A Garganta da Serpente
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Um coração singelo

(Maria da Conceição Paranhos)

O sonho sem realidade de nada vale, mas para aumentar o peso da vida é preciso sonhar. (Autor desconhecido)

Não há partícula da vida que não carregue em si alguma poesia. (Gustave Flaubert)

Por los ojos de la monja
galopan dos caballistas.
Un rumor último y sordo
la despega la camisa,
y al mirar nubes y montes
en las yertas lejanías,
se quiebra su corazón
de azúcar y hierba luisa.

(Federico Garcia Lorca)

I

Debruçou na janela e o vento havia amainado. Viu a rua deserta àquela hora tardia e pensou em como sua vida estava amena naquele momento, após tantos anos de dificuldades de vários tipos. Olhou para dentro de sua casa e avistou a jarra de flores e os chocolates "Serenata de Amor" numa pequena bombonière de cristal translúcido - um presente de pessoa muito querida.

Vivera uma vida modesta até aqui: poucos recursos, solteira e sem filhos, havia, entretanto, uma área dourada em sua existência, a qual ela visitava sempre e constante, independente mesmo de sua vontade.

Acontecera-lhe um grande amor. Mais que isso: conhecera o amor. Creio que, independentemente de ter-se realizado ou não o amor na vida - digamos útil - das pessoas, o fato de ter-se vivenciado o sentimento do amor ilumina os dias e lhes confere sentido. Exala-se do espírito um ânimo de expectação - diferente da espera pura e simples - que não se volta para o objeto amoroso, mas para um estado, o qual pode ser descrito como de suspensão do tempo, onde se instala um sentimento de iminência. É um domínio mágico, suprarreal ou de uma espécie transcendente de realidade, em que o existir se agasalha e se desdobra, encantado. Quem já experimentou o amor sabe disto. Pode ser toda a vida um suceder-se de desencantos, mas o sentimento amoroso, se plantado na memória, presentifica-se a qualquer momento que se o experiente pela rememoração e salva-nos do tédio e do aniquilamento.

Prazeres era bonita. Belos cabelos negros, longos e lisos, rosto de maçãs salientes, pele acaboclada, olhos enormes e margeados por cílios espessos, sorriso largo, mostrando dentes largos e regulares, um pouco dentuça, o que lhe ficava bem. Corpo equilibrado, um tanto frágil, Muito séria, possuía pouco ou nada desenvolvido o senso de humor. Isso é de grande desvantagem, tanto para a pessoa, como para quem com ela convive, pois a grande saída da vida é o riso.

Não duvidem disso. Tenho presenciado situações em que apenas o riso foi a única saída, e, quem o experimentou, conseguiu e consegue safar-se de situações de extremo desprazer, desconforto, privação, ou mesmo, dor súbita.

Mas Prazeres era assim: reta, simples, digna, devotada a tudo e a todos, incapaz de uma deslealdade ou mau pensamento. O seu cotidiano repetia-se em regularidade monocórdia, dadas, mesmo, às características e necessidades de seu existir modesto.

Iniciava os dias com as orações mais gratas ao seu coração magoado, olhando para o forro do teto e ali via cada detalhe dos lambris pintados de branco, em camadas superpostas através dos anos. Levantava-se disposta, mas num ritmo que lhe era peculiar, cadenciado e pausado, apesar de incisivo e determinado. Fazia sua cama sacudindo antes os lençóis ao ar livre, pela janela, "para tirar-lhes o sono", como dizia. Arrumava a cama com esmero, alisando com sua pequena mão ativa toda dobra, todo amassado. Escovava os dentes já em baixo de ducha fria, mesmo no inverno, lavando-se profusa e rapidamente.

Vestia-se impecável, roupa bem lavada e bem passada, quase invariavelmente uma saia de brim com blusas de algodão cru ou linho, padrão de listras na sua maioria - gostava de roupas com listras, sobretudo as estreitas. Mocassins feitos à mão, italianos, que duravam anos - tinha três pares de mocassins mandados vir da Cordobán, em São Paulo, preto, café e marinho. Era um dos seus poucos luxos, os sapatos de boa qualidade e bem apresentados. Trazia sempre ao pescoço um crucifixo de esmeraldas e pérolas alternadas, discreta - presente de seus irmãos quando dos seus quinze anos, pendentes de uma corrente de ouro Cartier, fininha. Cabelos presos em basto rabo-de-cavalo, pele louçã, Prazeres se refrescava várias vezes ao dia com lavanda natural. Um desjejum rápido, almoço no fogo enquanto tomava o café, para levar em marmita térmica para o trabalho, que era no subúrbio.

Seu olhar passeava entre a janela aberta e duas reproduções de pintura expressionista trazidas por seu irmão mais velho de uma de suas viagens à Europa: A Dança da Vida, de Edvard Munch, e A Tempestade ou a Noiva do Vento de Arthur Kokoschka. Pontualmente, às seis e meia de cada novo dia, Prazeres chegava a ponto de ônibus na Rua Carlos Gomes. Já era conhecida pelos motoristas, cobradores e a maioria dos passageiros. Guardavam-lhe lugar na primeira fila de poltronas à direita, à janela, como preferia. Sorridente, Prazeres se acomodava no seu canto - em direção à Rodoviária - tirava seu terço de um estojinho de couro lavrado, de Florença - presente de uma amiga, e ia rezando até o ponto de chegada.

Na Rodoviária, tomava outro ônibus para o subúrbio onde trabalhava como professora, numa escola de ensino fundamental, em São João do Cabrito, Plataforma. No segundo ônibus, não rezava mais o terço. Lia trechos da Bíblia ou da Imitação de Cristo, presente de sua falecida avó - livrinho que prezava como poucos dos resumidos pertences de seu mundo.

Maria dos Prazeres tinha dirigido sua vida até aqui com muita dignidade. De família de recursos médios, interiorana, não lhe faltaram princípios sólidos nem fartura, pois nascera em pequena fazenda em Potiraguá, no Centro-Sul da Bahia, microrregião de Itapetinga.

Eram caboclos, seus ascendentes, e herdara o biótipo e a sabedoria dessa gente que acumula experiência indígena ancestral. Mesmo miscigenada às imprudências e veleidades dos brancos europeus, essa cultura consegue romper os limites da civilização em favor da ciência do viver. Uma das características desse tipo de mestiço brasileiro é o gosto pelos provérbios, máximas e aforismos: um para cada situação e sempre adequadamente.

Em parte, isso vem da cultura ibérica, principalmente de regiões de usos e costumes sedimentados pela tradição. Amalgamada à cultura nativa, essa tendência frutificou, desdobrando-se e aprofundando-se num modo de verbalizar a vida de forma direta, pejada de experiência histórica.

Prazeres tinha o hábito de definir situações da vida com tais provérbios e ditames, herdados principalmente de sua avó materna, o que conferia a suas opiniões a confiabilidade: via trita via tuta, no dizer de Hipócrates - o caminho batido é o mais seguro.

A família se dispersara após a morte do pai, Sr. Agenor, um patriarca verdadeiro, homem de modestas terras, que, entretanto, permitiram-lhe criar seus filhos com dignidade e alegrias. Logo em seguida, morreu-lhe a mãe, Dona Iracy, de tristeza, de saudade - sua vida fora construída em torno do marido, o qual amava devotadamente. Amava os filhos com ternura e fora mãe dedicada, mas, rompida a sociedade conjugal pelas mãos do destino, restou sem forças para continuar. Faltava-lhe a capacidade de ser inteira como pessoa - e, mulheres dessa cepa sucumbem, quando da morte do companheiro.

Havia a avó Donana, mulher sábia, cheia de fórmulas e ditames para a vida. Severa, mas terna no mais fundo. Mais que a mãe, o exemplo de mulher forte para a neta fora a avó, que sobreviveu à filha ainda, mas faleceu logo depois, de derrame.

Prazeres, a mais nova, era adolescente de doze anos quando ficou completamente órfã. Seus irmãos tocaram a vida para frente e dela cuidaram enquanto puderam. Quando a menina atingiu a maioridade, eles dividiram a pouca herança em partes rigorosamente iguais, e ela ficou com recursos minguados, mas suficientes para viver com modéstia. Mudaram-se para a cidade da Bahia, onde alugaram uma casinha aprazível no Rio Vermelho, na Rua do Meio. Terminados seus estudos de graduação, os irmãos emigraram, diplomados, para cidades mais atraentes em mercado de trabalho - eram cinco, os filhos do casal, ela, a única filha.

Um dos rapazes se fixou no Rio e os demais em São Paulo, onde exerciam suas profissões e constituíram famílias. Tentaram, um e outros persuadi-la a se mudar para perto deles. Ela não se inclinou a deixar seus alunos e sua cidade. Como não podia manter sozinha o aluguel da casa, mudou-se para um cômodo de quarto, sala, banheiro e uma pequena sacada nos fundos na Ladeira dos Aflitos. E o tempo se encarregou de esgarçar os laços da convivência mais próxima, até que, após mudanças sucessivas dos irmãos, perdera-se deles na vastidão do país.

Prazeres não tivera a vocação para estudos avançados. Depois do curso pedagógico, de segundo grau, passou a ensinar numa escola particular de subúrbio, com dedicação extremada ao que fazia. Esta era a sua única fonte de renda fixa, mas inventava uns biscates: alguns consertos de roupa, sequilhos, alfazema e lavanda artesanais - para complementar o minguado salário de professora primária.

Morava numa água-furtada de casarão em decadência, porém muito bonito, construído no início do século XVIII, fachada de azulejos portugueses. Embora modesta, sua morada tinha a vantagem de poder dispor do quintal da casa, bem como do jardim. Do seu quarto de dormir, muito bem arrumado em sua simplicidade, tinha o privilégio de contemplar o mar da Baía de Todos os Santos.

Mais de metade de seu modesto salário custeava o aluguel, pontualmente pago a cada dia 30 do mês durante seis anos sucessivos. O restante era para alimentação, constante e leve, embora soubesse cozinhar muito bem; uma roupa nova de quando em vez - vestia-se discretamente, com elegância de detalhes; cinema ou teatro uma vez por mês; sorveteria todos os domingos, após a reunião da casa paroquial que frequentava, nos Mares, apesar de assistir à missa das sete horas na Igreja dos Aflitos -construída no século XVII - a dois passos de sua casa.

Não desfrutava de maiores conhecimentos da religião católica, sua família não tomara essas providências. Possuíam a fé ingênua e simples dos habitantes de pequenas cidades do interior. Mas eram assíduos à igrejinha, ponto de encontro para muitas das providências no cotidiano do lugar - que ficava lado a lado com a casa em que moravam. Assim, a moça habituara-se a frequentar diariamente a missa e mantinha o costume da infância, que lhe alegrava o coração.

Era em 1970 e Maria dos Prazeres tinha 25 anos. No Brasil, vivia-se o clima angustiante dos efeitos do Ato Institucional no. 5. Meio sem entender as consequências disso, Prazeres o tinha copiado a ver se o transmitia de algum modo aos seus alunos. Colara-o no pequeno quadro de feltro verde que providenciara colocar no seu cantinho de trabalho, acima de sua escrivaninha - que fora, aliás, de sua avó, rústica, de madeira do sertão, putumuju. Lá estava o trecho do AI-5, copiado com perfeição:

1.
I. cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função;
II. suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais;
III. proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de segurança:
a) liberdade vigiada;
b) proibição de frequentar determinados lugares;
c) domicílio determinado.
§ 1º O ato que decretar a suspensão dos direitos políticos poderá fixar restrições ou proibições relativamente ao exercício de quaisquer outros direitos públicos ou privados.
§ 2º As medidas de segurança de que trata o item IV deste artigo serão aplicadas pelo ministro de estado da Justiça, defesa a apreciação de seu ato pelo Poder Judiciário.


A moça se levantava de madrugada, para surpreender o dia com o olhar encantado. Ia à missa todos os dias, às seis horas, e trabalhava até a noite, sem interrupção, quer na escola, quer em casa. Depois que acabava seu jantar frugal, punha em ordem os pratos com perfeição, fechava a porta, meticulosa e atenta, tomava um banho tépido e se enfiava debaixo de sua roupa de cama limpíssima e perfumada de alfazema. Se pudéssemos vê-la dormindo, neste momento, a contemplaríamos ressonando compassadamente, um terço nas mãos infantis.

Era econômica, comia lentamente, recolhia os pratos, que não tinham sobras, pois não cozinhava além do seu limite. Descansava uns dez minutos sentada perto da janela da pequena sala que dava para a rua, olhando um pouco o movimento de pedestres. Ia para a pia e lavava tudo com afinco, seus utensílios brilhavam.

Sua figura era frágil e sua voz, suave. Com vinte e cinco anos, parecia ter menos. O talhe ereto, gestos comedidos, assemelhava-se a uma fotografia em preto e branco com alta definição, de uma normalista da segunda metade do século XIX no Brasil. Nada parecida com a Maria do Carmo do romance A normalista do escritor cearense Adolfo Caminha, já que antes que lúbrica, era mística - portanto, era-lhe peculiar um sentir erótico: a vida lhe vinha pelos sentidos, principalmente a visão, e, daí, ao coração.

Numa tarde do mês de agosto, domingo, indo para a missa das seis da tarde, absorta em seus pensamentos, esbarrou distraída numa pessoa que vinha em direção oposta. Era um rapaz que mediava sua idade, bem apessoado. Ficou embaraçada, desculpou-se. Ele, olhar envolvente, aceitou as desculpas com uma brincadeira - "Pode usar e abusar!" - e ela ficou muito sem jeito, sorriu, encabulada e ruborizada. Ele lhe perguntou, com gentileza, para onde estava indo e se podia fazer-lhe companhia.

- Vou para a missa, respondeu Prazeres.

-Ótimo, também sou católico, católico brasileiro, sorrriu, brincando, e seus belos dentes se mostraram... - Como você se chama?

- Maria dos Prazeres Paranhos Ventura, prazer - estendeu-lhe a mãozinha fria.

Riram e rompeu-se o constrangimento de Prazeres. Seus olhos brilharam. O rapaz balançou a cabeça, enquanto apertava-lhe amavelmente a mão.

- Eu me chamo Teodoro. Teodoro Gomes. Mas como suas mãozinhas estão frias!

Prazeres ficou sem jeito, mas gostou do modo como ele se referiu ao fato. Andavam lado a lado. Vez por vez, seus corpos roçavam ao caminharem. Teodoro forçava um pouco o acidental.

- É... Sou muito friorenta mesmo. Com esses ventos de agosto, então...
- Não gosta de vento?
- Ah, gosto, gosto muito, mas fico assim, as mãos, os pés e a ponta do nariz gelados.
- Os ventos! Me identifico com essa estação aqui na Bahia e muito, exatamente por causa desses ventos de chofre a essa época do ano. Você sabia que há médicos que receitam banhos de vento para acalmar os nervos? Eoloterapia, se chama, de eolus, vento, em grego. Aliás, Éolo regia os ventos segundo a mitologia. Zeus, deus dos céus e pai dos deuses, deu a superintendência dos ventos a ele, que vivia na ilha flutuante de Eólia juntamente com Aurora, sua mulher, e seus seis filhos e seis filhas casados entre si.

- Que interessante essa história. Só acho esquisito o detalhe dos filhos, é um absurdo, isto! Onde já se viu irmão casado com irmã?

Teodoro sorriu com sabedoria, fez um gesto largo, de anuência, acrescentando:

- Na mitologia grega não havia a noção de incesto, como em nossa cultura nos seus inícios. Além do mais, na cultura judaico-cristã não é diferente. Veja a história de Adão, Eva e sua descendência, na Bíblia. É a mesma coisa.

Prazeres ficou silenciosa, pensativa: nunca havia pensado nisso antes. Nem conseguia entender todo o alcance do que Teodoro lhe falava. Vivia num mundo inocente e linear, cumpria sua existência com bonomia e ânimo positivo. Sempre muito ocupada, seu dia era cheio de tarefas e estas não deixavam tempo de sobra para muitos pensamentos, além dos relacionados ao seu dia a dia simples e honesto.

Teodoro percebeu o embaraço de Prazeres, evitou detalhes, mas continuou a falar. Gostava muito de discorrer sobre temas de sua área - era professor de História em prestigiado colégio da rede particular, dizia; e continuou sua elocução com entusiasmo.

- Quando Ulisses saiu na sua viagem, foi-lhe dado um odre que continha os "os ventos uivantes". Podiam ser libertados consoante as necessidades. O sopro de Zéfiro, um dos ventos, foi então enviado para ajudar os barcos a afastarem-se e prosseguirem a sua odisseia. No entanto, a curiosidade e a ganância dos seus homens fez com que estes abrissem o odre, pensando conter riquezas, libertando assim todos os ventos e desencadeando uma tempestade na qual se afundariam, salvando-se apenas Ulisses.

Prazeres ouvia, encantada com a cultura do rapaz. Tinha uma grande admiração por pessoas cultas e por artistas. Isso lhe vinha da convivência, em criança, com um amigo da família, poeta de Poções, estado da Bahia, Affonso Manta. Vez por outra ele visitava a família de Maria - como a chamava - e lia em voz alta seus poemas:

Fazer da brisa um traje sem medida
E do arco-íris fazer um tobogã.
Amar as mínimas coisas da vida.
E ter no olhar as luzes do amanhã.


Ele lhe levava livros de poesia e gravuras, e ela adorava ouvi-lo recitando.

Chegaram à Igreja, e Teodoro assistiu a missa com unção. Encantara-se com aquela moça tão preservada das maldades do mundo.

Após a missa, perguntou a Prazeres se não gostaria de tomar um suco ou um refrigerante ali mesmo por perto.

Os olhos da moça brilharam mais, e disse-lhe que, naquele dia, após a missa, haveria festa dançante na paróquia. Teodoro mostrou-se muito interessado, mas não queria se impor. Jeitosamente, perguntou a Prazeres se a festa era aberta a outras pessoas que não pertencessem à paróquia.

- Sim, sim, disse-lhe, com um pouco de precipitação que logo imediato moderou. - Bem...se você quiser e tiver um tempinho, pode vir comigo. As Irmãs do Bom Pastor enviam pãezinhos, doces e sequilhos deliciosos. Uma paroquiana, que é doceira conhecida, sempre oferece um bolo de laranja e uma torta de maçã. Fazemos sucos de frutas, há um grupo de jovens que têm uma banda e tocam muito bem, dançamos... É maravilhoso mesmo.

Foram andando para o anexo da Igreja de Nossa Senhora dos Mares, um prédio amplo, pintado de branco com janelas verdes, com o nome "Casa Paroquial Itaguaí", pintado, em verde também, na parede lateral - provavelmente em homenagem a alguma localidade da Arquidiocese. Entraram no salão, todo pronto para a festa. Era uma festa em benefício dos órfãos. Havia uma quermesse com objetos de artesanato feitos pelas paroquianas, e alguns doados pelos paroquianos comerciantes, de vária espécie. A festa estava bonita e alegre.

Teodoro se encantou com tudo, entusiasmou-se com aquela mocinha simples e de sentimentos puros e singelos, pelo que podia perceber, e ele era experiente nos seus quase trinta anos. Quis fazer-lhe um mimo e comprou-lhe uma caixinha de música com dois cisnes que nadavam no laguinho do espelho ao som do Tema de Lara, do filme Doutor Jivago.

Prazeres estava enlevada com o rapaz, rosto afogueado, olhos ainda mais brilhantes. Agradeceu emocionada:

- Não precisava tomar esse trabalho, tanta despesa!

- Qual despesa, menina, você merece muito mais.

Estendeu as duas mãos e segurou ambas as de Prazeres, beijando galante sua mão direita, delicado. Ela ficou mais corada ainda, baixou os olhos.

Dançaram, e ele a envolvia com suavidade e cuidado, sem pegadilhos nem avanços deselegantes ou audaciosos.

De volta para casa, conversaram. Ele lhe contou as circunstâncias históricas do Doutor Jivago, a propósito da lembrancinha que dera à moça. Ela ouvia com atenção devota, sorvendo suas palavras. Depois ele lhe falou da vida dos cisnes e da proverbial fidelidade dessas aves. Disse-lhe um pedaço do poema Os Cisnes, de Júlio Salusse:

Um dia um cisne morrerá, por certo.
Mas quando chegar este momento incerto,
em que, no lago, talvez, a água se tisne,


que o cisne vivo, cheio de saudade,
nunca mais cante, nem sozinho nade,
nem nunca nade ao lado de outro cisne.


E, logo em seguida, alguns fragmentos de Cisnes Brancos do Alphonsus de Guimaraens:

Ó cisnes brancos, cisnes brancos,
Porque viestes, se era tão tarde?
O sol não beija mais os flancos
Da Montanha onde mora a tarde.
...........................................................
Quando chegaste, os violoncelos
Que andam no ar cantaram no hinos.
Estrelaram-se todos os castelos,
E até nas nuvens repicaram sinos.


Ela estava muda de emoção. Quis dizer-lhe alguma coisa, mas nada lhe vinha à cabeça que estivesse à altura daquele momento sublime. Ensaiou pronunciar o nome do rapaz, mas hesitava, envergonhada, pelo que achava ser demasiado íntimo. O nome ficou rolando em sua boca, num misto de prazer e acanhamento, e afinal se decidiu:
- Teodoro... que coisa linda, meu Deus!

- Linda é você, menina, e aproximou seu corpo mais um pouco, enlaçando-a com firmeza pela cintura.

Quando chegaram, Teodoro se entusiasmou com o olhar terno de Prazeres. Enlaçou-a bruscamente e tentou beijá-la. Ela se assustou, gritou, entrou correndo em casa, fechou a porta, o coração disparado. Ele ficou ali, sem graça, aborrecido de sua temeridade e falta de jeito. Afastou-se com passos rápidos.

Duas semanas depois, indo comprar legumes, ela avistou Teodoro que também fazia compras na feira e o ficou observando de longe. Comprava frutas: uvas, mangas e pitangas. Fez-se visível, e ele a viu. Veio andando lento, aproximou-se com ar tranquilo, pediu-lhe perdão pelo gesto desairoso:

- Foi um impulso, um gesto impensado! Você estava tão bonita que não resisti. Minhas sinceras desculpas, Prazeres, você é uma menina rara e não quero deixar de encontrá-la e desfrutar, ao menos, de sua amizade.

Ela ficou sem saber o que responder, teve vontade de abraçá-lo e beijá-lo. Aceitou as desculpas e convidou-o para um cafezinho recém-coado. Ele aceitou com entusiasmo.

Começaram a namorar. Encontravam-se uma vez por semana, conforme quis Prazeres. Não queria precipitar as coisas nem impor sua presença. Ele achava muito pouco; "Fico com saudades, menina bonita".

A moça se extasiava com o jovem e belo professor de História. O professor de História se deleitava com a ingenuidade de Prazeres. Ele lhe disse que tivera uma noiva, e esta o trocara por outro, um homem muito rico.

- Ah! disse ela. A amar e a rezar ninguém se pode obrigar, acrescentou, desajeitadamente, pois o dito não se casava muito bem com a circunstância.

Ele não prestou muita atenção. Sorriu e disse ainda que tencionava se estabelecer, já ia entrar nos trinta, queria constituir uma família, amar e ser amado, ter seus filhos, plantar a árvore que nunca plantara, construir sua própria casa e escrever um livro, não: vários livros.

Ela abaixou a cabeça. Ele lhe perguntou se pensava em se casar. Ela sorriu, e lhe disse que não tinha tido tempo para pensar nisso em sua vida corrida.

- Ou você estava esperando a outra banda da maçã? Conhece a teoria de Platão a respeito do amor?

Dificilmente ela conheceria. Teodoro explicou com detalhe a teoria das almas gêmeas.

- É como o povo diz, acrescentou Prazeres, aonde vai a corda, vai a caçamba.

Teodoro sorriu afirmativamente. Com o braço esquerdo, envolveu-lhe a cintura. Andaram assim, lentamente, por algum tempo. Não ventava então, caía a noite, e as estrelas brilhavam. Rompendo a quietude, passaram quatro motos dirigidas por jovens afoitos, aos gritos e fazendo piruetas perigosas com grande alarido. Prazeres estremeceu assustada, Teodoro segurou-a com firmeza, protetor, estreitando seu corpo contra o dela. A moça se deixou por alguns segundos, e logo se afastou, envergonhada.

Marcaram encontro para a semana seguinte.

Não cabe, neste momento, questionar as características da personalidade de Teodoro. Não sei julgar se era ou não um canalha, se era aproveitador, se era machista - há um certo tipo de homem, inclusive no Nordeste Brasileiro, que gosta de ter uma corte de mulheres apaixonadas, que ele mantém por toda a vida, se já as possuiu, inclusive ajudando-as financeiramente. O certo é que possuía qualidades que encantam uma mulher: culto, educado, dono de conversa fluente, compassada, entremeada de observações inteligentes: uma verve mansa, contudo, aliada a um olhar que só os sedutores possuem.

Esta é a marca definitiva da personalidade sedutora - o olhar - que nada tem a ver com dotes físicos ou morais, embora possa incluí-los. Há pessoas extremamente belas e que, após o primeiro impacto provocado pela beleza, deixam de exercer um fascínio mais duradouro e não chegam a ser alvo de grandes paixões. Iluminam o momento de modo fugaz, e desvanecem-se.

Teodoro era naturalmente sedutor, não exercia a sedução de modo estudado, em absoluto: sua presença se impunha, ia se insinuando nos espaços do outro cada vez mais. Assim que começava a falar, gesticulando pausadamente e com um ar entre displicente e distraído, aquele clima de envolvimento se adensava. As pessoas ouviam-no com respeito e admiração, até embevecimento, tamanha sua facilidade e charme ao se expressar. Claro que Prazeres, por bonita que fosse, e amorosa, não conseguia entrar no círculo mágico.

Ela estava apaixonada, mas a razão e os princípios de sua formação interiorana a impediam de se entregar. Ele estava impaciente. Propôs-lhe casamento. Ela custava a acreditar no que ouvia. Ele fez grandes e enlevantes promessas. Ela acreditou, mas mantinha-se resistente a maiores intimidades.

Um dia, Teodoro chegou atrasado, suando muito, agitado: confidenciou a Prazeres uma séria perda, uma catástrofe. A escola o tinha dispensado por

motivo de redução do quadro de professores, já que havia os mais antigos, que foram poupados. O colégio estava passando por dificuldades, muita inadimplência por parte dos pais de alunos. Desesperado, Teodoro confessou que não sabia, diante desse baque, como ia levar adiante seus planos para o futuro e seu casamento. Prazeres compreendeu tudo, confortou-o, lembrou-o de que "quando Deus fecha uma porta, abre uma janela", desvelou-se em cuidados, comidinhas e carinhos.

Ele estava esquisito, distante, faltava sem avisar os encontros marcados, chegava atrasado, sempre com pressa: era uma crise profissional, dizia, passará em breve. Prazeres acreditou nele, consolava-o como se faz a uma a uma criança, com palavras ternas e sussurradas suavemente ao seu ouvido. Ele, esquisitão.

- A grandes males, grandes remédios, Teodoro. Alguma coisa muito boa vai acontecer, tenha paciência: a lua não fica cheia em um dia.

Teodoro chorava no ombro de Prazeres. Ela o consolava com palavras e carinhos, mas ele se mostrava desarvorado, soluçava:

- Todos os nossos planos, meu amor, tudo por água abaixo!

- Que é isso, Teodoro, antes perder a lã que a ovelha! Você é inteligente, culto, instruído! Logo, logo arranja um emprego ainda melhor! Contra a má sorte, coração forte!

Num gesto de desprendimento, Prazeres se entregou a Teodoro. Claro que o queria, entretanto, princípios são princípios. Só se os rompe, como no caso presente, numa emergência.

Foi um momento muito abaixo de sua expectativa romântica da moça. Tudo muito rápido e, logo em seguida, ele, já estava vestido e de pé, enquanto ela o olhava meio atordoada ainda. Ajoelhou-se ao lado de Prazeres, beijou-lhe a mão muitas vezes, chamando-a de santa e de "a mãezinha dos meus filhos". Explicou sua pressa - aquele momento divino o enchera de ânimo, agora ele se sentia com forças para ir à luta!

- Como você diz, minha querida, ferro se malha, quando ainda está quente! Prazeres entendeu. Sozinha, recompôs a cena amorosa e os meses anteriores. Havia alguma coisa que lhe escapava, mas não sabia exatamente do que se tratava.

Teodoro telefonou-lhe no dia seguinte, marcando encontro numa sorveteria. Ela estranhou, pois o ponto de encontro era sempre a sua casa, para depois decidirem aonde ir. Mas não vacilou: não era do seu temperamento. Foi encontrar-se com ele.

Chegando à sorveteria, avistou um amigo de Teodoro. Cumprimentou-o educadamente, e sentou-se em uma das mesas, esperando o noivo.

O amigo de aproximou-se, pediu licença para sentar-se à mesa, ela acedeu um pouco constrangida - e se Teodoro se aborrecesse? - mas sua educação a fez consentir. O amigo, que se chamava Lúcio Mendes, um fotógrafo conhecido na cidade, muito jeitoso no seu trato com as mulheres, começou a conversar sobre generalidades. Ela respondia sem entusiasmo, olhando o relógio de quando em vez. Lúcio percebeu a ansiedade dela. Fez uma pausa na sua conversa, respirou fundo e disse-lhe:

- Prazeres, sinto muito, mas tenho algo importante, que não é agradável, para lhe dizer.
- Dizer o que?
- É da parte de Teodoro.
- Meu Deus, aconteceu alguma coisa com ele?
Ela se agitou, quase às lágrimas, ofegava.
- Não, não, se acalme, não fique assim, por favor, está tudo bem com a saúde de Teodoro, quanto a isso, pode ficar descansada.
- Mas, então, do que se trata, meu Deus, do que se trata?

- Prazeres, Teodoro não teve coragem de vir até aqui. Pediu-me para fazer isso em seu lugar.

Prazeres o olhava com olhos imensos, pálida. Mil pensamentos vinham em turbilhão à sua cabecinha, antes tão sossegada e aprumada.

- Prazeres, Teodoro não teve outro jeito, acredite, ele estava endividado até a raiz dos cabelos, desesperado.

Ela chorava baixinho, incessante e surdamente, soluçava. Lúcio teve pena da moça, afagou-lhe a mão, ela chorou ainda mais. Então ele resolveu entrar em detalhes - o que não estava nos seus planos.

- Ele vive há alguns anos com uma senhora de idade, muito rica, que já o vinha ajudando financeiramente. Teodoro foi amontoando dívida em cima de dívida, fazendo o que não podia. Na verdade, ele sempre teve uma tendência a gastar o que não podia: viagens, aparelhos eletrônicos, livros, discos, roupas, perfumes, restaurantes caros... O resultado foi uma encrenca total, com agiotas à sua porta e ameaças de morte. Um horror, coitado. Então foi que a senhora descobriu que ele estava tendo um romance com outra mulher... desculpe...

O choro de Prazeres atingia o paroxismo. Lúcio providenciou um copo d'água e esperou ela se acalmar um pouco, confortando-a com suavidade. Esperou ela se recompor um pouco mais e continuou:

- Ontem, ela os seguiu, com um táxi, até a porta de sua casa, e ficou aguardando até ele sair. Aí foi aquele horror: ameaçou-o de cortar qualquer auxílio financeiro, fez um escândalo. O pobre Teodoro já está sem emprego há dois anos, e o que poderia fazer, se não prometer à megera que se afastaria de você? Prometeu, prometeu. Mas pediu-me para dizer-lhe que essa situação não vai durar muito, ele vai procurar um emprego e reconstruir a vida para ser digno de você - essa última afirmativa de Lúcio foi por sua própria conta, para aliviar a dor da moça.

Prazeres se levantou, atordoada, correu em direção ao ponto de táxi próximo, apesar das tentativas de Lúcio em detê-la.

Em casa, fechou porta e janelas, e entregou-se a uma dor desordenada. Jogou-se ao chão, gritou, clamou a Deus, gemeu sozinha durante toda a noite até o dia chegar. E o dia chegou com um sol radioso e uma brisa amena.

O Zéfiro, pensou Prazeres, é o Zéfiro. Não chorou mais. Levantou-se do chão que presenciara seu sofrimento intenso. Tomou um banho meticuloso, aprontou-se com detalhe. Juntou seus pertences, arrumou tudo muito bem numa pequena mala de couro preto. Fechou a casa toda e cuidadosamente conferiu se tudo estava em ordem. Saiu com a mala na mão, bateu a porta, trancou-a.

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Esta parte da história de Maria dos Prazeres foi aquela da qual tomei conhecimento. Ninguém mais a viu. Procurei saber de notícias dela através de Lúcio, com o qual, dos três, sempre tive mais aproximação. Ele me informou que ninguém sabia do destino da moça.

- E Teodoro?
- Ah, este continua na mesma vida de sempre. Nem mesmo procura emprego. Acomodou-se na casa da Dona Equidina e lá vive, servindo-a e divertindo seus convidados nos jantares e reuniões. Cultura ele tem, você sabe, e é muito espirituoso, muito vivo.

Para onde teria ido essa pobre moça?



II

Não sei se era a mesma Maria dos Prazeres, mas me contaram que havia uma empregada numa casa de família no bairro de Brotas, no Horto Florestal, que parecia ser ela. Trabalhava ali como faz-tudo e era muito querida pela família cujas rendas originavam-se do cacau. Quem me contou essa parte da história foi o jardineiro da casa, que veio a trabalhar no edifício onde moro, após a morte da antiga patroa, Dona Alba.

Lá, havia duas crianças, Paulo e Virgínia, uma de quatro, um rapazinho, e a outra, a menininha, de três anos: pareciam-lhe plasmados em matéria preciosa. Eles faziam dela gato e sapato. Brincava de cavalinho, fazia teatrinho contando histórias com as mãos envoltas em meias e lenços de cores variadas, até construiu um pequeno palco para marionetes e mamulengos que passou a confeccionar com as crianças, e a madame Alba, que no início achava tudo uma bobagem - era muita bagunça no jardim de inverno, onde faziam os bonecos - começou a solicitar as apresentações nos chás beneficentes que oferecia nos seus jardins, uma vez por mês.

Foi um sucesso. Prazeres, como era de seu temperamento - pois tudo indicava ser a mesma pessoa - fazia tudo com perfeição. As roupas dos bonecos tinham detalhes incríveis, de restos de costuras cedidos por Dona Alba, após ter visto a beleza do trabalho: botões raros, flores, miçangas, rendas e entremeios, galões e ligas, sianinhas e semelhantes. Os bonecos eram uma lindeza, confeccionados em papier maché ou adaptados de brinquedos sem uso de Paulo e Virgínia.

Para instruir as crianças de modo agradável, ela escolheu alguns personagens de culturas diversas, como antropófagos com as cabeças adornadas de penas, beduínos no deserto, dinamarqueses pescando, um mandarim, boxeadores, lutadores de sumô e representantes de várias artes marciais. A dupla mais esmerada era a dos lutadores de jiu-jitsu: um deles era imenso e assustador; o outro, seu contendor, frágil e belo, com rosto feminino. Também treinava caligrafia com as crianças, em cadernos que ela mesmo confeccionava de modo primoroso.

Prazeres, encantada com a beleza das crianças, róseas e douradas com seus cabelos ao sol, brincando com elas de certa feita, levantou-as, jogando-as para cima para diverti-las, beijou-as com efusão e carinho entre risos e gritos de alegria. Dona Alba chegava ao jardim e viu a cena. Fechou a cara. Chamou Prazeres e lhe disse para não beijar as crianças, pois nem mesmo ela o fazia para evitar transmissão de doenças. Na boca existe o maior número de bactérias de todo o corpo! Prazeres ficou chocada. Humilde, baixou a cabeça e sua alegria se esvaiu. A boca! O beijo, esse ato tão sublime! As crianças não entenderam, mas seu entusiasmo arrefeceu ao perceberem a tristeza no rosto de Prazeres. Foi uma tristeza. A palavras loucas, orelhas moucas, pensou Prazeres, acrescentando para si mesma "coração que suspira, não tem o que deseja", portanto, vou me calar; dos males, o menor. E levou as crianças para tomarem banho e escovarem os dentes, conforme ordenara Dona Alba.

Prazeres não gostava da maioria dos convidados da casa. Eram soberbos e falavam de trivialidades o tempo todo, pelo menos nos fiapos de conversa que ouvia, ao ajudar no serviço dos chás servidos após os jogos de cartas, e outras reuniões sociais, mas havia exceções.

De quem ela gostava era do Doutor Gustavo Bovary, com sua testa larga, seus bigodes fartos e descendentes, seus olhos um pouco pesados, seus cabelos descobrindo uma calvície, mas de um castanho meio ruivo, e meio longos na região da nuca. Chamavam-no de Senhor Desembargador. Dona Alba contou que ele sofria de epilepsia e que fora criado num hospital - o pai era médico. O modo de dirigir-se às pessoas era de uma cortesia espontânea, sempre uma palavra gentil, sem ser bajulador. Ao contrário, era alvo de bajulações constantes, dado o respeito de que era alvo por toda a sociedade. Era conhecido como "o advogado das causas perdidas", fora Juiz por muitos anos. Defendia minorias e revelava os podres da sociedade. Em consequência disso, fora alvo de perseguições no passado, desvanecidas por seu sucesso profissional subsequente.

O Desembargador vestia quase sempre uma ampla casaca castanha e tinha uma maneira de gesticular tão cativante, que Prazeres sentia uma perturbação intensa ao vê-lo -aquela que em nós provoca a presença de pessoas fora do comum. Além disso, ele a chamava de "a moça-felicidade", em alusão à bonomia do temperamento de Prazeres. Amor e fé, nas obras se vê, pensava a moça ao observar aquele homem que a adotara espiritualmente: levava-lhe livros, gravuras, discos, sugeria jogos para as crianças. Dera-lhes um belo globo terrestre, que podia ser ligado à eletricidade ou alimentado por bateria, comprado em uma de suas viagens à França, numa loja em Rouen. A pouca ilustração de Prazeres é devida ao Doutor Gustavo.

À noite, ela ia para o seu quarto, no alto da casa de dois pavimentos, uma espécie de jirau, de onde podia contemplar a cidade; e o mar, ao longe, aparecia como uma nesga de metal azul, imóvel.

Já faria um ano exato desde o desaparecimento da Prazeres da Ladeira dos Aflitos, após a vergonhosa retirada de Teodoro.

Era outono novamente, em início de noite. A lua, em seus primeiro quarto, clareava uma parte do céu. A moça chamou as crianças para um passeio nos jardins e lá se foram, dos jardins ao pomar, do pomar à horta, conversando e cantando Se esta rua fosse minha, canção amada por Prazeres e adorada pelas crianças. Ela possuía uma voz excepcionalmente bonita. Modulava as canções de modo encantador, e as crianças adoravam suas cantigas. A moça lhes dizia que iria ladrilhar os caminhos de brilhantes para as crianças passarem, e que o Bosque Solidão escondia os anjos que, em vez de roubar corações, dava presentes às crianças boas. Sentaram-se em baixo de uma mangueira, onde fora construído um banco que a rodeava. Dona Alba veio ao encontro dos três e ali se sentou.

De repente, a luz da lua iluminou as folhas secas que estavam pelo chão, e ergueu-se em bote armado uma serpente assustadora. Paulo foi o primeiro a ver o réptil. Gritou assustado, apontando-a. Dona Alba ficou logo em pé no banco, puxando ambas as crianças. Prazeres ficou à frente dos três, de costas para eles, em baixo, braços abertos inclinando-se para trás, a protegê-los. Numa fração de segundos tomavam-se essas medidas. A cobra estava no auge do bote e ia atacar, Prazeres era o alvo próximo. Esta olhou para os lados e avistou a pá que o jardineiro tinha usado pela manhã, encostada no tronco da mangueira. Inclinou o corpo lentamente nessa direção e decididamente pegou a pá e alcançou em cheio a cabeça do bicho, que caiu por terra, ondulando freneticamente.

Esse ato heróico foi comentado por todos, com muitos elogios à coragem da criada. Dona Alba afeiçoou-se a ela, depois disto, baixou um pouco sua arrogância fútil e arrefeceu os preconceitos.

Um dia, quando Prazeres foi às compras a pedido da patroa, ouviu vozes discutindo no estacionamento no supermercado.

"- Seu gigolô safado!", foi o que ela ouviu. "- Mas eu não fiz nada disso, é uma calúnia!", foi o que ela viu. Prazeres reconheceu aquela voz, não havia como duvidar. Era a voz de Teodoro. Escondeu-se atrás de uma pilastra e procurou localizar de onde vinham as vozes.Viu a cena: Teodoro estava, naquele momento, sendo levantado pela gola da camisa, "abotoado", como se diz, por um homem que dava dois dele, espadaúdo. Prazer ficou olhando atônita. Como era boa, teve o instinto natural de correr para ajudá-lo ou chamar alguém que o fizesse. Conteve-se, esperou. O grandalhão gritava mais: "- Seu corno de uma figa, você vai ter de me pagar agora!".

Prazeres, ao ouvir aquilo, reportou-se à vida na época de Teodoro, na dor, no sentimento de desgraça, na humilhação, na mudança radical de seus planos de vida - tudo à sua frente, doendo, doendo muito. Reteve a respiração e fechou os olhos. Repetia as palavras da oração de Santa Tereza de Ávila, que aprendera em espanhol com Seu Baldomero, da padaria de sua cidade natal: Nada te turbe, / nada te espante: / todo pasa - / Dios no se muda./ La paciência todo lo alcanza, / Quien a Dios nada le falta, / solo Dios basta. "A árvore se conhece pelos frutos", pensou. Ocorreu logo em seguida a seu coração generoso que o outro poderia estar errado, de Teodoro ser a vítima.

Em uma bela manhã de setembro, e Prazeres surpreendeu-se espantosamente feliz. Não estava sofrendo, só espantada e até, solidária. Ajudaria, se pudesse. Resolveu ajudar. Aproximou-se e bateu no ombro do grandalhão:

- Senhor, por gentileza...

Ele se virou irado, já pronto para dizer uma grosseria, quando se viu frente a frente com a doçura de Prazeres. Desarmou-se, "desabotoou" Teodoro, que ficou ali, estático, olhando para sua antiga namorada.

- A senhorita quer falar comigo, senhorita? Perguntou o grandalhão.
- Sim, meu senhor.
- E o que é?
- Conheço este senhor, apontando para Teodoro, é um homem de bem, deve estar havendo algum engano.

O grandalhão desatou numa gargalhada portentosa.

- Isso aí, homem de bem? Moça, isso é um verme!

Teodoro, transido, abaixou os olhos, manteve-se imóvel.

- Senhorita, eu lhe digo, havia um caboclo na minha terra que dizia: "Doutor, tem dois tipos de serviço que eu não faço: é subir em coqueiro e descer em cacimba", e acho que ele tá certo. Mas para me livrar desse sujeito aí, eu subo num coqueiro e desço numa cacimba quantas vezes for preciso. Não sei como uma pessoa decente como a senhorita se dá com gente dessa laia!

- Desculpe, meu senhor, é que ele é de minha família e...
- Moça, eu não queria estar na sua pele! Parente como esse é desgraça.
- Eu posso ajudar de que modo, meu senhor? indagou Prazeres.
-Esse sujeito me deve, tem um ano, uma quantia que emprestei em confiança, com pena dele, que estava sem dinheiro pra comer. Agora estou com filho doente em casa, precisando comprar remédio, e esse... esse caloteiro fica enrolando.

- O senhor me diga quanto é, que eu vou ver se posso pagar. Ele me paga depois, ele sempre pagou, retrucou ela, sem olhar em nenhum momento para Teodoro.

Não há emoções indescritíveis, nem são incontáveis as tristezas, o tempo é que não é propício. Se os momentos são incertos, e as palavras vêm tardias, depois dos heroísmos e ações imaginadas, a verdade, é que Teodoro ficou sem agir e parecia não pensar, nada falou.

Tudo foi feito muito rápido, a vida correndo e os instantes passando antes de virem a ser:

Prazeres fez um cheque e o entregou ao grandalhão, que agradeceu e disse, de saída:

- Cuidado com esse sujeito, senhorita! Pode ser seu sangue, mas não presta, me desculpe, mas ele não vale o chão que pisa.

Nem tudo são metáforas. Entretanto tudo, na riqueza de seu acontecer, nos deixa um risco, um traço de inacabado, uma cicatriz a ser curada. Muitos poderão nos descrever tal fenômeno, mas nem poucos conseguirão explicar no exato frescor de sua verdadeira atualidade, por exemplo, o gosto rascante da cajuada ou a súbita alegria trazida por telefonema de amor ansiosamente esperado. São tarefas para grandes conhecedores da alma humana.

Pois bem, a fisionomia de Teodoro foi além de tudo o que eu já ensaiei relatar: horror, vexame, pânico, desamparo, medo, vergonha, atordoamento - isso e muito mais que escapa às minhas limitadas possibilidades descritivas.

Afinal, o que é que a linguagem pode nos oferecer, diante da riqueza da experiência humana? Apenas realizamos uma leve incisão no tecido pujante da vida, quando a descrevemos. Se a vida exsudar desse corte, aí teremos uma possibilidade (ainda possibilidade, vejam bem) de atingir uma realização artística, pois profundamente humana, humanizada e humanizante, embora sempre passível de mais se humanizar: humanizável, digamos, em estado de contínua mudança que, se tivermos sorte, ou graça, será para chegar mais perto do núcleo da emoção e da paixão, do desejar e do querer, do expressar com palavras aquilo que pertence a outra ordem de existência. A linguagem é como um corpo estranho dentro do coração da vida. Só aos poetas é dado torná-la familiar ao ser humano, mas poetas são seres raros e poucos na história das letras e da humanidade. Tivesse eu nascido com esse dom! Quem sabe, assim, poderia entender melhor a alma humana, e, consequentemente, entender-me mais?

E agora, como encontrar um rumo para esse relato?

Quedo-me a cismar se Teodoro é apenas o homem que entrevimos até aqui. Vez por outra paramos no mesmo lugar, por falta de orientação. Algo dentro de mim percebe nenhum de nós muito diferente do outro. Mostramos a face luminosa para o mundo e ocultamos a sombria. Percebemo-nos, no decorrer da vida de modo parcial e falto: não conseguimos ver o Outro em sua inteira existência. Dependendo da perspectiva em que nos situamos ou do momento que vivemos divisamos aspectos diferentes de um mesmo indivíduo. O fato é que pouco sabemos uns dos outros. E não sabemos das verdadeiras razões que levaram Teodoro àquele momento de derrota e vergonha.

Não, não me agradam os paradoxos. Desgosto deles, embora consiga, às vezes, entendê-los. A vida já é complicada algumas não poucas vezes e deveria ser tornada clara, fácil, gibi antigo, em que conhecemos a máquina das ações, pulamos por cima delas e vamos direto às alegrias - diálogos curtos, vitória do herói. Isto, na teoria; e "a teoria, na prática, é outra", ao pensar de Mao Tse Tung.

O que fez Teodoro, e qual será o significado íntimo desse gesto?

Ajoelhou-se aos pés de Prazeres, beijou-lhe os pés aos prantos. Não teve a audácia e o destemor de proferir palavra.

Prazeres virou as costas lentamente e andou em direção ao interior do mercado com absoluta serenidade e, garanto-lhes, leitores, sem esperar que ele a seguisse: ela tinha feito a sua parte, pois ela era assim mesmo, um fio de prumo.

Teodoro levantou-se atordoado. Não teve a audácia de ir atrás da moça. Enfiou um passo rápido em direção à rua e perdeu-se na multidão. Ninguém de meu conhecimento nunca mais ouviu falar dele.

Prazeres fez suas compras e voltou para casa. Pálida, arrumou-as, tomou um banho, entupiu-se de lavanda como nunca antes, deitou-se olhando para o teto de seu quarto. "Pelos frutos, conhece-se a semente", murmurou. E até o último dia de sua vida limpa rezou pela salvação da alma de Teodoro e deu graças a Deus por ter podido ajudá-lo naquele momento difícil. O amor que sentiu por ele transformou-se em amor em Deus, como o viu Santo Agostinho: amar para redimir o pecado do outro.



III

O tempo escoava, as crianças cresciam.

Dona Alba recebeu uma pequena herança de uma tia por parte de pai, que falecera. Comprou uma casinha de veraneio, muito aprazível, no município de Camaçari, em Arembepe, a poucos metros da praia. Passaram dias felizes naquele sítio.

Prazeres adorava ir à feira para fazer as compras da casa. Gostava, principalmente, de comprar frutos do mar fresquinhos, pechinchando sorridente com os vendedores. Numa dessas feitas, ficou a observar os barcos chegando à praia, as mulheres dos pescadores recebendo os maridos com alegria, aquele alarido alegre mesclado ao arrastar-se das marolas à beira da praia e ao cheiro de maresia e pescado.

De repente, Prazeres ouviu alguém dizer: " - Mas não á a filha de Seu Agenor, de Potiraguá?" Ela se voltou v
amente para ver de quem era aquela voz: era uma senhora de seus setenta anos, carregando uma criança de colo. Reconheceu a fisionomia de uma vizinha de sua infância, Anastácia. Suas famílias moravam em ruas contíguas e seu pai, Seu Totônio, possuía um armazém que a fascinava - repleto de itens variados, inclusive brinquedos de armar, feitos de madeira pintada em cores vibrantes e - isto ela adorava - uns copinhos que, tangidos com um pequeno bastão de madeira, emitiam sons encantadores e diferentes uns dos outros. Aproximou-se:

- Maria dos Prazeres, de Seu Nô? É você, não é?

Abraçaram-se. Prazeres encantou-se com o bebezinho. Dona Taza - Anastácia - contou que era seu neto e ficara órfão do pai. Sua filha se casara com um rapaz de Ibicaraí, pescador, morto em dia de tempestade, e, logo em seguida faltou-lhe a mãe, sua filha, Lívia: Prazeres se lembrava dela?, que estava grávida na ocasião da viuvez; a pressão subiu muito, teve eclampsia, mas a criancinha nasceu com saúde. Ela, a avó, a criava, mas as dificuldades financeiras eram terríveis.

Prazeres se compadeceu e levou Dona Taza e o bebê para Dona Alba conhecer. Conversa vai, conversa vem, Dona Taza, aos prantos, contou que tinha ido à praia naquele dia na esperança de encontrar algum conhecido e pedir-lhe para ficar com a criancinha, até adota-la, se fosse o caso: não tinha mais onde morar, estava de favor na casa de uma ex-patroa.

Prazeres ouviu o relato, a emoção atada, o choro à beira de correr, de compaixão do bebê e da avó. Pediu à patroa para acolhê-los por algum tempo, a casa era grande. Ela mesma se encarregaria das despesas, afinal onde comem dois, comem três, dona Alba!

A patroa consentiu, meio aborrecida, mas consentiu. Arguiu que não eram apenas dois os que ali comiam, mais seis, contando com o caseiro e a cozinheira. E as despesas com a educação dos filhos! E depois, se ficassem, quem iria arcar com o ônus da educação e da saúde da criança?

Prazeres disse que Dona Taza poderia cozinhar, se a cozinheira arranjasse outro emprego, ou tomar conta da casa, se o caseiro não continuasse, pois, pelo que parecia, não iria continuar mesmo, e...

- Está bem, atalhou Dona Alba. Mas veja bem que não seja por muito tempo. Só até a avó conseguir melhorar sua situação!

Prazeres nunca se mostrou tão disposta para o trabalho. Esfalfava-se para fazer tudo à perfeição, cuidava de toda a roupa da casa - que antes era lavada fora, fazia todos os consertos e reformas

O menino ainda era pagão. Prazeres como madrinha, batizaram-no com o nome de Rômulo na Igreja de São Francisco, em Arembepe mesmo. Foi uma cerimônia simples, mas, depois, o Zé Gringo, dono do bar mais conhecido de Arembepe, ofereceu o café da manhã, lá ao modo dele, resmungando sempre. Alguns hippies apareceram, vindos da Aldeia. Zé Gringo ficou zangado com isso - não gostava do pessoal da Aldeia. Na Vila, aliás, todos estranhavam seus modos que achavam promíscuos, sua maneira de se vestir. Além disso, fumavam maconha, não tinham respeito, os casais, todo mundo transava com todo mundo!

Com o tempo, Dona Alba achou que Dona Anastácia explorava Prazeres. Não sei se explorava, sei que ela assumiu integralmente o "sobrinho", que acabou sendo adorado por Paulo e Virgínia. Dona Alba olhava com restrições essas intimidades, mas deixava passar para não aborrecer seus filhos. Acabou contratando Dona Taza como caseira e, de volta à cidade, Prazeres suplicou-lhe para levarem o bebê para a cidade. Após alguma relutância, concordou.

Era o filho que não tivera - já estava agora beirando os quarenta anos, em 1983, e nunca mais pensara em casar-se, após o episódio de Teodoro. Voltaram à cidade por algum tempo.

Ali, Dona Alba teve a notícia de que suas finanças iam de mal a pior: o cacau já vinha apresentando problemas com a praga da vassoura-de-bruxa há algum tempo. A situação era grave e foi se agravando mais e mais. Em pouco, Dona Alba estava pobre: resolveu vender a mansão do Horto e se mudar para a casa de veraneio.

Os meninos já estavam crescidos, podiam se movimentar com facilidade. E o futuro deles estava assegurado, pois o pai assim providenciara antes de morrer. Não tardou muito e ambos quiseram estudar fora, em São Paulo. Como havia recursos poupados para os estudos dos dois, isto foi concretizado. Num dia de muita chuva partiram juntos para São Paulo, para fazerem seus estudos de graduação. Iriam morar na casa de uma tia do lado paterno.

De certo modo aqui se conclui uma parte importante da vida de Prazeres, pois os meninos foram por anos o centro de sua vida. Sentia saudades, muitas saudades. Mas havia Rômulo.

O "filho" de Prazeres desabrochava bonito e saudável. Tornou-se a alegria da casa: a própria Dona Alba apegara-se a ele, em momento tão difícil de sua vida, com sua mudança de padrão de vida e a ausência de seus filhos.



IV

- Está no tempo de Rômulo fazer a Primeira Eucaristia, disse Dona Alba a Prazeres, enquanto sentadas à varanda da frente da casa cerzindo roupas e fazendo outros pequenos consertos. A moça gostava muito de consertos, tinha prazer em verificar as roupas que antes pareciam imprestáveis e depois ficavam como novas.

Prazeres anuiu entusiasmada:
- Na Igreja de São Francisco, Dona Alba?
- Oh, não, vamos fazer na cidade. Vou, falar com os padres do Colégio Antonio Vieira. Fazemos lá na capela. É uma cerimônia muito bonita, comunitária, no mês de outubro sempre. Mesmo o menino estudando em escola pública, pode participar da cerimônia, os jesuítas facilitam.

Começaram os preparativos para a Eucaristia de Rômulo, que crescia em inteligência, graça e beleza, para alegria de sua madrinha. Ele passou a frequentar o curso de preparação para o sacramento, e foram às compras para providenciar a roupa da Eucaristia. Compraram o linho branco, no Shopping Itaigara, os objetos litúrgicos nas Paulinas.

Em casa, Prazeres se apressou em tirar o excesso de goma da roupa, a fim de cortar um lindo terno para seu afilhado. Na área de lavagens da casa, foi enchendo uma grande bacia de zinco com um caneco de flandre, que ficava na prateleira acima da pia da lavanderia. A água, à luz do dia claro, brilhava em pequenos sóis dentro da bacia. Prazeres olhou aquele pequeno encanto com alegria, pensou que era um prenúncio de dias muito claros para seu querido menino.

Todos os dias levava Rômulo ao Antonio Vieira, para a preparação da Eucaristia.Tomavam o ônibus até a Rodoviária, logo após o almoço, e daí seguiam para o Garcia, bairro onde fica o colégio. Ali permaneciam até as 18:00h e retornavam à Rodoviária para tomar o ônibus de volta a Arembepe. No intervalo, comprava na cantina do colégio, um sonho e um suco para o afilhado. Como o dinheiro era reduzido, não comia nem bebia nada, a não ser um golinho do suco de Rômulo, quando sobrava, pensando sem amargura: "até a morte, pé forte".

Ajoelhava-se para fazer suas orações na Igreja, enquanto esperava o menino cumprir suas duas horas de instrução religiosa.
Um desses dias, fitando a imagem da Virgem, de joelhos, diante do Menino Jesus e, atrás do Tabernáculo, fixou o olhar num quadro, que representava S. Jorge trespassando o dragão."Como um santo pode usar uma lança dessas, meu Deus, e matar um animal?" Lembrou-se, depois, que dragões não existiam, mas ficou impressionada com aquele quadro agressivo.

Nos dias seguintes, o sacerdote reuniu os familiares para prepará-los também. O sacerdote fazia um resumo da História Sagrada. Prazeres supunha ver o Paraíso, o dilúvio, a torre de Babel, as cidades em chamas, pessoas que morriam, ídolos destruídos e guardou deste deslumbramento o respeito ao Altíssimo e o temor da Sua cólera. Depois chorou, ouvindo a Paixão. Porque crucificaram Aquele que amava as crianças, alimentava as multidões, curava os cegos e tinha querido, por bondade, nascer no meio dos pobres, num estábulo?

Os peixes trazidos à beira da praia, os caminhos de chão batido orlados pelo coqueiral, o mar, ah, o mar! Este principalmente invadia a sua vida desde a primeira vez que, vinda do interior, fitou-o. Se não acreditasse em Deus até ali, teria passado a acreditar. Ali era onde Ele lhe falava mais forte

Fim de tarde, olhando o voo das gaivotas e outros pássaros marinhos, pensava no Espírito Santo. Tinha dificuldade em imaginar o Espírito Santo porque não era somente ave, conforme explicara o padre: podia apresentar-se como fogo ou soprar luz nas mentes. Será sua luz que volteja, à noite, em volta da lua, o seu hálito que empurra as nuvens, a sua voz que dá harmonia ao som das ondas? E ela se mantinha em adoração, sentada na areia da praia, encantada com a cor das coisas que via, com os sons do oceano e das vozes quando em vez, com o cheiro da maresia que a fazia estremecer de prazer, com o gosto salgado que lhe entranhava a pele já acostumada ao sol e aos ventos de agosto em Arembepe.

Na instrução para a Eucaristia de Rômulo, não conseguia compreender os dogmas nem tentava. O padre discorria, as crianças respondiam e ela acabava por adormecer. Acordava, bruscamente, quando ouvia tocar o sino das seis da tarde, hora em que acabava o curso. Foi assim, à custa de ouvir, que aprendeu alguma coisa básica do Catolicismo, pois, na sua infância, a educação religiosa se limitava às práticas litúrgicas habituais. Seus pais eram católicos, sim, mas de Batismo apenas: também batizaram todos os filhos, como se faz no Brasil de modo geral.

A religiosidade popular, em seu núcleo, é um acervo de valores que responde com sabedoria cristã às grandes interrogações da existência.A sabedoria popular católica tem a capacidade de uma síntese vital; assim, conleva criadoramente o divino e o humano; Cristo e Maria, espírito e corpo; comunhão e instituição; pessoa e comunidade; fé e pátria, inteligência e emoção. Essa sabedoria é um humanismo cristão que afirma a dignidade de toda pessoa como filho de Deus, estabelece uma fraternidade fundamental, ensina a encontrar a natureza e a compreender o trabalho e proporciona as razões para a alegria e o bom humor, mesmo em meio de uma vida muito dura. Prazeres tinha absorvido essa religiosidade de sua família e de sua cidade natal.

A Primeira Comunhão do afilhado ocupou-a intensamente. "não se fazem omeletes, sem quebrar os ovos", pensava. E Prazeres era doutora em ovos e omeletes. Preocupou-se com os sapatos, o chapéu, o livro, as luvas - e com que emoção ajudou o menino a se vestir!

Chegou, enfim, o grande momento. Quando foi tomar o seu lugar, o coração palpitava-lhe "nas fontes", como ouvia dizer, ou seja, em suas têmporas, o sangue corria forte. Contemplava aquela nuvem branca das crianças indo e voltando durante a liturgia. E ela reconhecia, de longe, o seu querido menino, os olhos baixos, contrito. O Ofertório a fez chorar incontidamente. Era Rômulo quem levava a âmbula contendo as hóstias, cobertas com o linho branquíssimo do corporal! E as outras crianças, que lindo, o pão, a água e o vinho nas galhetas, todas as oferendas para as crianças carentes, e aquela criança lourinha e baixinha carregando o Livro, a Bíblia Sagrada!

As cabeças curvaram-se. Fez-se silêncio. Era a hora da Comunhão. O sacristão tocou a campainha. Prazeres ouviu, ali, o mesmo som dos copinhos da venda de Seu Totônio, que coisa mais bonita. Seu rosto estava vermelho da emoção, seus olhos inchados de lágrimas.

Dona Alba cutucou-a, não é enterro não, Maria dos Prazeres, que coisa! Dá até má sorte, essa choradeira! Prazeres balançou a cabeça, concordando e recompunha-se com dificuldade, mas tentava com empenho segurar as lágrimas e os soluços.

Ao som do órgão, o grupo coral e a multidão entoaram o "Agnus Dei". Começou então o desfile dos rapazes, e, depois deles, as meninas levantaram-se e foram juntar-se aos rapazes. Passo a passo, de mãos juntas, caminharam para o altar, completamente iluminado, ajoelharam-se no primeiro degrau, sucessivamente iam recebendo a hóstia e, pela mesma ordem, voltaram aos genuflexórios. Quando chegou a vez de seu menino, Prazeres inclinou-se para vê-lo. E com a imaginação que dão as verdadeiras ternuras pensava que era, ela própria, aquela criança: a figura do menino tornava-se sua, e a menina a seu lado, com o delicado vestido branco, vestia-o ela também, e igualmente o seu coração era o que lhe batia agora no peito. No momento em que o menino abriu a boca, cerrando as pálpebras, Prazeres sentiu-se desfalecer.

Quando foi ela receber a hóstia, tomou seu lugar na fila, toda orgulhosa de estar ali, do orgulho dos simples, que, antes de ser orgulho, é alegria pura e inteira.

O tempo passava e o afilhado embelezava a olhos vistos. Divertia-a, contando-lhe histórias que ia aprendendo no grupo escolar que frequentava. Ela o ouvia embevecida, amando-o sempre mais e devotadamente.

Mas chegou o momento de decidir seu futuro. Dona Alba achou por bem dirigi-lo à carreira militar, ao Exército, pois teria sustento assegurado e formaria seu caráter. E assim foi feito. O enxoval de Rômulo foi preparado com dedicação por Prazeres, de suas próprias economias, e em breve ele embarcaria para Fortaleza. Após alguns anos, para o Estado do Rio, Academia Militar de Agulhas Negras.

Ela se preocupava, o menino iria lidar com armas! E se houvesse um acidente, se a arma disparasse contra ele, ou se, nos treinos, um colega o atingisse sem querer? Escutando o vento, que bramia e levantava as telhas, via-o atingido por uma tempestade, na parte mais alta de uma torre de vigia, todo o corpo para frente, sob uma toalha de chuva; ou então - recordação da geografia em estampas - era comido pelos selvagens, engolido por uma baleia, morrendo numa praia deserta, vencido em luta corporal por um gigantesco jiu-jitsu. E nunca falava das suas inquietações. Mas, um dia, quando Dona Alba reclamava da falta de notícias de Paulo e Virgínia, ela suspirou com doçura:

- E eu, minha senhora, que há seis meses não as tenho.
- Mas de quem?
A criada replicou docemente:
-... do meu afilhado!
- Ah! o teu afilhado! E erguendo os ombros Dona Alba retomou o seu passeio.

Prazeres, se bem que mansa, ficou indignada contra a senhora; depois esqueceu. Achava muito natural que se perdesse a cabeça tratando-se de preocupações com filhos. As duas crianças tinham uma importância igual no seu coração, também estava preocupada, e por que Dona Alba, depois de tantos anos de convivência, fazia-se de esquecida de Rômulo? Seria algum tipo de pirraça?

Então uma fraqueza a dominou: as tristezas da solidão, a dispersão de sua família, a decepção com o único homem de sua vida, as suas roupas modestas, as suas mãos maltratadas pelo trabalho de toda uma vida, as varizes de suas pernas - antes tão bonitinhas, a falta de um cantinho no mundo que fosse só seu. Essas coisas, como maré refluindo, voltavam, e, subindo-lhe à garganta, abafavam-na.

A partir dessa época, a moça começou a apresentar problemas com a pressão arterial. Tinha picos de pressão. Ficava arroxeada, vomitava, tremia muito, dores fortíssimas de cabeça. Era, então, levada pela patroa ao Posto Médico às pressas. Começou a tomar medicação permanente para controlar o problema.



V

Então, Prazeres ganhou um presente inesperado: veio-lhe pelo correio uma encomenda. Uma encomenda! Para ela! Do correio de São Paulo!
Dona Alba olhou curiosa:
- Um namorado oculto, hein, Prazeres?
A moça ficou sem jeito:
- Que namorado, Dona Alba, na minha idade e troncha como estou ultimamente, com essa ciática?

Dona Alba não sabia da ciática de Prazeres.
O pacote foi colocado em cima da mesa da cozinha, onde se encontravam, num cantinho. Prazeres foi abrindo o pacote, respiração presa, lentamente, pausadamente, parando de vez em quando para dizer uma ou outra coisa à cozinheira - que olhava, curiosa e com uma ponta de inveja - e a Dona Alba, que a apressava, vamos, vamos com isso, Prazeres, vamos ver se a coisa é bonita mesmo!
E acrescentava, piscando o olho para a cozinheira:

- Vai ver que é uma joia!

Prazeres ria sem malícia, mas percebeu a ironia da patroa - ela não era nenhuma bronca, afinal - mas ignorou, para não estragar a alegria que acariciava seu coração.

Era uma linda ave, corpo de branco níveo, asas e rabo azul celeste, com um tom de verde bem claro acima e abaixo das asas. Parecia com um papagaio, pelo bico, mas só pelo bico, pois o resto era como uma visão do paraíso. A bela ave batia as asas com aflição dentro da gaiola dourada.

Prazeres ficou vexada:

- Meu Deus, coitadinha, assim presa e sozinha!

Uma aflição a dominava, uma grande e incomensurável aflição: nada semelhante lhe ocorrera antes ao coração singelo.

Em frente da janela da cozinha, aberta para o jardim, a moça olhou e viu o lugar ideal para deixar a ave, um galho do sapotizeiro, bem grosso e retorcido, que, acima, formava um poleiro natural, bem agasalhado. Prazeres correu para lá, com a gaiola. Pressurosamente cuidou daquele tesouro de plumas. Mudou a água, limpou o recipiente dos grãos, deu um gole de água - como vira seu pai fazer durante toda a sua infância - e prendeu-o dentro da boca, soprando-o, a seguir, para banhar a ave peregrina contida naquela prisão.

Era da parte de Teodoro, a remessa. Ela ficou ali olhando o belo animal, transida, atordoada. Não lhe agradava o ver aves aprisionadas.

Dona Alba e a cozinheira desataram em exclamações:

- Que pássaro maravilhoso, exclamava Dona Alba, nunca vi um assim, antes, parece uma pintura!

- É coisa fina, afirmava a cozinheira. Eu nunca vi um assim.

E aproximaram-se, observando, enquanto o pássaro, primeiro muito assustado, acalmou-se e ficou quietinho, as pálpebras descidas, cansado.

- Olhe, tem um envelope aqui, Prazeres, e Dona Alba foi pegando o envelope. É da loja onde foi comprado, acho eu. Posso abrir?

Prazeres olhou-a, os olhos esgazeados, não conseguia falar. Dona Alba abriu o envelope: começou a ler um impresso que desdobrara, em excelente qualidade de papel couchê.

Família: Psittacidae
Espécie: Cyanopsitta spixii
Ameaçada de extinção
Comprimento: 57 cm. Encontrada exclusivamente no Brasil. Originalmente a espécie ocorria no extremo norte da Bahia, ao sul do Rio São Francisco, na região de Juazeiro. Atualmente, porém, resta um único exemplar conhecido na natureza (um macho) e cerca de 20 em cativeiro. Desde o início da década de 90 há um projeto para a localização de outros indivíduos e a recuperação da espécie pela reintrodução na natureza daqueles atualmente em cativeiro. Entretanto, a tentativa de acasalamento do macho em liberdade com uma fêmea nascida em cativeiro, feita recentemente, não obteve sucesso. Também não foram localizados novos indivíduos. Assim, a espécie está praticamente extinta na natureza, situação provocada pelo comércio ilegal de aves raras, sobretudo para o exterior. O hábitat natural da ararinha-azul é a caatinga seca e as florestas ciliares abertas de pequenos afluentes temporários do Rio São Francisco. Alimenta-se de frutos e sementes, gostando de empoleirar-se sobre as pontas dos galhos secos. Realiza migrações locais, quando frequenta também buritizais. A espécie fazia ninhos em grandes buracos nos troncos de árvores, principalmente em caraibeiras.


A emoção de Prazeres foi tão intensa, que cambaleou. Parecia estar com uma de suas crises de pico de pressão, o rosto arroxeado, tremendo.

Ficaram, a cozinheira e Dona Alba, preocupadas. Cuidaram de Prazeres, e ela foi voltando. Sorriu, reconhecida e, preocupada com o pássaro na gaiola, quis levantar-se. As mulheres a impediram, ela precisava descansar mais um pouco.

- Mas o bichinho...

- Cuidaremos dele, ele está bem, não está vendo? Quem não está bem é você.

Prazeres ficou deitada, quieta, os olhos semicerrados, exausta. Dormiu. Quando acordou, a patroa lhe disse que tinha mais uma coisinha na encomenda. O que seria, pensou Prazeres apreensiva com o excesso de alegria. É um poema de um autor francês, mas está na língua francesa.

O que significava aquilo, pensava Prazeres, e seu coraçãozinho se apertava de ansiedade. Seria algum código secreto, não iria fazê-la sofrer? Afinal, gato escaldado tem medo de água fria.

O poema era este:

APPARITION

Victor Hugo

Je vis un ange blanc qui passait sur ma tête;
Son vol éblouissant apaisait la tempête,
Et faisait taire au loin la mer pleine de bruit.
- Qu'est-ce que tu viens faire, ange, dans cette nuit?
Lui dis-je. - Il répondit: - Je viens prendre ton âme -
Et j'eus peur, car je vis que c'était une femme;
Et je lui dis, tremblant et lui tendant les bras:
- Que me restera-t-il? car tu t'envoleras. -
Il ne répondit pas; le ciel que l'ombre assiège
S'éteignait... - Si tu prends mon âme, m'écriai-je,
l'emporteras-tu? montre-moi dans quel lieu -
Il se taisait toujours. - O passant du ciel bleu,
Es-tu la mort? lui dis-je, ou bien ès-tu la vie? -
Et la nuit augmentait sur mon âme ravie,
Et l'ange devint noir, et dit: - Je suis l'amour.
Mais son front sombre était plus charmant que le jour,
Et je voyais, dans l'ombre où brillaient ses prunelles,
Les astres à travers les plumes de ses ailes.


Esse poema estava num outro envelope, com a assinatura trêmula de Teodoro.

Prazeres não lia o francês e pediu a Dona Alba para dizer o que era que estava ali escrito, sabia, apenas, que era um poema e era de Victor Hugo, do qual já tinha ouvido falar. Pensou no saudoso Dr. Gustavo Bovary, em como seria bom tê-lo ali naquele momento. Dona Alba foi fazendo uma tradução meio estropiada, inventando as palavras que não sabia ao certo:

Eu vi um anjo branco a voar sobre minha cabeça.
Seu voo dardejante acalmava a tempestade
e fazia calar o fragor do mar distante.
- O que vens fazer, anjo, a esta hora noite? Perguntei-lhe.
Ele respondeu:
- Eu vim buscar tua alma.
Tive medo. O anjo era mulher,
e eu lhe disse, tremendo e lhe estendendo os braços:
- O que será de mim depois? pois já irás te retirar.
Ele não respondeu. O céu, que a sombra sitiava, se extinguiu...
- Se vais levar minha alma, eu bradei, tu a levarás, é certo.
Mas me mostre-me para onde.
Ele se mantinha mudo.
- Ó peregrino do céu azul, tu és a morte?
perguntei-lhe de novo.- Ou és a vida?
E a noite crescia em minha alma deslumbrada.
E o anjo obscureceu, e disse:
- Eu sou o amor.
Seu semblante de sombra era mais encantador do que o sol,
e eu vi, na escuridão onde brilhavam suas pupilas,
os astros despontando das plumas de suas asas.


Prazeres nunca ouvira nada tão belo. Era como uma oração. Batizou a ave de Suspiro, pois sua cabecinha terminava num topetinho parecido mesmo como o doce conhecido por esse nome. Afeiçoou-se ao bichinho por demais, e ele a ela. Logo ao acordar, ia passear na praia com Suspiro no ombro, e ele bicava a ponta de sua orelha e encostava a cabecinha no seu rosto, pressionando-a. Uma belezinha.

Não lhe ocorria que Teodoro a tinha enviado. Para Prazeres, Teodoro era aquele que dançara com ela na Casa Paroquial, o que lhe dissera poemas e contara histórias da Grécia. O outro não existia. Assim, também, Suspiro era dela e nada tinha a ver com o homem do engodo, da gigolotagem e do estacionamento do supermercado.

Esse tipo de memória seletiva, como era a de Prazeres, parece ser um dom de Deus para alguns privilegiados, os puros de espírito de que a Bíblia fala. Não sei das injunções bioquímicas ou psicológicas do fato, nem me interessa saber para falar com franqueza. Prefiro pensar que é assim como eu dizia, dom de Deus para os que têm merecimento.

O idílio de Prazeres com Suspiro foi interrompido bruscamente. A ave, inexplicavelmente, desapareceu de seu cantinho no sapotizeiro. É improvável que tenha fugido. Deve ter sido roubada. Nenhuma pessoa viu ou ouviu nada a respeito.

A moça chorou e chorou mansamente a perda do seu querido animalzinho. Mas com a perspectiva da chegada de Rômulo reagiu: "é preciso fazer das fraquezas, forças" , como dizia sua sábia avó, que sublinhava: "é preciso ter têmpera de aço".

Assim ela procedeu, doce na dor, suave no sofrimento, com sua bonomia natural a apaziguar suas próprias dores.



VI

As notícias de Rômulo demoraram. Prazeres resolvera viajar para saber o que estava acontecendo. Mas estava adoentada e mal disposta para tomar qualquer iniciativa. Lembrou-se de Doutor Gustavo Bovary: como seria bom poder contar com ele em momento tão difícil! Já se passavam anos, desde a última vez que o vira na mansão do Horto Florestal, na Capital. Comentou com Dona Alba, que retrucou:

- Mas você tem mesmo um anjo da guarda forte. Doutor Gustavo virá passar uns poucos dias aqui, para descansar.

Prazeres se encheu de felicidade. Felicidade era um nome para ela naquele momento, sem dúvida alguma.

Veio o Doutor. O encontro foi emocionante para ambos, Prazeres chorava de alegria. Ele a abraçou:

- Vamos cuidar de tudo, filha, tudo na vida tem um jeito.

Tomaram-se então as providências para localizar Rômulo.

Prazeres foi com o Doutor dar uma voltinha na praia, para relaxar e conversarem. No mar, prateado pela lua, havia um barco sozinho e pequeno trespassando as águas iluminadas.

Ele conversava suavemente com ela. Dizia-lhe:

- Minha filha, a coragem diante das perdas você demonstrou ter, mas essa é a coragem de um momento. Muitas vezes ela é aplaudida pelas pessoas e até mitificada. Mas o que é mais raro e mais necessário é a coragem de cada dia - dia após dia - sem testemunhos, sem elogios, enfrentando as adversidades da vida com resignação e paciência. Há um autor francês, no seu livro Paul et Virginie, que ela apoiar-se não sobre a opinião de outrem ou no impulso de nossas paixões, mas na vontade de Deus. A paciência, diz ele, é a coragem da virtude: "La patience est le courage de la vertu".É o Bernardin de Saint-Pierre - que, aliás, inspirou Doutor Crescêncio e Dona Alba a escolherem o nome de seus filhos, com meu apoio e louvor.

Continuaram passeio até a Igreja da Matriz, onde Rômulo se batizara há tantos anos atrás, pensou a moça. Entraram. Doutor Gustavo era agnóstico, mas, livre pensador que era, não tinha preconceitos: ajoelhou-se solidário ao lado de sua protegida. Ela orou com fervor e recomendava a Jesus aquele que mais amava e rezou durante muito tempo, de pé, em seguida, o rosto banhado em lágrimas, os olhos erguidos para o céu. A cidade dormia, os policiais fazia a ronda, e a água caía, continuamente, pelos buracos da comporta, com um ruído de torrente. Soaram as horas. Já era tarde.

Foi quinze dias depois que chegou uma carta de Doutor Gustavo, dirigida a Dona Alba. A senhora, que bordava, pousou o bastidor perto, abriu a carta, leu-a e, em voz baixa, com profundo olhar. Prazeres ajeitava-lhe o penteado.

- É uma desgraça - o que te anunciam. O seu sobrinho...

Morreu. Não era preciso dizer mais. Prazeres tombou sobre uma cadeira, apoiando a cabeça no espaldar e fechou as pálpebras que se avermelharam imediatamente. Depois, cabeça baixa, mãos pendentes, olhar fixo, repetia a intervalos:

- Pobre menino! Pobre menino!

Dona Alba tremia um pouco. Fez-se silêncio.

O verdureiro entrou com as compras. Chegaram os cocos secos encomendados para fazer doces para a chegada de Paulo e Virgínia, em férias de verão.

Prazeres se levantou, pegou o saco de aniagem pesado, mesmo sob o protesto da patroa. Foi ao quintal. Arregaçou as mangas, pegou no batedor e as pancadas fortes que dava ouviam-se nos outros jardins, ao lado. As ruas estavam vazias, o vento agitava as palmeiras; ao fundo, as mais altas inclinavam-se como cabeleiras de cadáveres, flutuando na água.

Reprimiu a sua dor até à noite; foi muito corajosa, mas no quarto abandonou-se à sua dor, deitada de barriga para baixo, a cara no travesseiro e os dois punhos apertando as têmporas.

Muito mais tarde, conheceu as circunstâncias do seu fim.

Tinha contraído hepatite B, quando em serviço no interior da Bahia, em Itapetinga. Levaram-nos para o hospital militar mais próximo para tratamento. Havia vários casos dessa doença, que é muito contagiosa - através dos humores corporais. Tudo indicava que Rômulo tinha contraído a doença por contato sexual. A madrinha não soube dos detalhes: dona Alba resolveu poupá-la. Ela andava sentido dores fortes na cabeça, a pressão arterial instável.

Virgínia e Paulo na casa, Prazeres se distraía mais de sua profunda dor, cuidava dos meninos - agora adultos e diplomados.

As forças de Prazeres reapareceram. Era necessário cuidar de seus lindos meninos, alegrá-los, fazer-lhes as vontades.

O verão desapareceu invadido por um outono feroz, como o é na Bahia.

Virgínia teve uma gripe forte e ficou acamada. Começou a ter dispneias frequentes, num processo alérgico incontrolável. Veio o médico, examinou-a e receitou-lhe um antialérgico e vitaminas. Advertiu quanto à remota possibilidade de um edema de glote, que observassem suas reações a cada substância ingerida.

Prazeres se desvelava. A mocinha vomitava tudo o que comia. A criada ministrou o antiemético prescrito pelo médico, e, conforme instruções dele, ficava lhe dando água de coco ou outro líquido de colherinha de café, de 10 em 10 minutos. Foi buscar um mingauzinho de arararuta para alimentá-la. Quando voltou, Virgínia estava com a cabeça arreada para fora da cama, o rosto azul arroxeado, boca aberta, olhos dilatados, entre paredes silenciosas e cortinas imóveis.

A menina morrera ao romper de um dia de sol abrasador.

Dona Alba, após desespero sem limites, foi sedada pelo médico, dormia.

Prazeres lavou a menina morta, vestiu-a, perfumou-a, deitou-a no caixão sem a ajuda de ninguém, pois não a queria dormia, colocou-lhe uma coroa de flores e prendeu-lhe os cabelos. Estes, loiríssimos e extraordinariamente compridos para a idade. Prazeres cortou uma grossa madeixa, tendo escondido metade no seu peito, disposta a jamais se separar dela.

Depois do enterro, Paulo caiu em profunda depressão e Dona Alba envelheceu rapidamente. A princípio revoltou-se contra Deus, achando injusto ter-lhe levado sua filha, que nunca tinha feito mal a ninguém e cuja consciência era tão pura! Acusava-se, queria tê-la outra vez para si, gritava angustiosamente no meio dos sonhos. Durante vários meses permaneceu no quarto, inerte.

Prazeres animava-a, advertindo-a com doçura; era preciso poupar-se por causa do seu filho e por causa também da outra, em memória dela.

- Dela? - replicava a dona Alba, como que despertando de um sonho.

- Ah! sim! sim! Ela continua perto de nós, só seu corpo foi embora.

A depressão de Paulo tomava proporções alarmantes. Os olhos vítreos, o corpo atlético lançado no divã do quarto olhando a televisão sem ver nada, deixou de comer e quase não dormia. Em poucas semanas estava reduzido à metade do seu peso.

Um mês depois da morte de Virgínia, a casa parecia um sepulcro. Prazeres dedicava-se de corpo e alma aos cuidados de Paulo e de Dona Alba. Não cuidava mais de si mesma, muito menos de sua saúde, que estava fragilizada devido aos surtos de pressão alta, súbitos e intensos. Mas não dizia nada a ninguém, para não acrescentar mais preocupações à situação precária daquela família dizimada pela dor.

Era um domingo e o dia estava belo como soem ser os dias de verão na orla marítima do estado da Bahia.

Arembepe, particularmente, continuava a ser um paraíso, a despeito dos farofeiros e visitantes mal educados do Pólo Petroquímico, barulhentos e beberrões em sua maioria, o som dos carros numa altura inacreditável já quando entravam na cidade.

Prazeres foi levar o café da manhã de Paulo no quarto, e já se preparava para cantar para ele com sua voz bonita, pois era uma das pouquíssimas coisas que faziam Paulo sorrir. Entrou e o viu dormindo profundamente.

Paulo tinha se matado com uma caixa quase inteira de Dormonid, cerca de 17 comprimidos, vinte e cinco comprimidos de Lexotan 6mg, 13 de Tegretol 75mg e 18 de Anafranil 75 SR.

Olhos abertos, braços enrodilhados no próprio corpo, saía de sua boca uma espuma esverdeada. A janela estava aberta e um vento de fim de tarde agitava seus cabelos louros, revelando a juventude de sua figura, como se ainda houvesse vida no seu corpo.

Horror. Prazeres, dessa vez, foi para a cama. Não se conformava em pensar em seu menino como alma penada - pois assim aprendeu que acontecia com os suicidas. Dona Alba não se levantou mais. Poucos dias depois morria, de derrame cerebral.

A família de Dona Alba, do lado materno, não tardou a aparecer reinvindicando a casa para si. Disseram a Prazeres que ele podia continuar ali.

Prazeres decidiu sair do lugar se tantas recordações - as melhores e as piores. Para onde ir?

Juntou suas economias de todos os anos de trabalho com poucas despesas desde que seu afilhado morrera. Há muito não comprava mais nada para si. Comprou uma casinha de pescador em Arembepe mesmo, com um cômodo e uma espécie de varandinha, de madeira feita em tapumes, nos fundos. Ali estava o mar.

Um dia, sentiu uma forte pancada no coração, sozinha, de madrugada. O céu já começava a clarear, pois era verão. Depois a dor passou e ela se aproximou da varandinha, puxou um banquinho e sentou olhando o mar, o sol nascendo.

Maria dos Prazeres ouvia o som dos copinhos de vidro de sua infância, do armazém de Seu Totônio. Sorria, embevecida, pálpebras cerradas em êxtase místico. Aquele som e o de uma voz - não sabe se masculina ou feminina - dizendo o poema Apparition, de Victor Hugo, em francês, e parecia-lhe entender tudo e via os astros despontando das plumas das asas do anjo, enquanto, bem suave, sua caixinha de música com os cisnes no laguinho, tocava o Tema de Lara. Os movimentos do coração enfraqueciam, cada vez mais suaves, como uma fonte se esgota, como um eco vai se extinguindo. Enquanto seu coração puro ia ralentando, viu-se dançando com Teodoro na Casa Paroquial, vestida de noiva, Paulo, Virgínia e Rômulo dançando em volta numa ciranda, enquanto cantavam Se esta rua fosse minha. As figuras do álbum de artes marciais desfilava à sua frente, e ela contemplava uma sensacional demonstração de Jiu-jitsu e era ela, era ela quem levava o monstruoso competidor para o tatame, todo acolchoado das penas e plumas do seu pássaro.

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