A Garganta da Serpente
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Artista de rua

(Mauricio Duarte)

O rosto pintado de branco, as sobrancelhas reforçadas de negro, camisa listrada, chapéu coco, suspensórios e calça preta. É fácil encontrá-lo, todos os dias, no centro da cidade. O mímico. A metrópole é tão imensa e impiedosa que não entendo como ela não simplesmente o engole. Talvez engula.

Ele pula, executa movimentos rápidos, ritmados. Faz graça, gestos gozados, e arranca alguns sorrisos da plateia ambulante. Ora está encerrado em uma caixa invisível, ora sobe escadas impossíveis.

O mundo passa pelo mímico. Milhares de pessoas, de todo tipo: pobres, ricos, estudantes, executivos, advogados, comerciantes, padres, ladrões, gente que não tem nada e gente que acha que tem tudo. Forma-se uma grande roda à sua volta, aplaudem, assobiam e, quando ele passa o chapéu, deixam cair nele alguma coisa que não lhes faz falta.

O centro da cidade é uma loucura, a multidão se apodera das ruas, todos têm muita pressa e dinheiro a perder. Mas o nosso artista não. Ele continua no mesmo lugar, sereno, impassível, alheio a toda correria. Apenas dá conta de seu trabalho, automático, mecânico. Ninguém que passa por ali imagina como é seu rosto sob aquela pesada maquiagem. Tampouco conhecem seu nome, sua casa, sua família, sua história. É um estrangeiro.

Seu nome é Álvaro e mora no subúrbio, em um cortiço. Uma cozinha apertada, incômoda, e um quartinho abafado onde dormem ele, a mulher e uma filha pequena. Às vezes resolve não voltar para casa. Vai ao bar, lava o rosto e, assim que se reconhece no espelho, a cicatriz na testa - uma marca antiga de briga, em um dia que bebeu demais -, pede uma pinga e um maço de cigarros. Depois chama outra e outra e outra... Quando finalmente chega, a mulher compreende e o coloca pesadamente na cama. No dia seguinte, quando desperta, chora escondido, feito uma criança assustada, acuada por qualquer coisa de inefável, contra a qual é inútil lutar.

No tempo de sua meninice, queria ser galã de filmes. Enquanto os outros meninos estavam deslumbrados com os craques do futebol, ele sonhava em tornar-se um astro e beijar todas aquelas mulheres lindas e ter todo aquele dinheiro e poder fazer tanta coisa acontecer que era como se fosse o dono do mundo. Vivia nos "cines" ali do centro. Dinheiro não tinha, mas era amigo do bilheteiro e este lhe deixava entrar na surdina. Então ele ficava lá, quase o dia inteiro, assistindo aos mesmos filmes, sonhando os mesmos sonhos. O problema é que aí veio o tempo, a criança cresceu, e a realidade caiu de pau em cima dele. Tudo tão diferente do que tinha imaginado. Há dez anos que não entra em um cinema.

A realidade, de fato, é a maior de suas mazelas, pois todas as outras decorrem dela. É como um monstro, que com seus braços enormes abarca e fecha todos os caminhos. Uma prisão invencível, sem meios de fuga. Podia se matar, mas não possui paixão suficiente para ser um suicida. Portanto, paciente, apenas espera, existe, resiste.

Fitando o rosto de sua filhinha, ele pensa no futuro, mas não como uma coisa promissora. Não. Acha que para gente como ele e sua filha não existe solução e o porvir é o universo desabando sobre suas cabeças, esmagando as possibilidades que nunca tiveram. " O que será dela?" Esta dúvida é como um punhal atravessado em seu peito, rebentando uma dor sobre-humana, pungente, o gelo do aço trespassando a carne quente. Seu sangue, sua essência, escorrem perdidos, formando trilhas escuras, viscosas, desembocando no olhar da menina, que já começa a perder a inocência e, aos poucos, torna-se marmoreado, duro e frio como o do pai. Ele conhece a vida, conhece os homens, conhece o mundo. Não tem esperança.

A aurora o leva novamente para o centro da cidade, para o dever. A tinta já está impregnada na sua cara, e agora vai fazer mímica, fingir. Não se considera um bom fingidor. "Se fosse, seria artista de cinema". Há algo em seus olhos que a máscara não oculta. É um brilho fosco, que denuncia uma vida inteira despedaçada, miserável, humilhada, descrente de tudo. Mas nenhuma das pessoas que pululam na efervescência de todos os dias no centro da cidade sabe disso. Para essa gente toda ele é só um mímico, um artista de rua. E isso lhes basta.

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