há dez anos atrás, quando ele ainda era vivo, foi com o próprio num dos motéis da Avenida Pinto de Aguiar. A madrugada avançava e não havia barulho na avenida. As empregadas dormiam de sono pesado sem terem percebido que a velha perambulava pelo casarão. Artemísia Teixeira Braga, de terço em punho, tentava dissuadir o fantasma da intrusa dos domínios de Temístocles, só o queria para si, para que ele se dirigisse também a ela o enchendo de carinhos e lhe pedisse perdão em definitivo. Temístocles mantinha um tom de voz semelhante ao de um disco vinil fora de rotação, aquela voz grave, de barítono, que qualquer criança fugiria apavorada do quadro. No entanto, a velha debulhava seu rosário em meio a toda sacanagem que o marido praticava na cama. Temístocles de vergalho duro fazia gestos obscenos, a velha tapava os olhos com o xale. O velho marido começou a se despir lentamente alheio aos olhos de sua esposa, que da porta o mirava com o rosto rubro de vergonha e pudor.

Vinha do tempo a melodia "I Will Drink The Wine", cantada pelo veterano Sinatra que cobria em parte a voz tumultuada de Temístocles. Era a canção preferida do empresário e que marcou o seu romance com Marina em tardes de pôr-de-sol pelo mar da Bahia a bordo de sua escuna "Odoiá". A loura naquela aparição parecia que tinha o diabo no corpo, dançava feita uma odalisca como nos haréns dos "sheiks" árabes. Os seios firmes, pontudos, tremiam a cada movimento e o bico ficava eriçado. Ela se aproximava da cabeceira da cama e deixava o velho Temístocles se ajoelhar para sugá-los. Enquanto, ele com fúria apalpava a anca volumosa e macia da eterna paixão. O clima de namoro no passar das horas se tornava mais cálido aos olhos da velha Artemísia. E quando a loura tirou a tanga e brincou passando a peça pelo rosto do velho Temístocles, a velha que aquela altura já não suportava tanta esculhambação, esmurrou com força a porta do quarto e gritou exaltada:

- Basta! Chega de tanta descaração sumam daqui seus patifes! A minha casa não virou bordel! Nem mesmo morto, você, seu desgraçado, deixou de atormentar meu juízo. Vão pros quintos do inferno...

O idílio amoroso dos dois apesar da interferência da velha não parou pelos esbregues. Temístocles tinha o rosto marcado por uma máscara de profundo prazer e alegria, sorria no canto da boca de tanta tara. E Marina cada vez mais levantava a anca e aquele volume no meio da paisagem fria daquele aposento transformava-se numa escultura barroca. Aos poucos Temístocles foi se sentando enquanto escanchava aquela égua no cio em meio ao seu caralho duro. Não havia reza que fizesse aquela aparição desaparecer do ambiente. Os gritos de raiva de Artemísia alcançaram os aposentos das empregadas e em poucos segundos as duas pretas que já moravam na casa desde bastante tempo, oriundas de Cachoeira, na Bahia, robustas e bonitas, se depararam com a patroa de terço entre as mãos esmurrando a porta. Era o amiudar dos galos e aquela cena inusitada fez com que as duas, na manhã seguinte, levassem D. Artemísia ao psiquiatra, a velha estava ficando doida, era o que se comentava na cozinha da casa.


II

E eis que numa segunda-feira pela manhã D. Artemísia Teixeira Braga foi levada para o Centro Médico João das Botas onde ficava o consultório do Dr. José Hamiltom Meira, médico psiquiatra e professor renomado da Faculdade de Medicina da Bahia, que há alguns anos vinha cuidando do seu caso. A cada visita médica tornava-se um transtorno para o universo quatrocentão de D. Artemísia. Ela se sentia devassada, evitava que os seus problemas fossem conhecidos por um estranho. Mas não havia alternativa, já que não privava da amizade de ninguém na cidade. A maioria das amigas estavam mortas e os filhos longe de seus olhos, a relegaram ao esquecimento. Só havia as duas senhoras que cuidava dela e o motorista da casa. A casa no dia a dia era um paradeiro de causar tédio. O único barulho que se ouvia dentro do imenso casarão era quando as pretas conversavam na cozinha. O televisor era ligado num dos quartos dos serviçais, pois ela não gostava deste entretenimento. No telefone ninguém chamava. Uma vez por semana se ouvia um toque e era um dos filhos que morava em Miami cuidando dos negócios da construtora. As outras duas filhas viviam no Rio de Janeiro com os respectivos filhos, e pouco ligava para a velha Artemísia. Era um núcleo familiar problemático. Um filho não se dava com o outro. Eram inimigos. Os netos iam nascendo e ela própria nunca tinha visto o rosto de nenhum dos descendentes. Por ocasião do Natal ou do Ano Novo os filhos não apareciam e pelo telefone um esculhambava o outro para a velha sufocada de solidão e descaso implodir cada vez mais. O casarão da Vitória com os quatro moradores era uma assombração na paisagem. Por ali só circulava de estranhos o rapazinho forte entregando um botijão de gás todo mês, ou a visita dos agentes de saúde no combate à dengue. No mais era um paradeiro incomodativo e mal-assombrado.

O Dr. Meira, do alto de sua calvície e sabedoria, diagnosticou o caso da D. Artemísia como Depressão e prescreveu uma bateria de medicamentos controlados. No consultório o médico tentou aos poucos acalmar a velha, recordou a figura do esposo Temístocles, e recomendou que ela procurasse se distrair, fazer uma viagem, visitar as filhas no Rio de Janeiro e voltasse a sentir prazer em viver. D. Artemísia emburrada, de cara amarrada, pouca conversa deu ao psiquiatra, e foram as acompanhantes que relataram ao médico o que estava acontecendo com a patroa.

Voltaram todos para casa pensando que a paz de novo se instalara no casarão. E nessa mesma madrugada de segunda para terça, D. Artemísia tentava dormir quando de novo ouviu novo barulho no quarto de Temístocles. E se segurando para não descer as escadas e nem se deparar com a figura profana do marido, tentou rezar para que ele não a atormentasse. E num espaço de alguns minutos, enquanto ela terminava o primeiro mistério do terço, ouviu novamente um barulho, desta vez mais forte. Ela tentou não dar mais importância às patacoadas do marido morto, mas um aroma suave e forte dos charutos Menendez&Amerino, os preferidos do morto, cobriu o seu aposento, e tomada por impulso resolveu verificar se era ele mesmo que estava de volta. Desceu as escadas, apoiando-se no corrimão de madeira, tentava não fazer barulhos para não acordar os serviçais, e ao chegar no aposento do morto, deparou-se com Temístocles, de telefone em punho, metido num terno bem cortado e de sapatos italianos com um charuto "Dona Flor" entre os dedos. Um certo alívio veio ao coração. Desta vez o morto não voltara para fazer esculhambação. E meio incrédula daquilo tudo que estava observando, sentou na cadeira de palhinha em frente ao morto e calada passou a observá-lo. O morto discava ao telefone, e com a voz, desta vez límpida e clara, ensaiava um diálogo com alguém do outro lado da linha:

- Boa noite, Hernani, desculpe-me o incômodo da hora já passada, mas eu sabia que você estaria acordado datilografando algum artigo para que o poeta Florisvaldo Mattos, a contra gosto, depois de muita insistência, publicar aos sábados no Cultural de A Tarde. Será que você não se manca que seus artigos são uma chatice!

Ao que o velho acadêmico e do outro lado da linha, intrigado, mas sem acreditar no que estava ouvindo, indagou-lhe:

- E quem é que está falando?

O morto tossiu um pouco, como lhe era peculiar nesse seu tique nervoso, sapecou:

- Não me diga, que você não está conhecendo a minha voz? É Temístocles Braga, disso você tenha certeza.

O acadêmico, ainda incrédulo, continuou o diálogo:

- Mas você está morto, homem. Eu mesmo fui ao seu sepultamento há dois anos atrás no Cemitério Jardim da Saudade, que brincadeira é esta de mau gosto? Pelo o que eu sei, os mortos não falam.

Temístocles sem perder o rebolado, emendou:

- Sim, e daí, você não está me ouvindo?

A polidez e o fino trato do acadêmico, mesmo numa situação embaraçosa como aquela, não lhe fez perder a compostura:

- Sim, estou ouvindo-o, mas julgo tratar-se de um trote.

Temístocles já meio aborrecido com o dissimulamento do acadêmico, disse-lhe:

- Não se trata de trote, Soledade, sou eu mesmo, Temístocles Braga. Voltei para lhe telefonar por uma questão de caridade cristã, coisa que você preserva muito aí pela terra. Olha, para seu governo, vou lhe revelar agora, porque eu não sou cabotino, e não fico com a consciência tranquila quando vejo um amigo sendo traído. Você desfilava na Academia de Letras apresentando a todos sua namoradinha Soraia, chegou até comprar um apartamento quarto e sala para ela no Farol da Barra, para que ela continuasse sendo sua amante. Mas você, Hernani, é um idiota, enquanto você exibia a amante, quem metia a vara naquela vagabunda era eu. Cansei de foder com ela quando você saía do apartamento deixando um buquê de flores e uma garrafa de vinho do Porto. Você bateu soro várias vezes. Anda você metido nesse terno manjado, que todo mundo já conhece de longe, querendo ser o maior intelectual da Bahia.

O velho acadêmico não mais suportando as provocações do morto, disse-lhe:

- Eu não posso acreditar no que estou ouvindo. Vá pro inferno, Temístocles, você está morto.

Braga deu uma baforada tão profunda no charuto que a fumaça cobria o rosto da velha esposa. Guardou a agenda de telefones na mesinha do quarto enquanto Artemísia disse-lhe:

- Quando você não aparece com suas libertinagens, vem para atazanar a vida dos outros. Deixa pelo menos seus amigos em paz, desgraçado! Será que onde você está não tem o que fazer?

A figura do morto desapareceu em meio à fumaça do charuto. A velha continuou a rezar o terço, sentada na cadeira que estava, e voltou em seguida para o aposento, com cuidado, para que ninguém da casa percebesse que ela andava feito um zumbi zanzando àquela hora por dentro do casarão.

O telefonema de Temístocles para Hernani Soledade causou-lhe um grande mal-estar a ponto de durante três dias o acadêmico ficar meio aéreo, fora do ar. E numa quinta-feira na reunião da Confraria, após o Presidente abrir a sessão, Soledade que já não se aguentava com aquela situação martirizando-o, pediu um aparte, e relatou o ocorrido perante todos os confrades que se achavam presente. Aquela confraria da sisudez e da cafonice foi aos poucos caindo na real. E um dos acadêmicos mais sarcásticos do sodalício foi quem puxou a gargalhada seguida de todos que se embolavam de rir do episódio. Soledade, ao término do relato, ficou com cara de bobo sem achar uma lógica ou prova para o acontecido. O Presidente, meio constrangido com aquela situação, pediu a todos que se levantassem de seus assentos. Em pé iniciaram um pai-nosso pela alma do morto para que onde estivesse descansasse em paz. Ao término da sessão o burburinho dos grupeto, pelo Palacete a comentar a aparição era ainda motivo de muita chacota. Logo surgiu o boato de que Hernani Soledade estava doido e necessitava de tratamento psiquiátrico. Sepúlveda, um dos acadêmicos que era médico, chamou o colega no cochicho e lhe disse:

- Hernani, eu sempre contei com o seu apoio nessa casa. Inclusive tive o seu voto na ocasião de minha eleição, você chegou a cabalar muitos votos para mim, eu sempre serei eternamente grato a sua pessoa. Esse episódio tem um pouco de stress e trabalho muito que você vem desenvolvendo na elaboração da Enciclopédia de Escritores Baianos, procure, em meu nome, meu colega Hamiltom Meira, lhe afirmo que ele fará de tudo para acalmar a sua alma atormentada por fantasmas.

E com o tradicional tapinha, nas costas, se despediu do confrade, deixando no salão, feito um peru tonto, sem achar ninguém que com ele viesse se solidarizar. Viu a primeira porta em sua frente, deu meia volta, e destrambelhado, pediu ao poeta Carlos Cunha que lhe providenciasse um táxi para ele voltar para casa. O semblante de Hernani parecia de um morto, branco giz, de olhos esbugalhados nos quais notava que a loucura estava a caminho.


III

D. Artemísia Teixeira Braga passou a fazer o uso dos medicamentos prescritos por Dr. Meira, que eram do tipo "sossega leão" que lhe deixavam travada com o pescoço teso e às vezes de olhar vesgo sem poder bater as pálpebras e que a fazia perder até a visão. Ficava a anciã naquele incômodo sem poder dormir, impaciente, com uma vontade de sair desbragadamente em disparada pelo imenso corredor do casarão para se livrar daqueles pensamentos malditos. Se permanecesse sentada, vinha aquela sensação de que o velho coração ameaçava parar. O estado interior era semelhante a um redemoinho levando para o ar papéis velhos, fotografias, notas promissórias, prospectos de propagandas, folhas secas que se apagavam lentamente em sua lembrança. Além de lhe causar uma série de transtornos, as aparições abalavam a combalida saúde.

Dentro do casarão quando a loucura lhe permitia ter alguma atitude, sentava-se numa poltrona, calada ficava a mirar pela janela o mar da Bahia, com aquela luminosidade nunca vista em terra alguma. Lembrava dos paquetes, sua viagem de lua de mel na distante década de trinta para Buenos Aires. Recordava-se de que naquela época Temístocles aparentava ser um homem coberto de virtudes. Sempre solícito, cavalheiro, cobrindo-a de joias raras quando do desembarque na capital portenha, promovendo lautos jantares a luz de candelabros, regados com um bom vinho, e a tirando para dançar tangos. Temístocles parecia uma pluma ao conduzi-la pelo salão, tendo de fundo um bandoneón marcando os passos.

Por alguns anos Temístocles manteve um serrado ciúme que a deixava um pouco lisonjeada ao se sentir amada pelo esposo, mas os anos foram mostrando a verdadeira face daquele amor. O dinheiro foi lentamente modificando a personalidade, restando um homem frio e sem afagos. Vieram os filhos, maternidade, encaminhamento para o mundo, ausências de carinhos, solidão do dever cumprido. Passou então a representar para ele mais um objeto desses que ele adquiria como "souvenir" em viagens de negócios, fazendo parte do acervo do casarão na Vitória.

As patacoadas de Temístocles ela tentava sublimar e manter em segredo para os serviçais da casa, mas foi gradativamente fugindo do controle. Certa tarde de julho, enquanto lá fora a vida acontecia e o povo estava nas calçadas vendendo bugigangas baratas do Paraguai com o estomago colado, Temístocles voltara a surgir com sua danação. As empregadas tinham saído para fazer as compras da casa no supermercado do Chame-Chame e ela se encontrava sentada na sala de estar a manusear a Revista Marie Claire, quando sentiu, vindo do aposento do marido morto, um cheiro forte de foda que a deixava em suspensão. Por alguns segundos tentou dissuadir, fazer de conta que não estava chegando às narinas aquele cheiro forte, apelativo que lhe remetia as trepadas de Temístocles. O odor foi invadindo a sala de estar a ponto de deixá-la envergonhada, num ímpeto levantou da poltrona e se dirigiu para o compartimento e ao chegar deparou-se com a cena mais chocante que seus olhos já enxergaram, estavam duas mulheres nuas em meio a Temístocles, também completamente despido, participando de uma suruba, na grande cama de casal. Procurou a voz, estava embargada. Buscou forças para aquela descaração se diluir dos olhos, e passou a ouvir os gemidos lascivos que as duas mulheres expressavam no contexto daquela cena amorosa. E como que tomada de repugnância e ódio por Temístocles estar a promover aquela esculhambação dentro da casa. Deu meia volta e sentou de novo na poltrona da sala de estar. O barulho dos gritos das mulheres tomava a casa e o cheiro da fornicação inundava o ar. Tremendo foi até a peça onde se encontrava o medicamento para o delírio e sabendo que não era o horário de fazer uso daquele remédio, mesmo assim o fez. Por alguns minutos ainda ela ouvia os gritos vindo do quarto do marido e quando as empregadas voltaram das compras a encontrou dormindo de bruços na sala. Naquela madorna em que mergulhou, a figura de Temístocles lhe veio também em sonhos atormentando-a novamente. Ele se encontrava na pista de pouso do aeroporto Galeão com uma valise à mão, preparando-se para subir as escadarias que davam acesso à aeronave de um grande Electra da Varig, portava um de seus ternos linhos branco pérola, aparentava um semblante tranquilo. A aeromoça, de farda impecável, recebia os passageiros à porta de entrada do avião com um sorriso nos lábios, e a cada passada que Temístocles empreendia nos degraus havia no piso uma fotografia de uma mulher exuberante, de batom acentuado, cabelos esfuziantes que lembrava Luz Del Fuego. As fotos eram mostradas como num celescópio gigante onde estavam todas as mulheres que na vida ele possuíra para martirizá-la. Quando estava a bordo, sentado na primeira classe, a mesma aeromoça do "check in", transformava-se em sua irmã mais velha de nome Hortência, que ela sempre odiou, e viajavam de mãos dadas. Em uma das turbulências do trajeto, quando o avião perdia a estabilidade, viu Hortência sapecar em Temístocles uma grande colada escandalosa de alguns minutos. Teve uma visão de uma imensa escada que alcançava o solo e nela Temístocles, com uma corda no pescoço, era conduzido ao solo como um condenado.

Na casa de Hernani Soledade o temor e o desespero começaram a se instaurar no dono da casa, após o telefonema esdrúxulo de Temístocles naquela madrugada. Parecia que a figura do morto se abancara naquela residência para promover desordens. Aquele velho acadêmico de passado ilibado e corajoso transformou-se num homem covarde que não conseguia mais ficar sozinho dentro da própria casa. Se ele queria ir a qualquer cômodo da residência teria que estar ao lado da companheira. Ao banheiro quando necessitava fazer dele uso a esposa também o acompanhava, pois ele tinha pânico de encontrar a figura de Temístocles à frente. Passou a viver enclausurado dentro do próprio aposento onde ele também fazia todas as refeições. O gabinete ele evitava com receio de que o telefone tocasse e do outro lado da linha fosse a voz do morto. Para a mulher ele não poderia expor o teor do telefonema. Estava numa sinuca de bico de ter que guardar em segredo aquele episódio. Somente contou à velha mulher que recebera um telefonema de um morto e aquilo estava lhe intrigando. A esposa ficou solidária com ele, o fazia companhia, e sugeriu-lhe que ele mandasse rezar uma missa pela alma do falecido, já que por aqui na terra nada mais se podia fazer pela alma do morto. Ele acolheu de bom alvitre e pediu à esposa que fosse à Igreja da Vitória providenciar a celebração da missa e que também telefonasse para D. Artemísia para lhe comunicar a data da celebração.

Por um período de uma semana Temístocles não deu o ar de sua graça, mas por toda Bahia a sua aparição fora comentada, sobretudo o telefonema ao acadêmico. As suas patacoadas no casarão da Vitória ficaram restritas a um seleto grupo de professores da Faculdade de Medicina quando da reunião de uma junta médica formada pelos doutores: (José Abraão Carneiro Neto, Gervásio Araújo, Mariston Rafael Alves, Roberto Miguel, Rita Citrim, Carlos São Paulo, Egberto Ferraz) convocada por Dr. Rubim de Pinho para analisar o quadro psicótico de D. Artemísia que a cada dia evoluía sem uma solução.

Aquela paixão que Hernani Soledade nutria por Soraia estava no limbo do esquecimento, mas a lembrança da estampa acendeu no velho acadêmico a chama do desejo de um dia poder rever a ex-amante. Só que Soraia já não morava mais no Brasil, estava casada com o Monsieur Cantal, Professor de Literatura Brasileira com sua cátedra na Sorbonne Nouvelle, Paris III, em Censier Daubeton. Monsieur Cantal fora responsável pelo o intercâmbio entre a Bahia e a França com poetas de cordel e mantinha em seu departamento uma das maiores coleções de folhetos populares do mundo. Para Soledade, depois de um longo período de ausência, tentar se reaproximar de Soraia, poderia empurrar todo o passado acadêmico no ralo, o romance vir à tona e finalmente chegar aos ouvidos da devota mulher que nem sonhava que ele também era um cafajeste.

A missa fora marcada para sete e meia da manhã de uma segunda-feira, sem grandes alardes somente com a presença da família do falecido. O celebrante era de todos ali conhecidos, visto que o próprio Temístocles doara no passado uma vultosa quantia para restaurar a sacristia do templo, no Largo da Vitória. O falecido contava com dois anos que já tinha partido do convívio dos vivos. Entre D.Artemísia e Soledade havia no ar algo de misterioso pelo que ambos evitavam se olhar, mas era inevitável que ao término da cerimônia Soledade fosse cumprimentar a viúva. A saudação formal e de praxe fora feita pelo o acadêmico o qual indagava da velha senhora sobre a sua saúde. D. Artemísia chamou Soledade em particular num canto do altar-mor e disse-lhe:

- Olhe, Doutor, eu lhe agradeço muito por esse gesto de mandar celebrar uma missa pela alma daquele desgraçado. Eu queria revelar para o senhor que no dia daquele telefonema na madrugada do calhorda do Temístocles, eu fui testemunha, não é só o senhor que vem sofrendo com a visagem, não. Eu espero, doutor, que com a celebração dessa missa os aprontes que ele também vem fazendo lá em casa se finde em definitivo.

O semblante do acadêmico ao ouvir a revelação da viúva demonstrava um ar de desesperado. Estava ali a confirmação de que ele não estava doido, porém a mulher, sentada no banco da igreja os observava de longe. Ele então rogou à velha viúva que mantivesse em segredo aquela brincadeira de mau gosto perpetuada por seu marido morto. Despediram-se os dois naquele constrangimento, enquanto o sacristão providenciava fechar as portas do templo.


IV

As visagens de Temístocles não tiveram tréguas, o danado continuou aparecendo no casarão mesmo com a celebração da Santa Missa. Os objetos da casa passavam a flutuar pelo espaço, contrariando a Lei da Física. No aposento onde ele se apresentava as danações, a cadeira, a mesinha do console e a pesada cama de casal de jacarandá ficavam suspensos, acima do chão, flutuando desordenamente. Era mais um pandemônio causado sob a chancela do endiabrado. Os empregados passaram a ficar receosa, de pulga atrás da orelha a imaginarem de quem seria aquela assombração se o único morto da casa era o Dr. Temístocles Braga. Nessa mesma época D. Artemísia perdera a visão por completo. Vivia agora por dentro do imenso casarão tateando a parede para chegar até a sala de estar, onde ela costumava se abancar para ver a paisagem. A cegueira, em parte, trouxe para a velha senhora um certo alívio em não poder mais testemunhar as cenas de sacanagens que o marido morto encenava no seu aposento. A cegueira faria com que a velha mergulhasse em lembranças e esquecesse o cotidiano da casa. Viveria para orações e o debulhamento de terços à Virgem Santíssima para que tivesse piedade da alma do marido e o salvasse da chama do Inferno.

Os dias foram passando para a velha como numa eternidade, aquele mamparramento das horas, em que os ponteiros do relógio do tempo não mudavam de lugar. Daqui que a hora do Ângelus chegasse para ela contrita se benzer e fazer as orações demorava um século. Assistir aos programas de televisão para ela seria uma perda de tempo desnecessária. Então, como não havia nada que fazer naquelas horas entendiosas, e a leitura ela não podia mais exercer, e nem gostava de ficar ouvindo a imbecilidade da musica axé baiana, nem os pagodes ridículos que eram tocados nas emissoras de rádio da província, resolveu que voltaria a tocar o piano de caudas que há trinta anos estava esquecido na sala de visitas como um trambolho. Pediu então a umas das senhoras da casa que tirasse a poeira, com esmero, daquele instrumento que lhe era tão terno à sua memória. Abriu a tampa vagarosamente do instrumento e por alguns segundos deslizou as mãos magras e finas como que acariciando as teclas brancas de marfim, e procurou com a ponta do dedo anular roçar com a unha as teclas pretas de ébano para reencontrar-se consigo própria. Ela tinha estudado piano no Conservatório de Música com a maestrina Maria Manso, no tempo em que o marido, os filhos, a casa não faziam parte da história. Ali, diante do seu piano, cega, tentando com o tato encontrar nas reentrâncias um novo significado para a vida. Via surgir os rostos do passado, o nome dourado da marca do instrumento "Steinway", de formato crapaud, inúmeras partituras que ela havia estudado com a Profª Maria Manso, sobretudo as que ela mais amava e que vinham à lembrança. Esse piano fora presente do pai, adquirido no Rio de Janeiro, transportado para a Bahia no navio cargueiro "Aliança". Vinha-lhe o sorriso de seu pai com a papelada da alfândega, avisando-lhe da chegada da novidade. Ele ainda estava com o colarinho suado do esforço para lhe fazer a surpresa. Uma lágrima começara a cair dos olhos pingando nas teclas brancas de marfim. Suspirou e viu a casa paterna repleta de compoteiras de cristais pelas cristaleiras com doces de figo esverdeado naquelas tardes de outono e frio. O cheiro dos sequilhos de nata invadindo o ar, a roupa lavada exalando patchuli, a presença da mãe colocando a fragrância Roger&Gallet, após o banho que ficava inundando a casa até o anoitecer, o pai chegando do escritório na Rua Chile trazendo-lhes caixas de sabonetes Maja. O tempo era perfumado e tinha a cor dos olhos de sua mãe, melosos e eternos. E como que inebriada passou a executar o Concerto para Piano e Orquestra nº 5, opus 73, sobretudo o Adágio um pouco mosso, de Beethoven. O casarão parecia que ia se renovando. As duas senhoras que estavam na cozinha acorreram até a sala quando ouviu as primeiras frases e começaram a abrir as janelas da sala, logo réstias de luz coloriam o ambiente. Parecia que a vida naquela casa tomava novo rumo. A partitura vinha toda depois de trinta anos sem tocar aquela peça. E contaminada pela emoção de voltar a tocar começou em seguida Noturno, Opus 9, Nº 3 - 2 em Mi bemol maior de Chopin. As empregadas limpavam com os seus aventais as lágrimas que desciam de seus olhos, e sentadas, permaneciam à volta, trocando olhares cúmplices entre si de felicidades, por estarem testemunhando D. Artemísia voltar a sentir prazer na vida. E assim por toda à tarde a viúva de Temístocles Braga em concerto povoava de melodias o velho casarão da Vitória.


V

As contas da casa eram pagas pelo filho de D. Artemísia que morava em Miami. Ao final da cada mês ele enviava para uma determinada agência bancária no Campo Grande a quantia suficiente para a mamãe gerir todas as despesas. O motorista e a empregada se encarregavam de fazer o pagamento dos boletos bancários. Num dos shoppings da cidade D. Artemísia adquiria seus tailleurs, os calçados, roupas íntimas com a ajuda da governanta.

Quando o dia se mostrava vistoso sem nuvens cobrindo o céu, D. Artemísia pedia que o motorista tirasse o Mercedes da garagem e fossem passear com ela pela orla. Saía nessa embaixada à empregada mais velha da casa sentada no banco da frente e a viúva que se acomodava no banco traseiro com os vidros laterais abertos a sentir a brisa que batia do mar da Bahia. A cada passagem em determinados pontos onde o mar se mostrava exuberante, D. Artemísia era notificada pela acompanhante para que tomasse conhecimento da beleza que se debruçava aos seus olhos. O motorista então parava o automóvel e as duas desciam do carro e caminhavam um pouco pelo calçadão da Orla marítima. Soprava uma brisa leve que vinha do leste esvoaçando os cabelos grisalhos cor de prata da velha senhora que apoiada no braço da sua fiel acompanhante caminhava a passos lentos. Apesar de cega bastava para D. Artemísia estar próximo do Oceano Atlântico quebrando na praia e o sol morno caminhando no horizonte para o crepúsculo. Naquelas tardes ela viajava sem pressa, sem desespero com a paciência dos andarilhos que buscam paisagens sem delas jamais se bastarem, a velha senhora percorria com seu Mercedes Benz desde o Porto da Barra até o final do Farol de Itapuã. E ao término de seu passeio, pedia então ao motorista que contornasse em frente à casa onde morou o poeta Vinicius de Moraes, e que depois seguisse pela rua onde vivia o poeta baiano Ildásio Tavares. O automóvel seguia lento e a acompanhante ia descrevendo para ela com atenção e num tom delicado as fachadas das casas do Principado de Itapuã onde lá também habitava o poeta jacuipense Antônio Passarinho. Os passeios da velha senhora bem que poderiam servir de motivo para alguma canção doce e maneira de João Donato tal o lirismo de seu deslocamento.

Ao chegar num desses dias à velha senhora ordenou aos empregados que tirassem todos os móveis do aposento de Temístocles, desarmasse a cama, deixasse o quarto vazio, passasse a chave e levasse todos os breguetes para o socovão. Tentava assim dar um basta na transmutação esquisita de seu marido. A casa, porém respirava um novo ar; flores naturais voltaram a colorir o ambiente, a decoração de todos os cômodos foi mudado. A governanta, oriunda de Cachoeira sugeriu à dona da casa que fizesse uma defumação por semana em todo o casarão, para espantar os maus fluidos e a presença dos Egun, pois há muito tempo que ela estava sentindo algo de estranho: ficava tonta, o corpo se arrepiava ouvindo vozes de morto pelos corredores. Em sua terra por muito pouco ela já teria pedido ajuda a uma mãe de santo.

Para a formação religiosa de D. Artemísia seria uma heresia permitir em sua casa uma sessão de descarrego ou a entrada de uma babalorixá para arriar nos fundos da casa, na escarpa da Vitória, algum ebó. O candomblé, a religião das duas negras que cuidava da casa, não era bem vista aos seus olhos. Ao culto dos afro-descendestes ela tinha verdadeiro pavor. A velha por ter sido educada num colégio interno, sob os moldes do catolicismo ortodoxo, toda sorte de preconceito e racismo ficara embutida em seu caráter. A viúva do casarão da Vitória ainda vivia em pleno século da globalização perversa, como se a escravidão não tivesse sido extinta. Decerto que não mandava as empregadas para o tronco, nem tinha feitores, mas o tratamento dispensado a todos da raça negra, sobretudo seus serviçais, era pautado numa visão colonialista, de exploração e dominação. A Bahia era assim enquanto se dizia da boca pra fora que não se tinha preconceito nem racismo para com a raça negra, os dados estatísticos revelam que a maior parte dos extermínios de vítimas da violência no Estado era praticado contra negros, sobretudo adolescentes de baixa renda e que preto na Bahia era proibido, mesmo pagando, de participar de algum bloco carnavalesco de branco, que todo ano desfilam no circuito Barra - Ondina, para turistas participarem e fotografarem, levando para suas terras fotogramas falsos de uma Roma Negra. A Bahia vivia uma hipocrisia racial de fachada. Preto e pobre sempre foi visto com desdém na terra onde a maioria de sua população é constituída de negros e mulatos. A religião dos afro-descendentes sofreu toda sorte de perseguição por parte do aparelho repressivo do Estado; negro na terra da negra do acarajé tinha que louvar e adorar os santos dos brancos. Somente apartir de 1985 é que a liberdade de culto tornou-se Lei no país. E nem com isso fez deter a campanha difamatória patrocinada por outro culto religioso Assembleia de Deus e Igreja Universal do Reino de Deus contra o candomblé na Bahia. A perseguição também tinha tentáculos na própria Igreja Católica. O Cardeal Primaz de Salvador numa tentativa de excluir a participação dos negros com seu culto em templos baianos, transferiram intempestivamente da sua Arquidiocese para os confins do país, sob a anuência de Roma, Dom Gilio Felício, bispo negro, amado pela comunidade negra baiana, que na terra do Dendê não fazia distinção entre Deus dos Negros e Deus dos Brancos. Deus não tem raça, nem cor, pelo que se imagina.

Por tudo isso, não era de se estranhar que a Dama da Vitória torcesse a cara quando se aventava o termo afro "candomblé". E assim, D. Artemísia, que tinha se restabelecido da depressão o imaginou que tirando os pertences de Temístocles do quarto, ele não mais voltaria para atazaná-la. Foi quando todos da casa tinham saído para fazerem as compras no supermercado, ela estava sentada na sala de estar com o pensamento distante, quando sente uma mão tocar seu ombro, e, assustada, gritou:

- Quem é que está aí?

Temístocles de terno e gravata sentou-se à sua frente e respondeu:

- Não se assuste, sou eu e não vim para causar transtornos.

A velha que não esperava aquela visita surpresa, disse-lhe:

- O que o levou você agora a voltar? Já não lhe bastaram tantos aborrecimentos que você, causou com suas patacoadas? Eu já estou farta de suas molecagens.

O morto tentando redimir-se tocou a mão no ombro da velha esposa e falou:

- Será que você não percebeu que tudo aquilo que lhe mostrei era no fundo uma forma de lhe revelar o quanto fui verdadeiro mesmo sendo um cafajeste. Olha Misa, mesmo de onde estou passei a admirá-la e voltar a amá-la.

A velha, tentando entender o caráter e o desvio de personalidade de seu marido, respondeu:

- Só que agora é tarde. Você está do outro lado e já não há mais nada para fazer para salvar o sentimento que lhe devotei durante cinquenta anos. Você está morto e só me resta rezar por sua alma atormentada de aprontes. Eu não tenho ódio de você de maneira alguma, só sinto que fui uma completa idiota ao me permitir que você desse o tempo todo às cartas do nosso romance. Eu o perdoo por todas as suas traições. Vá para o lugar de onde você veio, mandarei de novo celebrar uma missa por sua alma, vá em paz, Temístocles.

E do mesmo modo que ele surgiu, naquele silêncio que não incomodava a tarde, Temístocles partira da sala sem deixar rastro de sua aparição.


VI

Numa tarde na Confraria dos Letrados na antessala do Gabinete do Presidente, os funcionários da casa estavam envolvidos na remessa de correspondências para o lançamento de um volume caudaloso sobre a cultura baiana de autoria do escritor Jafé Teixeira Borges, quando desponta esbaforido o acadêmico Hernani Soledade, de colarinho encardido, suando muito, subaqueira aparente e um odor que lhe era peculiar, à procura do presidente da casa. Carminha, a solícita e exemplar funcionária o recebeu com um sorriso franco. Hernani, imerso naquela ansiedade mal queria esperar a saída do Secretário de Cultura do Estado que estava em visita de cortesia ao Professor Almachio Diniz pela sua reeleição para presidência da casa por mais um biênio, e que estava representando o Governador do Estado.

O poeta Carlos Cunha entrou em campo para acalmar Soledade e surgiu da sala com um pacote pardo contendo raridades bibliográficas impressas na Bahia. Os olhos do acadêmico faiscavam de curiosidade ao manusear aqueles exemplares. Anunciado por Carminha, o acadêmico Soledade adentrou a sala de reunião da presidência. O poeta Cunha, então, pediu ao garçom que levasse até o "Gabinete", uma bandeja com três taças de água para as visitas. Ao entrar no recinto o garçom, um sujeito calmo e educado, que uma vez por semana frequentava também um terreiro de candomblé na Ilha de Itaparica e fazia as obrigações anuais para o santo, estranhou que o poeta Cunha tinha se passado e não estava atento naquele dia, devido aos preparativos do lançamento do Dr. Jafé, pois na sala estavam quatro pessoas, e faltava mais uma taça para o convidado. O garçom participou do fato ao poeta e esse estranhou, pois quem estava com Presidente era somente o Secretário de Estado e o acadêmico Soledade que acabara de entrar. Intrigado, o poeta Cunha mandou que o garçom retornasse com mais uma taça já que havia mais um visitante na casa. E ao retornar com a taça, os que estavam na sala estranharam o garçom se dirigir para a cadeira ao lado de do acadêmico Hernani Soledade e solenemente depositar a água para uma cadeira vazia. Hernani, que aquela altura teria vindo para participar ao presidente de que aquele episódio do telefonema do morto Temístocles era de fato verdadeiro, após a revelação da viúva na Igreja da Vitória, olhava o garçom com desconfiança. O Secretário se despediu e o presidente o acompanhou até a porta. Parado no lado da sala, o garçom observava o cavalheiro ao lado de Hernani entornar a taça de água. Para encontrar o diabo não é preciso fazer madrugada. O poeta Cunha retorna ao gabinete e diz ao garçom:

- Só há o acadêmico Soledade na sala, de onde você tirou, Edgard, o estranho cavalheiro?

Ao que o garçom estático via aquele homem alto, bem trajado, de aparência nórdica sentado ao lado do acadêmico.

- Eu não estou inventando, o senhor não está vendo o homem aí? Até a água que coloquei, já tomou, observe a taça. Doutor, se ninguém saísse do seu, o diabo não teria o que fazer.

Hernani, que estava desconfiado, disse:

- Ele ainda está aqui do meu lado?

O garçom respondeu:

- Está. Ele ainda está do lado do senhor.

Hernani então falou:

- Com quem ele se parece?

O garçom seguro respondeu:

- Eu não tenho a menor dúvida, esse senhor já frequentou essa casa. É o Dr. Temístocles Braga, o dono daquela construtora.

Todos se entreolharam espantados, e Hernani começou a ficar com o corpo arrepiado de pavor. O poeta então falou Ao garçom que perguntasse ao invisível cavalheiro o que ele desejava. E Temístocles respondeu para que todos ouvissem:

- Estou aqui para testemunhar a canhalice de que Soledade é também capaz. Além de ser uma vivandeira, ele está conspirando para se eleger como próximo Presidente dessa casa.

E como que por mistérios desapareceu da sala, ficando a taça vazia em cima da mesa onde ele tinha bebido para espanto de todos que presenciaram a passagem também pela Confraria dos Letrados da Bahia.


VII

A cegueira tomava conta de D. Artemísia Teixeira Braga deixando-A às vezes completamente inútil perante o mundo. A cada visagem do marido em seu casarão o limiar entre a vida e a morte caía por terra. Os remédios não a sedavam o suficiente para não poder enxergar a figura esdrúxula do morto atormentando-a. Se abrisse a boca no mundo poderia ser internada num desses hospitais que ainda utilizam camisa de força e eletrochoque para barrar a loucura. Ela, internada num desses hospitais psiquiátricos da Bahia, seria motivo de chacota nas rodas da sociedade baiana. O seu passado estaria posto a prova e a tradição que ela ainda mantinha de pé poderia avacalhar-se a ponto de ser vista somente como a "viúva endiabrada da Vitória". Ninguém acreditava no seu relato, somente Hernani Soledade, que poderia entendê-la, mas havia um problema grave, o teor daquele telefonema ela tinha de guardar em segredo, punha a pique a estrutura da relação conjugal do acadêmico.

E eis que numa tarde, a governanta da casa veio lhe comunicar que havia uma moça de roupas extravagantes de nome Soraia Albuquerque, e estava querendo lhe fazer uma visita. Por alguns segundos tentou rememorar de onde conhecia aquela criatura que batia à sua porta. Então lembrou que era mais uma das amantes de Temístocles e que agora aparecia pessoalmente. E sem entender o que desejava aquela moça, já que a uma altura daquelas nada mais a surpreendia, mandou que a trouxesse até a sala onde ela estava.

Soraia se vestia como se estivesse num festival de hippies, com "piercings" nos lábios e na sobrancelha, os cabelos longos encaracolados e a pigmentação da pele como se estivesse sem ver a cara do astro rei desde bastante tempo, trazia aquele bronzeado bufado, típico de sul-americano quando demora no Velho Mundo. Ao ser conduzida pela governanta, batia os olhos em todos os movéis da casa e refletia em sua expressão um certo encantamento em estar naquele ambiente tão requintado. Sentada numa poltrona, estava a velha Artemísia que pediu à governanta que a deixasse a sós. Por alguns segundos Soraia observou a velha e sentiu um pouco de constrangimento em vê-la naquele estado.

- Boa tarde, D. Artemísia. Eu vim trazer minhas condolências à senhora pelo falecimento de Dr. Temístocles, mas estou aqui também para participar a senhora do que de esquisito tem acontecido após o falecimento de seu marido. Resolvi, então, procurá-la, pois onde moro não há parentes do falecido para eu participar dos fatos que vêm acontecendo há quase dois anos.

A velha recebeu aquela visita como um verdadeiro bálsamo. Diante daquele intróito ela tinha a consciência, que não estava louca como muitos a consideravam. Ficou a observar com cuidado o timbre de voz rouca daquela moça e imaginar como seria a verdadeira fisionomia. E Sofia passou a relatar à viúva os estranhos acontecimentos em que se viu envolvida. Há cerca de dois anos em Paris no seu apartamento no Boulevard de Port Royal, próximo a estação Mouton Duvernet, o seu ex-amante tem surgido de forma acintosa sem respeitar sequer a presença do seu marido, o Professor Cantal. Estava ela tomando banho na banheira quando surgiu Temístocles nu, de membro ereto convidando-a para namorar. E até em sua sala de aula na Universidade de Vincennes, ele também já surgiu sentado na frente de seu bureau, atazanando a vida e lhe dizendo palavras amargas que enodoava sua alma. Soraia buscou todo tipo de teoria para que houvesse uma definição lógica para aqueles acontecimentos. E como estava na Bahia para resolver algumas questões de ordem prática da sua vida resolveu procurá-la. D. Artemísia de cabeça baixa ouvia tudo atentamente. E ao término do relato lhe disse que nada daquilo que ela contara era novidade. Na sua casa as mesmas patacoadas vinham acontecendo e que até o Dr. Soledade fora incomodado numa madrugada por um telefonema do próprio Temístocles. A moça então perdera a chave e a sua expressão foi mudando diante daquela revelação. Imaginava Soraia que jamais D. Artemísia saberia dos seus romances do passado. Mas a Bahia é pequena e nem os mortos respeitam o próprio silêncio perante o tempo. A Bahia é badalo e os seus habitantes a detonar toda sorte de privacidade.

Para D. Artemísia aquela visita era incômoda por ela ter que suportar as confissões da ex-amante do marido e assim questionou à moça o que lhe levara a se envolver com um homem já de idade e que nem boniteza ele demonstrava aparentar. Soraia

então lhe revelou que se apaixonara pelo poder e não pelo homem e que l'argent revirara a cabeça, mas que ela estava casada e as aventuras amorosas da adolescência até hoje atormentava. E se D. Artemísia o perdoava também por sua traição e porque não mandar celebrar uma missa pela alma do morto. A velha disse-lhe que aquilo já tinha sido feito pelo próprio Doutor Soledade e que não resolveu a situação. Temístocles continuava com as visagens a incomodar meio mundo.

Logo a notícia de que Soraia Albuquerque estava de volta à terra dos templos barrocos repletos de ouro e prataria correu a província boca a boca. E num destas cerimônias no Palacete a morena da perdição, culta e bela, surgiu a tiracolo com o escritor Fernando Ramos, de Feira de Santana, numa tardezinha de autógrafos do poeta Zeca de Magalhães. Ambos entraram naquela tarde de julho no grande salão, falando um francês polido, permeado de citações verleniana que encantavam aos ouvintes que ali se encontravam. A casa estava cheia e o vinho do Porto com os gostosos canapés circulava, em fartura. O poeta José Narciso de Magalhães estava recebendo também naquela data uma comenda do Governo do Estado pelos serviços prestados à cultura baiana através da Organização Não Governamental - (CRIA), que estava instalada num dos casarões do Pelourinho e realizava um trabalho poético com adolescentes de baixa renda da periferia da capital baiana.

Soraia Albuquerque sempre foi de causar destaque em qualquer ambiente, sobretudo pelo porte de Miss e a silhueta barroca que lembrava um quadro do pintor flamengo Rubens. O escritor feirense recordava passagens da estadia na terra de Boris Viann quando bate os olhos no acadêmico Soledade e avista para ela imersa no bom vinho. O acadêmico ao perceber a presença da morena ficou pálido de uma maneira que parecia que não havia uma gota de sangue em seu rosto atomatado. E em vez de se aproximar da eterna paixão, deu meia volta no salão e saiu de fininho como o diabo corre da cruz. Soledade na verdade não queria aguentar o que o cão enjeitou no inferno. A moça estava naquela noite com o diabo no couro. E o diabo não era tão feio como se pinta. A bela Soraia, notando a recusa do seu ex-amante, fez de contas, que não percebeu a atitude e continuou numa roda de intelectuais baianos a discorrer sobre o acervo do Museu Beaubourg e o que lá existia sobre a literatura baiana. O poeta Cunha que a tudo assistia de parte fez boca de riso quando Hernani Soledade bateu em retirada. Parecia que a Bahia inteira estava atenta àquele desenrolar daquela história. Quando a noite foi caminhando feito uma criança que quer colo e canções de ninar que lembre sempre as mães Soraia e Fernando se dirigiram num táxi para o restaurante Axêgo de Manoel e Lia, no Largo do Pelourinho, para ali terminar a noitada.


VIII

A velha viúva da vitória continuava na vidinha doméstica, nada mudava a rotina. Até que um dia numa noitinha de outono de ventos fortes vindo do leste, Temístocles surgiu em definitivo para lhe fazer um pacto e lhe pedir perdão. Sentou-se na poltrona do quarto e disse-lhe:

-Acabe com todo esse conceito que você vem fazendo ao longo do tempo sobre a minha pessoa. Abra seu coração e me perdoe. Se você aceitar, todas as noites dormirei em sua cama. Amor, pelo que eu saiba, não tem idade, é igual a vinho velho francês cada vez melhor.

O manto da tarde desce diariamente sobre o casario do Corredor da Vitória, e Temístocles todas as noites se aconchega ao lado da viúva para dormir, é o que me dizem.

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