Todo o quarto pintado de branco, um cômodo amplo. A cama também
branca, pátina na cabeceira sobreposta. Uma imensa cama/colchão
de 1,93m x 2,03m, estilo alemão. Mesinhas de cabeceira com abajures apagados,
em forma de cones invertidos, com haste de aço cromado em ouro. Um porta-retratos,
também cromado em ouro, à esquerda, e alguns livros empilhados,
cinco. Um telefone com identificador de chamadas, última geração.
À direita, um arranjo de camélias muito alvas em jarro de opalina
branca iridescente e um rosário de madrepérola, contas grandes
e encastoadas em filigrana portuguesa, uma joia.
Sobre a cama, no meio, alguém dorme virado para a direita, envolto em
um grande xale branco que, pela contextura e brilho, parece de seda. É
um homem e está despido debaixo do xale. Percebe-se que está despido,
pelo delineamento do corpo no tecido da seda fina. As paredes do quarto estão
pintadas de tinta a óleo, como recém-pintadas. Devem exalar ainda
o cheiro de tinta fresca. Sim, o cômodo foi pintado recentemente. Não
há quadros nas paredes, mas lá se encontram os ganchos que os
prendiam. Observando bem, os quadros estão no chão, cuidadosamente
arrumados, de costas, em ordem decrescente de altura. São muitas, as
telas. O quarto é amplo, mas de onde me encontro só posso ver
o lado direito do cômodo, já que meu ponto de vista é em
diagonal. Há uma bela peça de mobiliário na parede ao lado
da porta. É um grande porta-bibelôs art deco, com sua simetria
axial, com corpo, base e coroamento, escalonados, onde se encontram objetos
de adorno muito belos: um tocheiro de cristal com detalhes em verde esmeralda;
um biscuit alemão de um par de crianças, peças individuais,
sem base, em que um menino, em azul, joga uma pequena bola para a menina, em
rosa; uma sensacional imagem do barroco espanhol, de Nossa Senhora de Assunção,
com uns 0,80m de altura, numa donzela, e um livro aberto em cima de um suporte
em madeira - provavelmente uma Bíblia - colocado a alguns centímetros
do porta-bibelôs. Abaixo, na base da mesa, um vaso de faiança craquelé,
em tons de verde musgo, com motivos campestres, contendo uma avenca natural:
há algumas poucas folhinhas meio envelhecidas Um espelho art nouveau
está colocado acima do móvel, com detalhes de flores e cabelos,
coloridos alegremente, nas flores e em estrelas do mar mergulhadas na cabeleira
da cabeça feminina predominante. Muito bela essa concepção
de espelho, pois a cabeça feminina ocupa quase todo o espelho, que é
oval, com seus exuberantes cabelos ornados, abrindo-se em outras cabeças
femininas menores em pontos assimétricos da superfície. Há,
também, uma tabaqueira de prata rococó, centralizada no coroamento
do móvel, com cerca de 0,10m por 0,7m. E aquela inquietante adaga mourisca
presa por braçadeiras de latão abaixo do espelho!
Ao alto, no teto que não vejo, uma lâmpada de 60 watts desguarnecida
de luminária, florescente, pendendo de um fio. A luz parece sair das
paredes como suor.
E na testa do homem também há gotas de suor: deve estar sonhando,
pois não faz calor, pelo contrário, venta frio. A janela se abre
para o mar em sentido oposto à minha varanda, também voltada para
o mar, pois moro perto de um antigo porto marítimo, ora desativado.
Ouço, agora mesmo, o marulhar das ondas e, se eu mudar um pouco de posição,
avisto as luzes do farol contíguo à praia onde minha casa foi
mandada construir, há cinquenta anos atrás, por um advogado,
já falecido, na família do qual - mais precisamente na mão
da nora, viúva, - a comprei há cinco anos.
A porta do quarto do homem está fechada, e são cinco e quarenta
e cinco da tarde. Indago-me sobre como será esse homem, fora daquele
momento, daquele quarto e de seu abandonado corpo a dormir envolvido em xale
de seda leve e branco. Sei um pouco sobre ele, pelo que posso ver. É
homem culto e de gosto apurado, viajado, provavelmente. Digo "provavelmente",
porque há casos de pessoas que viajaram pouco ou nada e, ainda assim,
possuem uma vasta informação sobre o mundo e culturas diversas
e, consequentemente, um gosto refinado: têm o hábito de visitar
museus e exposições em sua própria cidade, se
os há - e sempre há, em grau maior ou menor, a depender da cidade,
naturalmente -, concertos e outros bens culturais e artísticos, notadamente
o teatro.
Há algo de propriamente teatral naquele quarto de janelas escancaradas,
sobretudo para mim, plateia em relação a ele. Essa questão
de bom gosto depende também da extração social do indivíduo
- por consequência, do seu entorno familiar e de seu círculo
de amizades. Alguns ou todos desses componentes poderão ter determinado
o excepcional bom gosto daqueles móveis e dos bibelôs, daquele
espelho, daquela cabeceira de cama e daquele xale de seda, de beleza quase pungente.
E por que de beleza pungente? Porque há um homem frágil e só
sob ele, e também, por ser belo, pois é belo - níveo, flexível,
como só as sedas de excepcional qualidade podem ser (e não posso
deixar de pensar nos bichos-da-seda tecendo-as em seu casulo). Seda e vinho
se assemelham neste ponto, a vida que retêm, mesmo em seu estado, digamos,
consuntível, pois ao consumirmos a seda e o vinho não estamos
atentos ao detalhe único: a sua vida sob nova forma.
E há livros na cabeceira. Não posso ver, daqui, os títulos,
nem mesmo o do primeiro da pilha, mas pelo que vosso ver no quarto, ele não
é do tipo de
homem que se limita à literatura de autoajuda, e aquela coisa horrorosa
que é a assim dita "neurolinguística" - como sou
apaixonado por línguas e linguagens de modo geral fiquei ligado quando
ouvi, há uns seis anos atrás, a referência ao que eu julgava
ser um dos ramos da ciência linguística. Interessei-me logo
e fiquei chocado com a picaretagem do arauto dessa panaceia para o sucesso,
a riqueza e a felicidade: é um assalto ao bolso e à boa fé
dos incautos.
Mas, voltando ao corpo envolto em xale de seda, a janela escancarada parece
ser imprudência. Por outro lado, penso na singularidade da cena que contemplo,
pois o bairro de Itapagipe não combina com o estilo de vida que esse
homem demonstra ter. A vida nesse bairro, na parte residencial, continua pacata
e morna, com seu sabor de província. Nem mesmo seu quarto tem a ver com
o pequeno edifício em que se situa. É um pequeno imóvel
de dois andares, sem portaria, com um caramanchão de "lágrimas
de Cristo" (este é um tipo de trepadeira luxuriante, de impressionante
beleza, com seus cachos de pequenas flores cor de rubi) exuberante na porta
de entrada. Mas o apuro de gosto que percebo no quarto, recém-pintado,
é verdade, ainda por finalizar, é de quem entende mesmo da arte
do mobiliário e de arquitetura de interiores, definitivamente. Fico a
imaginar quão bela será a luminária do teto, quando instalada.
Por sinal, em volta da lâmpada começam a juntar-se mariposas, cada
vez mais.
Este ano, as mariposas noturnas invadiram a cidade e ali estão em torno
à lâmpada, volteando, prenunciando chuvas mais grossas. Desta vez
surgiu uma espécie esquisita: corpo grande e oleoso, cor feia, asas desproporcionalmente
miúdas. Muitas moscas também infestam a cidade, e não dormem
nunca: agora mesmo estão ali, lado a lado com as mariposas. Volteiam,
descem e pousam na manta de seda branca e na boca do homem que ali se encontra
deitado. O homem cerra os lábios no seu sono.
É outono, e as folhas das amendoeiras forram o chão da calçada
que eu vejo, a da orla com a balaustrada na qual gosto de me sentar e olhar
o mar, costas voltadas para a rua, que vive um momento difícil, já
que, a despeito de alguns esforços municipais, continua a abrigar uma
franja social de prostitutas mulheres e travestis - resíduos de uma sociedade
consumista e seus expurgos - aqui, nesta cidade, sem muros, diferentemente da
Alemanha, por exemplo, em que algumas cidades parecem acabar nas grades que
separam o convívio urbano imediato das margens expurgantes: comércio
sexual de vários tipos e tráfico de drogas.
O homem respira constante, algumas vezes pelo nariz, outras pela boca, alternadamente,
num ritmo regular. As moscas se aproximam do nariz e impedem-no de um respirar
tranquilo. Precipita a respiração, porém suas mãos
permanecem aderidas ao corpo envolto no xale, abraçando o próprio
corpo, virado para o lado esquerdo.
A noite invade o porto. Passaram-se algumas horas e as luzes dos postes piscam,
como surgindo dos filetes da chuva. Destaca-se, no negror da noite já
instalada, essa mancha branca, daqui de onde me encontro, essa janela do quarto
do homem que dorme envolto no xale de seda alva, visitando a noite cerrada.
Agora, uma pequena e suja noite invertida no seu quarto, desde que as moscas
começam a pousar sobre o branco do lençol, estrelas baças
em extensão de láctea brancura, e ele nada percebe, além
dos seus sonhos.
Assim vai passando a noite, e nada mais acontece naquele tempo que parece congelado
em sua semelhança consigo próprio, de modo análogo à
fixidez aparente de alguns corpos celestes, os quais perscruto e avalio dia
após dia. Afora o meu pensamento que vislumbra esta imagem, este momento
na vida deste homem não existe. Penso no desamparo do corpo que entrevejo
a partir do ponto em que me encontro, no parapeito de minha varanda, onde afino
meu telescópio. É um bom telescópio, com 0, 95m de diâmetro.
Não sou um voyeur, ao contrário do que podem pensar,
nem estou planejando nenhum assassinato, no estilo de filmes americanos que
imitam a realidade que imita muitos dos filmes americanos. Sou astrônomo.
Realizei meus estudos no Departamento de Astronomia do IAG/USP e, em seguida,
Doutorado na Columbia University, com tese sobre a ação dos ventos
estelares na criação de bolhas e filamentos em uma seção
da Tarantula Nebula - o mais singular dos cardumes de estrelas, conhecido
como NGC 2070 ou R136, casa de um grande número de estrelas jovens. Os
ventos estelares são hoje um dos principais ramos de pesquisa em Astrofísica,
ocorrendo em praticamente todas as fases da evolução estelar.
Aperfeiçoei-me em Astrofísica na NASA. Como não reside
em mim nenhuma outra ambição senão a de estudar o universo,
preferi voltar à minha cidade natal e ter um trabalho certo num observatório
do meu estado, sem maiores pretensões, a fim de que me sobrasse tempo
e vida para minha observação dos corpos celestes.
Montei um pequeno observatório na varanda de minha casa, nos fundos,
que fica a Leste do porto conhecido como Porto da Barra. Pertenço ao
corpo de astrônomos de um observatório a pouco mais de cem quilômetros
desta cidade.
O pequeno edifício onde vejo a janela aberta e o homem fica do outro
lado da cidade, em plano perpendicular, na Península de Itapagipe.
Eu estava a buscar uma visibilidade plena para pesquisar um pequeno corpo celeste
que se tem imiscuído na minha observação e anotações
habituais, a partir das cinco e meia da tarde, meia hora depois de minha chegada
em casa de volta do trabalho no turno ímpar desta semana. Pode ser que
se trate de um objeto quasiestelar, que é constituído de material
gasoso, núcleos galácticos ativos (AGNs), ou quasares, que absorvem
a luz segundo as cargas e quantidade de íons presentes. Linhas de absorção
pesada são comuns na moldura ultravioleta (UV) dos AGNs, devido a uma
variedade de transições ressonantes. Os quasares são os
objetos mais luminosos do universo - descobertos recentemente, em 1963 - e dos
mais próximos à Terra. Alguns deles fornecem diagnósticos
sobre a Terra em épocas sucessivas ou não, principalmente os de
luz vermelha. Acredita-se que são potencializados pela acreação
de matéria por sobre os buracos negros no centro das galáxias,
um processo que emite mais energia do que reações termonucleares.
Na próxima semana, turno par, trabalho à noite. Então,
quando volto, durmo muito bem, após uma xícara de chá,
algumas óperas, como o Barbeiro de Sevilha ou composições,
como a que acabo de ouvir (Quarteto para Piano em Si Menor, Op. 25, arranjos
de Don Davis para o filme House on Haunted Hill) - que me acalma pela
qualidade da transcendência de qualquer sentimento trágico da vida,
ou o Hey Jude, dos Beatles, a qual adoro, ao lado de Lucy in the Sky,
acima de todas. Gosto tanto desta última, que às vezes paro de
olhar o céu apenas para ouvir a frase: "Lucy, in the sky, with diamonds"
sendo repetida no meio da massa sonora, à semelhança das tocatas
de Bach e de alguns outros compositores barrocos.
E a Teoria da Relatividade Espacial, criada por Albert Einstein em 1905? Creio
que pode ser confortavelmente resumida em uma sentença: a velocidade
da luz no vácuo é constante. Todo o resto - contração
do espaço, dilatação do tempo etc - é apenas consequência
disso. De vez em quando topamos com gente pedante - e ignorante - dizendo, com
a maior pompa, a seguinte besteira:
"- Segundo Einstein, tudo é relativo".
Einstein nunca disse isso. Pelo contrário, segundo Einstein existe pelo
menos uma coisa absoluta nesse mundo: a velocidade da luz. Outra coisa: a faixa
colorida obtida por Newton quando separou as cores da luz do Sol com um prisma,
o "espectro da luz solar". O espectro de uma luz é a separação
das cores componentes dessa luz. Essa separação, ou dispersão
pode ser obtida com um prisma ou com outro dispositivo chamado rede de difração.
Para ter certeza de sua interpretação, Newton fez uma experiência
crucial: incidiu a luz dispersada sobre um cartão com um pequeno furo.
Ajustando a posição do furo deixou passar só uma componente
(a vermelha, por exemplo). Fez esse feixe incidir sobre o segundo prisma e não
observou nenhuma decomposição a mais.
O feixe se desviava, mas continuava da mesma cor. A luz vermelha não
se dispersa. Com essas e outras observações, Newton demonstrou
que a luz branca do sol é uma mistura de luzes com as cores visíveis.
Cada cor sofre um desvio diferente pelo prisma. Tecnicamente, dizemos que a
luz violeta é mais refringente que a vermelha, pois se desvia mais. Ou,
em outros termos, o índice de refração da componente violeta
é maior que o índice de refração do componente vermelho.
Mas cá estou eu a rever elementos da aula de hoje, no Observatório,
para um pequeno grupo de graduação em Astronomia, que frequenta
o Observatório Antares duas vezes por semana. Foi uma aula instigante.
Eu dizia, então, que durante toda sua vida Newton acreditou que a luz
era feita de partículas emitidas pelos corpos luminosos. Cores diferentes
corresponderiam a partículas diferentes. Outros cientistas, como Christian
Huyghens (pronuncia-se "róiguens") diziam que a luz era formada
de ondas, cada cor tendo um comprimento de onda diferente. Hoje sabemos que
Huyghens tinha mais razão.
Mas por que me detenho nessas minúcias agora? Gostaria imensamente se
minha memória apaziguasse sua atividade por hoje. Estou precisando de
descanso. E não consigo deter esse fluxo de informação
que sobrevém sucessivamente. No ar, segundo Newton, todas as partículas
teriam a mesma velocidade, mas, entrando no prisma de vidro, a velocidade seria
diferente para
cada cor. Isso causaria o desvio diferente das componentes da luz. Lembro-me
agora que quando acabei de explicar esse fenômeno um aluno formulou uma
pergunta instigante: "Até que ponto Newton se baseou em hipóteses,
pois, à sua época, isso era escandaloso?!" Para sermos justos
com Newton, respondi, lembramos que ele dizia não fazer hipóteses
sobre a natureza da luz: observava seu comportamento.
Na verdade, nem sei porque estou revendo mentalmente essas teorias com tamanha
rapidez. Fiquei muito cansado depois da aula de hoje, lá no observatório.
Já deveria ter sossegado meus pensamentos observando o firmamento pelo
telescópio de minha casa - o que sempre me tranquiliza e relaxa.
O fato é que a visão daquele quarto com o homem dormindo, protegido
apenas por um xale de seda branca, me desassossega.
Tudo pode acontecer com esse rapaz, meu Deus! O quarto fica num segundo andar
bem baixo, a construção do prédio privilegia o primeiro
e o segundo andares e diminui a altura do térreo. Talvez haja um subsolo?
Creio que sim, parece que sim, um ou dois, talvez três. Não, claro
que não, Itapagipe é um bairro plano predominantemente.
O espectro da luz do Sol, dita "branca", é um contínuo
com todas as cores visíveis. Hoje sabemos que esses componentes têm
comprimentos de onda que vão desde 4000 Ångstroms (violeta) até
7500 Ångstroms (vermelho). Se a luz vier de outro objeto luminoso, como
uma lâmpada, o espectro obtido pode ter apenas algumas cores, sem contar,
naturalmente, com a rede de difração.
Pronto, lá está ele, plenamente visível agora, o pequeno
corpo celeste, que batizei como Lucy, em homenagem aos Beatles e à qualidade
diamantina da luz que esse pequeno (?) astro emite. Desde que Urano foi descoberto
por Herschel, sua órbita foi calculada levando em conta a atração
gravitacional do Sol e a influência dos demais planetas, principalmente
Saturno e Júpiter. Após algumas décadas notou-se que a
órbita calculada com as leis de Newton desviava-se ligeiramente da órbita
observada pelos astrônomos. A confiança na teoria newtoniana era
tão grande que a maioria dos cientistas começou a suspeitar que
outro planeta, ainda desconhecido e mais distante, estava perturbando um pouco
a trajetória de Urano. Vários cientistas se dedicaram à
tarefa de tentar localizar esse novo planeta. Usando as Leis de Newton e os
valores da órbita desviada de Urano, talvez fosse possível, matematicamente,
calcular a posição do planeta desconhecido. Só que este
tipo de cálculo é extremamente elaborado e, naquele tempo, tinha
de ser feito à mão. Apenas dois heróis conseguiram ir até
o fim sem desanimar e terminaram seus cálculos quase ao mesmo tempo.
Um deles, o inglês John Adams, chegou primeiro ao resultado e enviou uma
carta aos astrônomos do observatório de Londres. Mas, Adams era
um estudante de apenas 25 anos e os medalhões ingleses deixaram as previsões
do jovem calculista na gaveta. Já o outro era o francês Urbain
Le Verrier, astrônomo de prestígio. Ele enviou sua carta ao observatório
de Berlim e seu pedido foi atendido imediatamente. Na mesma noite, 23 de Setembro
de 1846, o astrônomo alemão Johann Galle apontou seu telescópio
para o local do céu indicado por Le Verrier, e de fato, lá estava
um ponto luminoso que não constava nos mapas celestes: um novo planeta.
Com a notícia do grande feito os ingleses resolveram olhar para o céu
na posição indicada por Adams e também viram o planeta
previsto matematicamente pelo jovem calculista.
Esse, sem dúvida, foi um dos grandes momentos da história da ciência.
Um planeta desconhecido, invisível a olho nu, tinha sido descoberto e
localizado através de puros cálculos matemáticos, utilizando
o enorme poder da teoria de Newton. E o pequeno corpo celeste que estou a observar
poderá, talvez, ser imenso, coisa, aliás, que já pré-vi
nos meus cálculos matemáticos, mas não quero adiantar ainda
nada, absolutamente nada, sobre essa previsão.Se se analisam as luzes
do firmamento com os pés na terra e a mirada no céu, podemos saber
de que são feitos os astros tão distantes, quando se formaram
e a que temperatura ardem.
No entanto, é importante manter os pés na terra. Exercito essa
atividade - a de manter os pés na terra - com afinco e esmero. Afinal,
não somos anjos, e o ser humano necessita de solo firme para divisar
os segredos da vida como um todo. É dessa firmeza ao solo, dessa aderência
ao meu mais imediato que venho retirando o meu sustento, o que é fundamental
para um homem, e, também - podem ter a certeza - os meus sonhos. Nada
melhor do que um banho de realidade fria para acalmar os nervos superaquecidos
pelo excesso de um indesejável sobressalto neuronial, ou mesmo, de uma
tempestade de emoção.
E foi por isso mesmo que, após ter buscado em um programa de midi, no
meu computador, a área de Puccini conhecida como Madame Butterfly,
cantada por Maria Callas, fui para o meu telescópio e passei o foco de
visão pela Península de Itapagipe, só para olhar o belo
estirão da ponta que avança para o mar, e, aí então,
surpreendi a mancha branca do quarto do homem envolvido por um grande xale de
seda branca.
Procuro descrever o que vejo da vida desse homem como descreveria a superfície
de um astro, com minúcia e sem deduções apressadas. Por
isso não vou dizer que penso isto ou aquilo sobre o que vejo. Apenas
vejo. Claro, sou gente também, e por isso sinto empatia por esse homem
ali deitado, aparentemente desprotegido, ou mesmo, para ser mais rigoroso, desprotegido,
pois quem está a dormir fica sem defesas em relação aos
eventos exteriores, ainda mais se se dorme com a janela escancarada - como é
o caso presente.
De qualquer forma, qualquer ilação sobre esse corpo visível,
que é este homem, será precipitada. Se dissermos que o Homem
é o ser que faz de si próprio uma questão para o pensamento,
esta é uma ideia aparentemente profunda. Mas será que o
leitor se deve limitar a repetir esta sentença de aspecto profundo? Não
será melhor tentar ver o que há de verdadeiro dentro dela? Se
quiser fazer isso, e pensar por si mesmo em vez de repetir apenas o que ouviu
de alguém, pode chegar ao próximo raciocínio: aparentemente,
o autor da frase sobre o Homem está a dizer, com uma linguagem sexista
e antiquada, que um ser é um ser humano se, e só se, fizer de
si mesmo uma questão para o pensamento. Isto quer dizer que uma condição
necessária e suficiente para ser um ser humano pensar em si mesmo. Mas
isto não pode ser verdade. Se houver quaisquer outros seres inteligentes
no universo, ou se houver Deus, ou se houver anjos, todos esses seres refletirão
sobre si próprios, mas não serão seres humanos.
Portanto, refletir sobre si mesmo não é uma condição
suficiente para ser um ser humano. Na melhor das hipóteses, é
uma condição necessária. Mas será necessária?
Será que os primeiros homens da pré-história refletiam
sobre si próprios? Muito provavelmente, não.Sendo assim, o que
o autor quer realmente dizer, se tentarmos ser justos, é que uma característica
importante dos seres humanos é a sua inteligência, que lhes permite
pensar em muitas coisas incluindo neles próprios. Mas isto é trivial.
Por detrás de uma afirmação de aspecto portentoso, esconde-se
uma trivialidade sem qualquer interesse e da qual nada de substancial pode resultar.São
as ciladas da linguagem. Por isso mesmo desconfio dela, com seus ardis e seu
engodo. E me atenho à Ciência como um refúgio para as incertezas
da linguagem, pois minha propensão ao devaneio e às divagações
são um traço de minha natureza: tento corrigir essa natureza,
quiçá imposta por uma determinação genética
que não escolhi, sendo rigoroso e fiel à transparência do
pensamento. Porque, antes de tudo, tento ser um homem honesto, um ser humano
de valor intrínseco, de brilho próprio, como as estrelas.
A noite vai trotando rápido e repito e repito minhas observações
sobre o corpo celeste que me ocupa, anoto, rabisco, risco, recomeço.
Não deveria estar fazendo isto à quase madrugada de um dia atarefado,
mas não consigo relaxar. Preocupa-me desmesuradamente aquele homem dormindo,
fragilmente envolto num xale de seda branca, a janela aberta de par em par.
Ele tem cabelos muito negros, bela cabeça encaracolada e a pele branca.
Deve ter entre trinta e trinta e cinco anos Vem-me a ideia que terei
de ficar ali até chegar o dia, ele se levantar, e eu ter a certeza de
que nada de mal vai acontecer a esse meu amigo que me ignora aqui, neste momento,
preocupando-me com a integridade dele. Alguém tem de fazer isso, é
o que penso. Sei que não vou mais dormir agora, que jeito? É esperar.
Seleciono mais um midi no meu PC, Lucy in the Sky with Diamonds, para
me alegrar, pois sempre me alegro ao ouvir essa canção dos meninos
de Liverpool. Além do que, estou prestando uma homenagem ao microcosmo
que acabo de olhar mais uma vez, meu astro, a Lucy, que está quase indo
embora por hoje.
Do lado de foram o céu começa a clarear e o sol parece voar,
tão rápido levantou da linha do horizonte. Vão-se as moscas
e as mariposas com o sol. O corpo do homem é invadido pela luz que jorra
pela janela aberta. E ainda assim, ele dorme.
No quarto, surge um outro elemento por fração de segundos: outra
pessoa, de costas, rouba toda a cena, já que de costas para a janela.
Presumo ser algum familiar e parece ser um outro homem, que entrou no quarto
por porta lateral, da qual eu não poderia saber da existência,
já que está oculta a meu ângulo de observação.
Soa um grito agudo, aqui perto. É de um garoto de uns quinze anos atemorizando
um menor, que começa a chorar. São cinco horas do dia 19 de agosto
de 2001.Volto a olhar para a Península.
A janela do quarto branco, com o corpo do homem envolto no xale de seda está
fechada.
Não quero entrar em especulações baratas ou enveredar
pelo delírio. Mas algo me diz que acabaram de assassinar um homem.