A Garganta da Serpente
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Emma Louise

(Maria da Conceição Paranhos)

O acontecer dos fatos atordoa. Seja porque deslumbram, seja porque abrem uma fina fissura no bloco das certezas até então acumuladas.

Todos temos essa tendência, a de construir um sistema de certezas, para tornar a vida mais suave de enfrentar, já que é mesmo estarrecedor o simples acordar a cada dia e defrontar-se com um tempo que não se sabe como irá correr, e o que irá ocorrer no interregno entre olhos abrindo-se, e olhos que tentam apaziguar-se, à noite. Tempus edax rerum, Ovídio tem razão, o tempo é devorador das coisas.

O que nos irá acontecer, em parte, depende das ações perpetradas no decorrer do estirão das horas, sim. E essa ainda é a parte mais fácil da vida, já que a nossa decisão sobre as ações que iremos ou não realizar é que custa um esforço ingente, continuado, posicionamentos e reposicionamentos constantes, imenso dispêndio de energia, acúmulo redundante de atenção. Se iremos sobreviver a ele, não podemos prever, daí a necessidade do sistema a que me refiro, um sistema de sobrevivência, digamos assim, para que tudo fique esclarecido e claro até o momento em que tudo escureça radical e definitivamente, um dia.

Mas aí se situa o dilema central: o abater-se de eventos aleatórios ou não sobre a massa de tempo do cotidiano. Eu disse massa de tempo, mas disse uma tolice. Não há nenhuma massa, tempo não é estofo de nada, tempo é sucessão fluida e imponderável. Mas disse eu massa, enfim, por alguma razão, e esta se situará, provavelmente, na intersecção do tempo com o espaço concreto de uma vida: uma casa, um automóvel, uma rua, uma praça, relações pessoais, sim, uma profissão, um labor qualquer, inclusive este de agora, o de relatar, num espaço interseccionando o tal, o tempo, dele subtraído.

A subtração é uma operação delicada, delicadíssima, sujeita a interpretações as mais diversas. Das operações fundamentais, foi sempre a mais instigante e a mais complexa. Não há um resultado, há uma diferença, entre o minuendo e o subtraendo. E, ao resolver equações? É importante observar que há a regra de "passar para o outro lado". Aí está embutido um conceito matemático chamado operação inversa. O matemático alemão Gottfried Wilhelm von Leibniz, em 1672, aperfeiçoou a Máquina de Pascal, construindo a calculadora universal, que realizava soma, subtração, multiplicação, divisão e ainda calculava raiz quadrada. Contemplemos o aparato:

Observando-o, poderemos constatar que os processos de subtração serão, sempre, os mais tortuosos e complexos. Vejam só a dificuldade de iniciar o procedimento, já que nos encontramos diante de um universo fechado, constituído a priori. Mesmo somar é complicado, ou multiplicar - o que não faz lá essas diferenças; e o dividir fica atenuado pelo princípio de multiplicação nele inserido, por um lado, e levemente complicado pelo momento implícito da subtração.

Quando Julião esteve frente a frente com a vida, não sabia ainda desses detalhes. Sempre viveu de modo inconsequente, esbanjador, perdulário. Cada dia era todos os dias, não havia nenhuma noção de tempo ou de uso do tempo, tudo se delongava, estirava-se ao sabor de seus desejos imediatos, e mesmo de seus deveres - que cumpria. Mas a ausência de reflexão fazia, de tudo, um desperdício.

Sua origem se situa em família abastada, aristocrática pelo lado materno - de quem herdou uma persistente finura de gestos e atitudes sociais, um modo de vida cultivando o que denominava "estética do cotidiano"; do lado paterno herdou seus princípios morais, sólidos e inamovíveis, uma higidez de hábitos e de genética: mens sana in corpore sanu norteavam a vida de seu pai, o Comendador Antonio Joachim Rodrigues de Leão. Provinha de Trás-os-Montes, a sua família paterna, os Rodrigues de Leão; e de Braga, os da linha paterna matrilinear, os Sá de Miranda. Todos, honrados; todos, íntegros; todos hígidos. Assim ele tentou educar os filhos - que foram numerosos, incluindo um casal de gêmeos idênticos.

Já do lado materno havia uns dados genéticos perturbadores, muito perturbadores, o humor e a emoção instáveis e frágeis, casos frequentes de alcoolismo, mas um imenso esforço para superar esses entraves deterministas por parte de quase todos ou todos da família, cada qual a seu modo.

Além do mais provinham de uma longa linhagem de aristocratas, com origem em Portugal, e mais especificamente, no Porto, do lado materno patrilinear, os Portonobre. Do lado materno matrilinear, vinham de burgueses abastados e dados às letras e artes, do norte da Alemanha, os Castorp, que residiram por algum tempo em Angra dos Reis, mas logo se mudaram para a Bahia. Tanto que Julião não abdicou de sua origem alemã, que muito prezava: um dos Castorp foi alpinista famoso, e ele amava essa modalidade de esporte. Por isso, assinava-se Julião Castorp Rodrigues de Leão, embora fosse outro o seu nome de registro civil. Rapazinho de 17 anos, Julião perdeu aquele imenso pai.

O seu tio, Carlos, assumiu a função de tutor dos sobrinhos menores e, particularmente, apegou-se a Julião, por afinidade de temperamento. Dividiam a mesma casa, um belo casarão à Rua da Gamboa de Cima, com vista panorâmica para a Baía de Todos os Santos. Não se animavam a sair desse paraíso, apesar da decadência daquele pedaço encantador da Bahia por volta dos anos oitenta.

O tio Carlos era um homem de finanças sólidas sem ser rico, era bom e justo. Culto e viajado, não chegara a se formar, por não nutrir nenhuma simpatia por quaisquer das profissões estabelecidas. Comerciante de tecidos, mantinha sua loja há anos, na Rua Chile, o Magazine Dois Mundos. Viajava, efetivamente, por ambos os mundos, Ocidente e Oriente. Daí o seu estoque de tecidos e outros artigos e acessórios que mantinha, selecionados, exóticos e de bom gosto.

Esses dados são necessários para que se entendam os eventos que serão relatados adiante, envolvendo Julião, a quem conheço desde menino, e pelo qual tenho uma amizade que posso denominar paternal. E enquanto, por um lado, apiedo-me do amigo, encontro-me quase arrependido de o ter deixado ir embora sem rumo certo no mare magnum da vida, pois apenas eu poderia ter evitado isto, suspendendo este relato. Por outro lado reconstruo mentalmente o episódio do salão de chá, que não presenciei, mas me foi narrado por Julião e pelo tio Carlos, em momentos diferentes da vida deles, respectivamente, e da minha. Fora protagonista do evento a filha da Senhora de Sant'Anna, Emma Louise, que será caracterizada adiante. Prefiro usar o tempo verbal no presente, para deixar os fatos correndo à sua própria mercê.

Emma Louise é uma dessas jovens mulheres crescidas no espírito dos valores da classe média alta brasileira dos anos 60 do século passado. É católica, sem ser beata; elegante, sem ser perua; gastadeira, sem ser perdulária; esperta para alguns setores da vida, sem ser inteligente. Vai para clubes e festas, habitualmente e sem mudanças, há anos - desde a infância e a persistente adolescência. Viaja para o sudeste e o sul do Brasil, para a Argentina - usualmente Bariloche e Buenos Aires, Europa Ocidental - principalmente a França e Portugal, geralmente em pacotes turísticos partilhados com familiares e amigos.

E é bonita. Bonitíssima, de uma beleza comovente, os grandes olhos castanho-dourados, ditos por alguns "de ressaca", dardejam todo o tempo, derramando um cetim de afetos que pulverizam qualquer homem, sempre pulverizaram. Mas Emma Louise não percebe nada do que se passa. O tempo, para ela, é sempre igual. Não percebe a diferença entre o voo de um pássaro e uma pipa dançando no ar, nem mesmo tem opiniões. Move-se de modo grácil e leve, com um jeito de parar de quando em vez, olhar em volta, sorrir e até rir. Tudo a encanta, e a todos encanta. Conversa com as pessoas tão longa e frequentemente quanto deseja, com quem acha agradável, geralmente seres masculinos, com os quais mantém uma relação verdadeiramente mirífica.

Todos a adoram, todos por ela se apaixonam, todos se aproximam de Emma Louise, sedentos daquela qualidade de doçura que ela possui sem fronteiras, daquela docilidade espantosa - um leve toque de mão, e Emma Louise abre muito seus olhos dourados e ofega docemente, proferindo alguns sons musicais monocórdios, miando, latindo, grasnando, uivando, às vezes, berrando, até, crocitando, muitas vezes, para depois retornar à modulação mais frequente que é o chilrear, este, percorrendo desde os pipilos mais suaves até os gorjeios melodiosos, atingindo, por vezes, um pungente gemido distendido por segundos e até vastos minutos, enquanto os pretendentes se encolhem, constrangidos, assustados com aquela exorbitância, perplexos com a diferença que há entre Emma Louise e as demais mulheres.

O problema é que essa moça é tão suave, tão bela, tão encantadora, que não é fácil desistir dela. Mas, o que fazer com ela? Se fosse pelo apelo imediato do instinto, possuí-la, mesmo porque, Emma Louise jamais se negaria, ela nasceu para ser pura e simplesmente uma criatura fêmea. Nela, entretanto, não há maldade alguma, malícia menos, nenhum impulso mesquinho, nenhum truque de sedução.

Emma Louise é a própria sedução. Não há senão sedução em Emma Louise, todo o seu arcabouço corpóreo, toda a sua constituição luminosa, aliados a seus meneios, gracioso jogar de longos cabelos para um lado e para o outro, para trás - com o polegar e o indicador repartindo a mecha central da vigorosa cabeleira de cores esfuziantes e múltiplas, já que, à esquerda, os cabelos são louro-dourados; no centro, vermelho-rubi; à direita, negros como as asas da graúna; lisíssimos nos dois extremos e levemente ondulados ao centro e, à nuca, verdadeiramente encarapinhados, e muito sedosos no entanto. Assim, quando ela usa um coque no alto da cabeça, assemelha-se a uma rainha com um diadema de topázios, rubis e ônixes, e sua nuca ímpar mostra-se protegida pelo tufo macio do cabelo afro, que faz como que um Y no acabamento do cangote frágil. É uma jovem de vinte anos, talvez - fina, fresca, dúctil, nítida como uma vinheta inglesa: a brancura da pele tem alguma coisa de transparência das velhas porcelanas, há no seu perfil uma linha pura, como de uma medalha antiga, e os poetas românticos a teriam chamado - pomba, arminho, neve e ouro. E o sorriso de Emma Louise, então? Lábios muito rubros desdobram-se numa cascata de pérolas de regularidade íntegra, e ela ri também com os olhos - alertas a qualquer fato interveniente, sem dúvida, de riso singularmente seu, pois quando ri, segura o riso sem desmanchá-lo, como se quisesse perceber-se naquele ato escandindo o instante que passa, colocando no engaste dos segundos a joia do seu riso. Ela brilha, sendo pequena e esguia, e, ao chegar em qualquer ambiente, todos param para olhar sua contraditória beleza firmada no faiscante e obscuro mundo da animalidade.

Sim, esta é a verdade - Emma Louise é um bicho, um bichinho. Ela não busca sucesso, ela o obtém pelo simples fato de surgir. Vocês, leitores, devem estar meio desconfiados da veracidade do meu relato, e isso, mais do que compreensível, é necessário. Preciso que vocês desconfiem do que narro o tempo todo, pois eu mesmo não consigo atinar com o sentido do ser que é essa inacreditável Emma Louise.

Ardente, como parece, sorri do ardor, quando observa manifestações amorosas em público. E é nesses momentos que surge em mim a dúvida central em relação ao que posso vir a pensar da personalidade de Emma Louise. O sorriso desses momentos é inteligente, pois irônico. Verdade é que não sei ao certo se o que poderia parecer um estado de demência tem, efetivamente, esse diagnóstico.

Seus familiares nada comentam a respeito, nunca. Não abrem sequer uma mínima brecha para qualquer comentário ou pergunta. O problema para sua mãe é o que ela acredita ser a fragilidade de Emma Louise.

Uma vez, uma senhora muito aristocrática e discreta, amiga da família, num chá de beneficência no qual se encontrava a Senhora de Sant'Anna - este é o nome da mãe de Emma Louise, Carlota Rouault de Rênal Sant'Anna (possivelmente de remota origem francesa, no Brasil nunca se sabe ao certo) perguntou muito discretamente se a menina, tão linda e educada, já estava com casamento à vista.

A Senhora de Sant'Anna voltou-se para olhar a educada senhora com tal destempero de gesto, que o pingente no lobo de sua orelha esquerda, de diamantes límpidos, intrincou-se com o arranjo de flores que se encontrava à sua direita, na ponta da mesa de chá lindamente disposta, e foi algo de pavoroso o que aconteceu.

Como em efeito dominó, caiu o arranjo pelo chão; a toalha da mesa, de tecido de renda vaporoso, foi guinchada por alguns arames de sustentação do arranjo de flores; e significativa parte das louças, baixelas e cristais foi deslizando irreversivelmente para o chão, louças e cristais quebrando-se com grande estrépito e talheres tilintando no piso de granito rosa do grande salão. Um verdadeiro despautério.

Examinando Emma Louise, após o incidente, só se podia ver aquela graciosidade perfeita, que só o é, quando natural ao modo de ser, e que sobretudo, a pessoa que a detém sequer sonha em possuí-la.

Foi quando irrompeu na sala de chá o filho da Senhora Otília, née Portonobre, Julião. Olhou perplexo a cena e descobriu entre xícaras partidas, talheres esparsos, flores espalhadas e senhoras muito perturbadas a figura de Emma Louise. Estremeceu, perdeu o pulso, ficou muito pálido. Estático, olhou.

Julião se conhecia muito bem em matéria de beleza feminina, sabia de seus efeitos e consequências às vezes devastadoras, mas não costumava sucumbir. Juraria que aquela visão singular teria 15 anos, ou menos. E, nessa idade em que os hormônios circulam pelo corpo em incrível atividade, via nessa menina uma placidez cândida e atordoante. Sucumbiu.

Ela não se dava a menor conta da perturbação que provocava, embora percebesse os olhares de enlevo - às vezes assustados e aflitos, às vezes ternos e piedosos, às vezes astutos e imprudentes - dos homens. Deixava-se ver, permitia ser olhada com condescendência apropriada a uma rainha. E assim recebeu o olhar de Julião. Imóvel e com o queixo levemente levantado, a fronte recebendo a luz na cabeleira.

Julião teve um impulso de beijar sua pequena mão. Logo se assustou com essa ideia, mais, teve medo dela.

A mãe da menina percebeu a chegada do homem:

- Oh, veja só que coisa mais sem propósito! Por um simples mover de cabeça, a mesa do chá foi ao chão! - exclamou a perspicaz senhora, simultaneamente avaliando o rapaz, embora de modo velado.

A Senhora de Sant'Anna era profunda conhecedora dos homens. Bela aos cinquenta, não quis casar-se novamente, após sua viuvez há uns poucos anos. Não que pessoalmente tivesse alguma mágoa dos homens. Conhecia, sim, muito bem, suas fraquezas - as chamadas "fraquezas da carne". Fora casada com um homem fiel segundo o figurino da classe média à sua época: trair a esposa significava ter uma amante fixa, pública e notória.

Ser fiel significava não deixar que nenhum respingo das aventuras amorosas, de curta duração e fora do círculo de conhecimento do casal, chegasse à santidade do lar. Seu marido, dos Rocha Sant'Anna da Chapada Diamantina, era um homem de pedra, apesar de seus pecadilhos com mulheres. Mas a Senhora de Sant'Anna era uma águia. Percebia qualquer movimento em falso do marido, sabia mergulhar muito bem naqueles olhos cor de topázio, sedutores e sempre úmidos. E isso era o suficiente para não querer se cansar com essas coisas.

Mulheres maduras, por mais atraentes que possam ser, por mais desejadas, se acedem em manter uma relação conjugal, estarão sempre sujeitas a dissabores provocados pelo modo de ser masculino. Aliás, qualquer mulher está, mas é que as mulheres maduras, se sensatas, evitam-nos, e cortam o mal pela raiz: não permitindo a aproximação excessiva, encantam todos e a todos deixam com um gostinho de quero mais. E esse mais não acontecerá. E, se por acaso ou arroubo, ou mesmo por algum tipo de carência, acontecer, isso poderá gerar graves e incômodos transtornos, principalmente no suceder cotidiano.

É que o homem, quando se trata de convivência, mostra-se, geralmente, um incapaz. Não é que queira desgostar a mulher. Bem pelo contrário, ele não quer. O homem é um eterno apaixonado pela mulher. Sou homem e posso afirmar isso com segurança, não apenas por minha trajetória individual - na qual cultivo o autoconhecimento como fundamento de vida.

Em decorrência dessa postura, passei a entender melhor o outro, os outros: as mulheres, criaturas supernas, e homens, machos, inclusive, além dos gays. É que o ser masculino possui o sentido da visão superaguçado, e esse sentido possui uma conexão imediata com os órgãos genésicos. Daí a natural tendência do homem àquilo que se denomina infidelidade. É determinação genética que, embora contornável, aborrece uma mulher madura Apenas aborrece, e entedia. Ao passo que provoca um tumulto de adrenalina nos organismos de mulheres jovens - o que resulta em sofrimento pungente, ansiedade avassaladora e, até, impulsos homicidas e suicidas.

O ciúme é perigosíssimo em jovens mulheres. Mas o momento e o espaço não são propícios a dissertações - assim dizem os tratados de prosa, embora este relato nada tenha de ficcional, já que é a mais pura realidade, aquilo que se chama de a realidade nua e crua.

Percebeu, pois, a senhora, o atordoamento de Julião. Gostou desse rapaz imediatamente, percebeu que ele entendia Emma Louise em sua desamparada beleza. Julião não entendia o que se passara naquela sala, pouco antes de sua entrada ali, para buscar a mãe.

Seu tio Carlos, se já tivesse chegado, pois viria, estaria vaticinando alguma coisa, pois este era seu hábito: profetizar os dias a seguirem, ao ver algo insólito. Tudo parecia absurdo, aquele espetáculo caótico num chá beneficente causava um efeito devastador.

Parecia ter ocorrido um terremoto, literalmente, literalmente mesmo, porque Julião já havia morado por seis anos na Califórnia - onde fora realizar seu doutorado em Física quântica e chegara a trabalhar em San Francisco, ministrando aulas na Universidade Estadual. Pois bem, lá vivenciara quatro terremotos, um 4,3 um 5, 6, um 6,6 e um 6,9. Cada vez mais intensos! É no epicentro do terremoto que normalmente o grau de intensidade é mais elevado, e seus efeitos vão diminuindo à medida que se afasta dessa área. Não existe correlação direta entre magnitude e intensidade de um sismo. Um terremoto forte pode produzir intensidade baixa ou vice-versa.

Mas que importa agora toda essa minúcia, quem se interessa? O fato, o evento, o acontecido foi o aparente terremoto do salão de chá, provocado pelo exagero (ou o descontrole?) psicomotor da Senhora de Sant'Anna. Mas por que isto, por que? A senhora née Portonobre, do modo mais discreto imaginável, contou o incidente a seu filho, Julião. Este, mais que discreto, constrito, escutava o relato e olhava mesmerizado para Emma Louise.

Emma Louise, naquele momento, estava sentada numa das cadeiras austríacas que compunham o mobiliário da casa de chá. A cadeira estava ao lado da mesa do bufê - toda recoberta de veludo escarlate com galões dourados quais filigranas, e figuras de anjos barrocos distribuídos em cada ponto de saída dos laçarotes de lamê transparente.

Repentinamente, Emma Louise levantou-se da cadeira com uma graciosidade inimaginável, ficou de pé no assento, levantou a perna leve como uma pena e subiu à mesa, procurando meticulosamente o caminho entre os petiscos sem, de modo algum, molestá-los e montou em cima do dorso do arranjo de flores comprido, alto e belo, composto de orquídeas vermelhas e amarelas e encimado por uma espécie de floração conhecida em algumas paragens como "bastão do imperador" ou "cajado do papa". São variedades da alpínia, que os ingleses denominem gingers: O seu aroma está nas folhas quando esfregadas, um aroma inesquecível. Sua pubescência é logo suplantada pelo vigor do seu crescimento, apresentando-se em conchas dispostas em cascatas como flores ou brácteas cor de cereja, macias, às vezes, em forma de cone. São tão fáceis de serem cultivadas! Apenas um pouco de umidade, e ambiência de sol e sombra parcial.

Por que me detenho na descrição dessas plantas? Porque elas são em tudo parecidas com Emma Louise. Ela não tem nada de rosa, nada de orquídea, nada de camélia, nada de angélica, nada de miosótis ou margarida, nada de violeta - flores comumente comparadas às mulheres ou as mulheres a elas.

Depois de galgar aquele amontoado de essências em forma de dragão, Emma Louise ficou quietinha, olhando as unhas nacaradas. Parecia o elemento conclusivo do suntuoso arranjo de flores, e em nada as molestou. Houve até quem começasse a bater palmas, pensando tratar-se de uma apresentação teatral.

Nisto chegou o tio Carlos: combinara encontrar-se com o sobrinho e a cunhada ali, para daí seguirem para a soirée habitual, às quartas-feiras, na mansão do Corregedor, à Ladeira da Barra, a Villa Aurea.

Tio Carlos ficou olhando a cena. Era um homem sóbrio e moderado, habituara-se à disciplina. Mas, sem que pudesse estancá-los, seus pensamentos se atropelaram, com os órgãos dos sentidos extremamente aguçados, e seu desejo, emergente e regressivo, desenrolou-se em sucessivas imagens, como as que se seguem.

O céu baixo e carregado pesa como chumbo sobre o espírito que geme em face de um longo tédio e quando o horizonte, abarcando toda a terra, faz o dia mais triste do que as noites causticantes da ansiedade, então se move uma população muda, tais aranhas infames fiando sua teia no fundo do cérebro, sinos de repente badalando com fúria a lançar para os céus um pavoroso urro, ouvem-se espíritos errantes e sem pátria em longas procissões desfilando na alma da Cidade, sem tambores nem música, a esperança derrotada, a angústia em despotismo atroz a lançar sua cortina negra em cima da cabeça inclinada sobre as mãos em forma de concha. Criança, amiga, sonha com a doçura de partirmos para longe, juntos, amar por amar, amar e morrer no país que assemelhas! Os sóis molhados desses céus abrasados por meu espírito têm a sedução misteriosa de teus olhos de abismo, brilhando meio às lágrimas que não choras. Então poderíamos viver. Tudo seria ordem e beleza. Luxo, calma e volúpia. Móveis luzentes, polidos pelos anos, decorando o espaço de nossos dias, flores raras misturando seus olores aos vagos aromas do âmbar, os tetos pesados de adornos, os espelhos profundos, tudo poderia falar em segredo sua língua natal, pois é desse país que você vem, tenho quase a certeza de que ali é seu lugar, mas você está aqui, nesta cidade, e nunca morou por muito tempo em outra, portanto, de onde vem você, com essa estranha tristeza, subindo como o mar sobre a rocha negra e nua? Quando o coração já fez suas apostas, o viver torna-se um mal, como segredo que pensávamos existir, mas todos já conhecem; dor muito simples, não é misteriosa, não, e contemplar uma alegria como a sua, radiante, para quem conseguir levá-la no peito! Por isso, nada procure saber, belo animal, melhor calar sua ignorância, seu riso de boca infantil! Muito mais que a vida, a morte nos comanda por rédeas sutis, mas, por Deus, permita a meu coração se embriagar dessa mentira, mergulhar nos seus olhos dourados como um sonho bom e dormitar sem tempo à sombra de seus cílios. Essa mulher, entretanto, com sua boca de morangos frescos, torce-se como serpente sobre brasas, os seios endurecidos sob a musselina da blusa, essa mulher tem lábios úmidos e de seus lábios saem frases como liquens e musgos e seiva e sumo, seca todos os prantos e faz anciãos rirem com riso de crianças. É toda uma carne sábia, douta nas volúpias, tímida e libertina, frágil e robusta. Permitam-me degustá-la como pérola preciosa deixada dissolver em cálice de vinho, como se fazia no apogeu de Roma. Meu Deus, que visão é esta? Vejo uma besta escarlate coberta de blasfêmias e portando sete cabeças e sete chifres. Vestida de púrpura escarlate, faísca de ouro, pedras preciosas e pérolas. Sobre sua fronte há um nome escrito, em mistério nu: "Dolores Davida, mãe das prostitutas e das abominações da terra" e sob meus olhos, banha-se do sangue dos santos e dos inocentes para purificar sua tez e alimentar sua vitalidade e viço. É prostituta, não pode ser esposa, sentada à borda das imensas águas que são os povos, as multidões, as nações e as línguas. Posso distingui-la, sim, daqui de onde a vejo, como uma cidade de poder, de luxo e de riquezas. Perseguindo os santos. Reinando sobre os reis da terra. Música, comércio, agricultura, casamento, os traficantes e a perseguição. Os reis da terra fornicam com ela e os habitantes da terra levantam brindes com o vinho de suas vinhas. A palavra grega para "punição" (krima) é traduzida, então, por "julgada", pois a grande prostituta deverá sempre ser contrastada com a casada, a esposa, nós, cordeiros, homens de bem. O fato de que a mulher monta o dorso da Besta sugere que a Besta a sustém, e que a mulher tem o papel dominante. Mas não é assim. A Besta domina tudo. Aquela mulher é uma Cidade. Ela é insolente, feroz e idólatra, ela se chama "eterna soberana". Atenção! Guardai-vos de toda cupidez, pois, ao seio mesmo da abundância, a vida de um homem não está assegurada por seus bens. Foi no deserto que eu vi a Besta do mar cavalgada por uma mulher. A cor escarlate cria um laço entre a Besta e a mulher, que vem vestida de púrpura e escarlate. As sete cabeças e os sete chifres assemelham-se à descrição de um dragão. A proximidade da mulher e da Besta indica o estreito laço entre os dois. Os títulos difamatórios que a cobrem significam seu desprezo por Deus e seu povo, perseguido pela mulher. A mulher está sentada sobre a Besta do Mar, o que quer dizer que ela é sustentada pelo poder político da Besta, logo, por Satanás. O controle da mulher sobre a Besta é ilusório. O poder é de Satanás, o anjo do Abismo. Ela sai do Abismo, a morada dos demônios. Não se deve dizer que essa mulher é mistério. A palavra "mistério" não deveria fazer parte de seu nome. Mistério, no sentido bíblico, significa algo de desconhecido dos não-iniciados, mais evidente aos iniciados. É o signo da perda.

Tio Carlos retornou de seu delírio. Recriminou-se por essa extravagância. Extravagância mesmo, literalmente, extra-vagar, ir além dos limites do que, em si, já é devaneio. Consolou-se, recitando mentalmente uns versos de Fernando Pessoa: "Não pondero, sonho. / Não me sinto inspirado. / Deliro". Pessoa, como todo verdadeiro poeta, possui a sabedoria que excede o conhecimento.

Olhou em volta e viu que seu sobrinho estava definitiva e profundamente atingido pelo olhar de Emma Louise. Seria perda de tempo, conversar com Julião sobre aquele tipo avassalador de mulher: não se retorna de um olhar daqueles.

Eu mesmo, que nada presenciei, sinto extraordinária volúpia cada vez que me lembro dos detalhes com que Julião me relatou o seu impacto com aquela visão de fogo, preciosa e insistente, cujo calor me ficara impregnado na alma para todo o sempre. Nisso é que estava o sabor esquisito que ainda permanecia, por um efeito da imaginação, nas palavras trêmulas que usei para descrever a cena do salão de chá.

A Senhora de Sant'Anna já se retirava, sorrindo de modo acolhedor a Julião, de modo a sugerir-lhe sua aprovação do namoro entre ele e Emma Louise. Também elas iriam à casa do Corregedor, convidadas pelo tio Carlos, amigo íntimo da casa.

Agora, Julião, encontrava-se entregue às impaciências da paixão. Distraído abstrato, pueril, não deu atenção aos e-mails que todo dia conferia ao chegar em casa, tomou banho e vestiu-se com gravidade. Habituara-se à sua vida ordenada, de pesquisador e professor - o professor que realmente encarna a função será provavelmente a mais disciplinada das criaturas (e deve ser assim mesmo), equiparando-se apenas aos monges católicos, e destes, os Beneditinos, e a algumas significativas comunidades de monges orientais -, e não era dado a delírios, ao contrário do tio Carlos.

Iria à reunião na casa do Corregedor. Não costumava fazê-lo. Não era do seu estilo, um tanto californiano inevitavelmente, moderno sem ser pós-moderno ou ultramoderno. Sabia, pelo tio Carlos, que eram encontros passadistas, reuniões simples e amenas, onde se cantavam canções ao piano e ouviam-se trechos de óperas por um tenor muito conhecido na cidade, cuja família mantinha comércio, aliás, vizinho ao Magazine Dois Mundos, a Casa Organza, um armarinho com itens sortidos e raros em outras lojas, como as inesquecíveis rendas de cassa suíça e as rendas inglesas de enfiar.

Além das canções, liam-se trechos de prosa e poesia, todos escolhidos pelo próprio Corregedor: o episódio de Inês de Castro, de Camões; Antônio Vieira, principalmente o Sermão do Bonsucesso das armas portuguesas contra as de Holanda visitar link; José de Alencar, com ênfase em Iracema visitar link; Alexandre Herculano, trechos de Eurico, o Presbítero visitar link; Castro Alves, tanto a poesia libertária como a lírica, especialmente Laço de Fita; Raimundo Correia, principalmente As Pombas; Vicente de Carvalho, insistentemente Velho tema; Olavo Bilac, sobretudo, Dualismo; Essa nega Fulô, de Jorge de Lima, bem como alguns poemas da Invenção de Orfeu - tal Permanência de Inês; algumas traduções, como o Se..., De Rudyard Kipling, o famoso monólogo To be or not to be..., do Hamlet; Enfance, de Rimbaud; Baudelaire, tanto a poesia como a prosa, e uma escritora baiana, pouco conhecida, que escreveu Quatro Sonetos Cardinais, livro destinado a nortear os homens, além de outros.

Às nove horas a criada servia a ceia predominantemente da cozinha baiana, com saborosos quitutes a que estamos habituados: cuscuz de milho e de tapioca, beijuzinhos de folha, beijus com manteiga fresca, bolos de dois tipos geralmente (um típico da cozinha afrobaiana e um da culinária Ocidental, como é o caso do "Milfolhas", que sempre fazia sucesso), uma torta salgada ou duas, a depender do número de pessoas, e as maravilhosas torradinhas de pão francês, tão fininhas e transparentes, levemente amorenadas pelo forno em temperatura baixa, que ficavam deliciosas com manteiga, simplesmente ou adicionadas de algum acepipe doce: geleia de laranja aprendida com a família Nubar - que possuía uma casa de chá no Campo Grande; melaço de cana vindo de Campos, Estado do Rio; mel de abelhas uruçu vindo de Vitória da Conquista, Bahia. Às onze, perto das despedidas, servia-se vinho do Porto com trufas, especialmente, marzipã de nozes e folhas de outono.

O sabor dessas delícias só pode ser entendido por quem já mergulhou no centro dos sentidos: la saveur, como indica o escritor francês Francis Ponge. Precisa-se de estar atento a esse fato, para que se entenda a sede da energia da vida, e, por consequência, da arte. Talvez daí dizer-se que viver é uma arte

O Corregedor, ciente dessas coisas, costumava pedir à sua esposa para ler em voz alta algumas receitas de pratos da culinária internacional, mas com incursões em cozinhas típicas de cada lugar, para encerrar a noite.

Julião chegou. Num canto da sala já lá estavam, com um frufru de sedas, as mulheres. Emma Louise, vestida de branco, simples, fresca, com o seu ar de gravura colorida, abaixo de uma tela mourisca com minaretes, serralhos, sultanas cor de âmbar, piratas do Arquipélago, e salas rendilhadas, cheias do perfume do aloés, onde paxás decrépitos acariciavam leões.

Julião se aproximou. Seu olhar foi deter-se numa reprodução de cena do Egito, que em voz alta ia sendo descrita pelo Corregedor:

"- Trata-se de um julgamento, como podem ver. Há várias cenas e detalhes a serem descritos. Mas a cena central representa um julgamento muito especial: o da alma diante da eternidade e do Paraíso. O rei se encontra sentado num trono que sobreexcede o plano temporal. Nesse plano está o réu - se o podemos chamar assim - diante de uma enorme balança. Nos pratos da balança se encontram, como podem verificar, um coração, de um lado, e uma pena, do outro. É o coração daquele que vai ser julgado que está em um dos pratos da balança. Se pesar mais do que a pena, o julgado não conquistará a eternidade: será lançado ao recomeço de sua vida, já transmudado em outro ser: perderá, portanto, o seu bem maior no tempo humano, sua identidade. Ora, a perda da identidade é a loucura...".

E o Corregedor continuava a discorrer entre os ahs e ohs das senhoras presentes e a admiração dos senhores. O Corregedor era um homem muito rico, além de versado em letras e artes, competente na sua função, respeitado ao extremo em sua comunidade e tido como um experto na sua área profissional.

Um sinal foi feito por tio Carlos, e o tenor, Luciano Fagundes, começou a entoar a bela ária de Georges Bizet, O amor é um pássaro selvagem. As senhoras presentes, com vestidos de ramagens, as mangas estreitas, cheias da cintilação dos anéis, tinham sorrisos ternos, cochichos, doces murmurações, risinhos, e um brando palpitar de leques recamados de lantejoulas. "Muito bonito", diziam, "muito bonito!" Um aroma de perfumes de boa estirpe enfunava as conversas sussurradas. E o tenor, sorrindo, agradecia os aplausos - via-se-lhe um dente podre, mas entre um e outro elogio passava-se o tempo.

Depois, a preciosa D. July, esposa do Corregedor e cronista social da cidade em prestigiado periódico, sentando-se com maneiras comovidas ao piano, cantou com a sua vozinha curta a música oficial do patriotismo brasileiro, as maçãs do rosto adoravelmente enxertadas de silicone, covinhas nas bochechas um tanto invadidas pelos anos:

Noventa milhões em ação,
pra frente, Brasil,
salve a Seleção!


O que obrigou o poeta Peres, historiador e democrata, a rosnar rancorosamente junto de Julião:

- Sou um ser político, não suporto mais essa baboseira!

E a noite ia assim correndo, literária, repousadamente erudita, requintada, com laivos de patriotismo.

Nessa noite, a ênfase foi dada à leitura de receitas ortodoxas da cozinha francesa - particularmente a de Lyon: Coq au vin (o vinho tinha de ser um Cabernet meio-seco vindo de Cruz Alta, Rio Grande do Sul); Filet au poivre (pimentas da charcuteria ao lado da Igreja da Graça, na Bahia, super crocantes e odoríferas); Filet Chateaubriand (a consistência do molho houvera sido modificada na casa do Corregedor: usavam polvilho doce de Cordisburgo, Minas Gerais), além de fundos de alcachofra temperados com sal e azeite, ensopados de testículos e cristas de galo d'Angola (cozidas em água fervente e peladas), vitelo assado - em homenagem a Catarina de Médicis, a renovadora da cozinha francesa - e, a vedete da noite, Chapon de Bresse Gros Sel, cujo ponto máximo de emoção geral era: "Quand la cuisson est terminée, démouler la croque de sel et la briser à l'aide d'un marteau", imediatamente traduzido pelo poeta e historiador Peres, com sua habitual sofisticação e refinamento de detalhe e, quanto às sobremesas, o inadiável Crêpe Suzette (elaborado com a mais fina flor do milho de Quebrangulo, Alagoas), "- Mas, atenção! Não é para confundir Mousse au Chocolat com aquela coisa horrorosa que é a Chocolate Pecan Pie feita com pudim instantâneo! E o chocolate deve ser o meio amargo da Chadler do Brasil S.A. cujo olor invade a Península de Itapagipe e se assenta nas águas da Praia de Bogari!". O Corregedor se exaltou e interrompeu Dona July, ao enfatizar esses importantes detalhes.

- Detalhes são o nó gordio da vida!

A intenção do Corregedor era a de que todos se sentissem considerados em seus mais profundos brios, alegres, harmonizados com o cotidiano, relaxados para o próximo e produtivo dia devotado ao bem estar social e à prevalência do sensus communis - que se anunciava cedo, pensou ele após deitar-se, mais tarde, com galos cantando pouco depois da meia-noite.

Quatro dias depois, Julião era recebido em casa das Sant 'Anna, num domingo. A mãe convidara-o na saída da reunião. Chegou o domingo, chegou a hora combinada, final da tarde. Julião estava sentado, Emma Louise ao seu lado. Dois ou três convidados também foram chegando. Passaram à salinha de jogos e sentaram-se em volta da mesa de cartas.

Ela estava toda voltada para ele, com uma das mãos apoiando a sua fina cabeça, e a outra esquecida no regaço. Defronte estava ele e começou a fazer girar, sobre o pano verde, um anel de ouro, pesado e com um belo rubi engastado - o anel de formatura de seu pai, que semelhava um bilro ou um pião naquele momento.

Emma Louise sorria vendo o objeto girar, girar, e parecia a Julião que todo o céu, a pureza, a bondade das flores e a castidade das estrelas estavam naquele claro sorriso distraído, arcangélico, com que ela sorria e girava a cabeça, gira, gira, seguia o giro da peça de ouro. Mas, de repente, a peça, correndo até à borda da mesa, caiu para o lado do regaço de Luísa, e desapareceu, sem se ouvir no soalho de tábuas o seu ruído metálico.

Cortesmente, Julião afastou a cadeira, olhando para debaixo da mesa: a mãe Sant'Anna alumiou o lugar com uma pequena lanterna mourisca, e Emma Louise ergueu-se e sacudiu com pequenina pancada o seu vestido de cassa. A peça não apareceu. - Que estranho - disse Julião. - Eu não ouvi tinir no chão.

- Nem eu, nem eu - disseram.

- Pois a casa não tem buracos - dizia a mãe Sant'Anna.

No entanto Julião exalava-se em exclamações desinteressadas:

- Pelo amor de Deus! Ora, o que é que tem! amanhã aparecerá! Não vale nada, é uma bobagem.

Mas mentalmente estabeleceu que houvera uma subtração - e pensou que talvez alguém presente... A peça rolara, decerto, até junto dessa pessoa, sem ruído, ela pusera-lhe em cima o seu vasto sapato.

Emma Louise, toda mimosa nas suas cambraias assentadas, àquela luz tênue e esbatida, escondia obscuridades. Segundo me disse Julião - era muito singular o temperamento de Emma Louise. Lembrei-me, vagamente, de um relato de autor português, Singularidades de uma rapariga loura, não me recordo dos detalhes.

Havia alguma coisa de muito soterrada na personalidade da protagonista, que, por sinal, chamava-se Luísa. No final, é desprezada pelo marido e duramente castigada, restando um desses seres derrotados e relegados às margens da vida.

A nossa Emma Louise possuía caráter louro como parte do seu cabelo - se é certo que o louro é uma cor fraca e desbotada: falava pouco, sorria sempre com os seus brancos dentinhos; era simples, quase indiferente, cheia de transigências. Nessas ocasiões, era como uma estriga de linho, fiava-se como se queria; ou pelo menos assim se pensava. Às vezes, demonstrava ter muito sono, pedia licença, desculpava-se, ia repousar por algum tempo.

E aqui Emma Louise supera Luísa: voltava e já demonstrava outra face do seu caráter, como parte do seu cabelo - se é certo que o negro é uma cor enigmática, forte e intensa: falava incisiva, quase não sorria; era complexa, quase sardônica, cheia de intransigências. Ou se revelava atrevida, sedutora e imprudente como parte do seu cabelo - se é certo que o ruivo é uma cor ardente, vibrátil e apaixonada. Ou se evidenciava lúdica, extravagante, lúbrica como parte de seu cabelo - se é certo que os afros são brincalhões, boêmios e sensuais.

Emma Louise, no entanto, mantinha uma média equilibrada de reações, quando era, apenas, observada, sem precisar opinar ou apartear ou quando o seu falar era o único possível, e poderia, se quisesse, calar-se.

Tinha-se passado uma semana, Julião andava para o Magazine Dois Mundos, quando sentiu o odor de folhas de alpínia. Procurou em volta e atrás, à frente: era à frente. Avistou Emma Louise e a mãe, andando muito elegantes, conversavam alegremente, possivelmente iam às compras.

Seguiu-as até a Rua Chile, vindo da Praça Castro Alves. Iam às compras e dirigiam-se para a loja de seu tio! Trêmulo, sôfrego, apaixonado e com palpitações, apressou a passo e viu-as já encostadas ao balcão, um caixeiro desdobrava-lhes defronte seda preta. Mas, nem sequer o preto é moda, nessa estação!

Não queriam decerto estofar cadeiras com sedas pretas. Não havia parentes mortos recentemente, se é que alguém ainda guarda o luto, mesmo considerando-se que elas são vindas de uma raiz familiar bastante tradicionalista. Será que sua presença, na loja, era um meio delicado de saber alguma coisa a mais sobre ele?

Eu disse a Julião que, sendo assim, ele deveria estranhar aquele movimento. O que fez foi chegar ao balcão e, depois de cumprimentá-las, disse estupidamente:

- Sim, senhor, vão bem servidas, estas sedas não encolhem.

A mãe olhou-o sem perceber qual era a piada. E a meio morena ergueu para ele o seu olhar dourado, e foi como se Julião se sentisse envolvido na doçura do mel. Mas quando ele ia a dizer-lhe uma palavra mais coerente, apareceu ao fundo do armazém seu tio Carlos, os cabelos esverdeados pelo reflexo dos vitrais que compunham a claraboia do aposento, trazendo um bloco de notas na mão.

O tio Carlos, com a sua crítica sardônica, o criticaria, sem dúvida. Julião começou a subir vagarosamente a escada de caracol que levava ao escritório, e ainda ouviu a voz delicada de Emma Louise, a um oitavo negra, dizer brandamente:

- Agora queria ver lenços da Índia.

E o caixeiro foi buscar um pequenino pacote daqueles lenços, acamados e apertados numa tira de papel dourado. Em seguida, foi o caixeiro buscar, a pedido de Emma Louise, um mostruário de pulseiras turcas e árabes. Emma Louise as colocou no braço níveo (creio) e elas brilharam como sol, tilintando. Ao tirá-las, várias foram ao chão, e o caixeiro se apressou em reuni-las - eram valiosas, pois de ouro. As que ficaram no balcão, junto às sedas, não estavam mais ali.

O caixeiro se apressou em levantar a peça do tecido de seda, deslizante, muito afobado. Nada.

Conversa vai, conversa vem, entre a senhora de Sant'Anna e o tio Carlos, sobre a cidade e seu ritmo frenético de mudanças, muitas para pio A conversa tornou-se gourmet e Julião descia a escada com um mimo próprio às moças - uma caixinha de costura em laca. Era um objeto minuciosamente trabalhado, com a parte exterior em negro e a parte interior em rubro - aqueles matizes do vermelho que os chineses sabem usar com tanta mestria. Enquanto descia, ouviu um delicioso cardápio sendo desdobrado no balcão.

Tio Carlos, naquele momento, exaltava as virtudes da sopa de tartaruga. E o caixeiro procurava e procurava onde havia deixado o pacotinho dos valiosos lenços de seda pura indiana, e onde se tinham enfiado as pulseiras. Não os encontrava. Não os encontrou. Julião percebeu o nervosismo do caixeiro.

O empregado quis perguntar ao tio Carlos, mas este não permitia interrupções, engatado numa prosa sem fim sobre receitas culinárias. Nesse momento, explicava à Senhora de Sant'Anna os ingredientes do vinhad'alho dos faisões e do tempo de fermentação das lebres, indispensável àquele sabor inesquecível dos grandes pratos.

Emma Louise tinha os olhos postados fixamente nas telas que se encontravam nas paredes da loja: a Naja vestida e a Naja desnuda. Julião percebeu a direção do olhar da criatura de olhos esgazeados e de cabecinha alerta.

Apressou-se a justificar a presença de tais reproduções ali: a veneração de tio Carlos pela pintura de Goya. Francisco de Goya y Lucientes nasceu em Fuendetodos, em 1746. Pintava os soberanos e os nobres, de uma forma impiedosa, revelando a ambição e a feiúra dos retratados. Assim, ele se vingava de forma não muito sutil, da tirania que via. Goya foi um apaixonado, era um admirador das mulheres, o amor sempre esteve presente em sua vida. A Duquesa de Alba era uma mulher inteligente, bonita e poderosa. Pintou a duquesa em duas de suas obras mais conhecidas, a Naja Desnuda e a Naja Vestida. A Duquesa de 34 anos, muito mais nova do que Goya, que já era casado, foi para Sanlúcar onde ela tinha uma grande casa e levou Goya consigo. Viveram um amor sensual que também foi revelado em uma série de gravuras do pintor. Goya, mais tarde, teve que enfrentar a Inquisição, por causa da "obscena e imoral" Naja Desnuda - como considerada pelos inquisidores...

Emma Louise olhou-o e permaneceu olhando, com seu olhar dourado ardendo e um risinho matreiro. Ele se arrependeu dessa boba amostra de erudição. Lembrou-se do mimo e o passou à moça, que abriu a caixinha, cheia de sorrisos, os olhos baixos diante do presentinho

A mãe, discretamente, afastou-se, ainda conversando com tio Carlos e sob o pretexto de olhar alguns tecidos marroquinos recém-chegados à loja.

Em casa, Julião foi tomado de forte ansiedade, tremiam-lhe as mãos: sua vida estava transtornada. Não se atrevia a confessar para si mesmo que se sentia um estranho para si mesmo. De um estalo, associou o episódio do anel desaparecido ao do pacote de lenços indianos e ao das raras pulseiras do Oriente Médio.

Resolveu passear um pouco, pé ante pé. Havia um sereno e silencioso luar. Ia, ele, sem saber para onde. De repente ouviu, de uma janela alumiada, uma rabeca que tocavam uma melodia mourisca. Uma voz feminina entoou, em seguida: "Caminhando contra o vento...", de Caetano Veloso. Lembrou-se de como conhecera Emma Louise, do acidentado chá beneficente.

Passou em frente à sua casa. Pôs-se a olhar para ela, como se fosse de outrem. A janela do escritório estava fechada. Quantas vezes dali olhara a rua e imaginara a vida, contemplando o brando movimento das duas palmeiras em frente ao cômodo.

Uma janela, no segundo andar, tinha luz: era o quarto do tio. Julião vai observar mais de longe: uma figura estava encostada, por dentro, à vidraça, era o tio Carlos: veio-lhe uma saudade de todo o seu passado recente, simples, retirado, plácido. Lembrava-se do seu quarto, a velha escrivaninha com fecho de prata, a fotografia do seu pai, miniatura que estava por cima da cabeceira de sua cama; a sala de jantar e o seu velho aparador de pau-ferro, e a grande caneca de água, cuja asa era uma serpente irritada. O computador embutido na estante de cedro, seus papéis...

Decidiu-se e, impelido por um instinto, subiu, bateu à porta. Bateu outra vez. Sentiu abrir a vidraça, e a voz do tio perguntou: - Quem é?

- Sou eu, tio Carlos, sou eu.

A vidraça fechou-se, e daí a pouco a porta abriu-se com um grande ruído de ferrolhos. O tio Carlos tinha uma lanterna florescente, tailandesa, na mão, vestido com seu luxuriante quimono chinês. Julião achou-o magro, mais velho. Beijou-lhe a mão.

- Mas o que é que há, meu rapaz, por que não levou suas chaves?

Julião ia calado, cosido com o corrimão. Quando chegou à sala, o tio Carlos pousou a lanterna sobre uma larga mesa de pau-santo, e de pé, com as mãos nos bolsos, esperou.

- O que está acontecendo?

Contou-lhe seus sentimentos e os atos insólitos de Emma Louise. O tio Carlos, voltando as costas, foi olhar através da vidraça. Julião ficou imóvel, deu dois passos no quarto, e já ia sair de novo. - Sente-se ali! E o tio Carlos falava, com grandes passadas pelo quarto:

- Essa criatura é uma louca! Subtrair objetos! Na sua presença! Isso é desrespeito dos grossos! Você é um homem de bem. Ingênuo, mas homem de bem. Porém há um aspecto a se considerar nessas situações, que a própria Ciência do Direito rege e orienta.

Tio Carlos foi até sua estante, em angelim maciço, entalhada com motivos art deco. Daí retirou um tratado e leu: "além do elemento material da subtração (contrectatio), é preciso, porém, que o ladrão tenha conhecimento de que age ilicitamente: furtum sine affectu furandi non committitur. Pertence à categoria dos delicta privata, portanto, não atinge, significativamente, ninguém".

- Por outro lado, Julião, tudo parece indicar que a moça não tem mesmo o conhecimento da irregularidade de seu comportamento. Do ponto de vista da Lei, não há infração quando não há tomada de conhecimento do furto por parte de quem o cometeu. Mas a dúvida persiste: não terá mesmo essa moça conhecimento do que faz? E se o faz, para que o faz? Qual a utilidade do ato? A meu ver, não há utilidade nenhuma em questão. É maluquice, desorientação, talvez, falta da Lei, do Pai, que é órfã de pai.

- Sente-se ali! Sente-se! O senhor é um homem de bem! Mas, quer que lhe diga uma coisa? Case. Case, e reforme a mulher! Não a ama? Dê-lhe alma, isto é o que aparenta não ter, mas tem, todos a temos. Você pegue essa criatura e ponha-a em brios. Sou um homem vivido. Percebo, na mãe e na filha uma carência de vida interior, de reconhecimento da identidade. São belas figuras! A mãe, certamente, salvou-se por ter encontrado rédeas firmes. A filha, sem pai, cresceu como bicho. Isto é que se deveria chamar crescer como bicho: sem cultivar a alma, sem conviver com ela. Você viu só o efeito? Olhe, Julião, é corrente se dizer que a mulher faz o homem, e isso é uma verdade irrefutável e permanente. É uma verdade, sim. Elas nos parem, nos amamentam, cuidam de nós, enquanto mães, esposas, amigas, amantes. Mas está faltando homem na sociedade moderna, homem com H maiúsculo. O homem intimidou-se com a força da mulher, vive pelos cantos, a mulher faz dele gato e sapato. Isto é errado. Homem tem de ser mentor, guia. Homem tem de segurar os desvios da mulher. Tem de fazê-la voltar a ser gente. Olhe sua noiva: um mimo, um encanto na aparência. Mas o que é ela? Um animal solto, uma besta sem alma, distanciada daquilo que filósofos e artistas chamaram de "besta divina", a alma. O corpo, sem a alma, no ser humano, é claro, e lhe digo, mesmo nos animais - de modo diferente, enlouquece.

Julião abraçou-o, com lágrimas nos olhos, radioso. Saiu reconfortado.

Tio Carlos, sentando-se, pensava em como teria sido inútil convencer Julião a se afastar de Emma Louise. Ele jamais se afastaria, mesmo condenado como estava a suportar os horrores de ter uma mulher que nunca lhe pertenceria. Uma lágrima corria-lhe pelo engelhado da pele. Pensava na Espanha e na sevilhana Dolores Davida, morta em bombardeio aéreo nos tempos da Guerra.

Em casa, Emma Louise abria sua caixinha de laca e iniciava o primeiro ponto no primeiro lençol do seu enxoval, a vasta cabeleira presa no alto da cabeça, a face ruborizada, os gestos lentos, o olhar atento para a tarefa encetada. Chirleava, então.

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