A Garganta da Serpente
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Noite de Ressurreição

(Marco Domingues)

(Dedicado a Dennis D., um grande amigo e incentivador)

Um homem está caído, imóvel, em uma calçada de uma rua próxima ao centro da cidade. É uma fria noite de julho. O homem não passa de um mendigo e cheira mal, as pessoas passam por ele e fazem cara de desgosto, os sentido incomodados, como se fosse uma ofensa alguém morrer no meio da rua.

Alguém, descuidadamente liga para a polícia, que, sabendo de antemão do que se tratava, vem, sem pressa, recolher o corpo do homem. Recolheram o corpo sem cuidados e o levaram para o necrotério da cidade, onde o deixaram, sem nem mesmo a formalidade de um saco preto ou da geladeira, em cima de uma das mesas de autópsia, ao lado de outros, que tiveram a mesma infelicidade de morrer nesta noite. O tempo foi passando e nada do legista de plantão.

A temperatura mais amena da sala aqueceu, pouco a pouco, o corpo do homem. Por fim, ele sentou-se sobre a mesa de metal, abriu os olhos e deu uma olhada em volta, viu os instrumentos, os corpos sobre as outras mesas. Porém, estranhamente, não ouve nenhum tipo de espanto da parte do homem, ele sabia exatamente o que havia acontecido. Deu uma boa olhada para si mesmo, e disse: "Milagre, isto foi um milagre". Neste momento ele sentiu todo o poder que emana de um Cristo ressuscitado.

Sentiu também uma outra vontade mais imediata e também muito forte. Ele enfiou a mão no bolso, tateando, e dali foi retirando algumas bitucas de cigarro recolhidas pela rua mais cedo, foi apertando com os dedos e retirando todo o restinho de fumo delas, e o enrolou em uma das tiras de saco de papel que guardava consigo para este fim.

Acendeu e ficou ali fumando, tranquilo, enquanto pensava na vida. Sempre teve, de alguma forma, consciência de que era especial, sentia-se diferente, tinha certeza que era. Toda a pobreza e abandono não tinham sido em vão, sentiu que tinha recebido em compensação o pacote completo da santidade, sentiu que poderia fazer tudo, tudo que quisesse, até mesmo transformar água em vinho, tudo. Deu um grande trago em seu cigarro, sentido o prazer do ato: "Delícia, assim está muito melhor!" O gosto do fumo velho desaparecia.

"Já deve ter passado os três dias, tenho certeza..."

Quando, no passado, afirmou sua santidade, todos riam dele e diziam que era louco, que não falava nada com nada. Por fim, acabou na rua, sofrendo abstinências, sofrimentos e abandono. Mas tudo isso não passou de uma preparação, uma purificação. O que todos diriam agora quando vissem seus milagres?

O delicioso cigarrinho consumiu-se totalmente, estava livre. Desceu lentamente da maca, esticando as pernas. Acabou sendo atingido pelo silêncio do lugar. Ouvia-se apenas o tiquetaquear do relógio, e isto, acabou fazendo com que ele se sentisse terrivelmente só. Não havia ninguém para conversar, para contemplar sua nova condição, seus milagres. Acabou encontrando a solução:

"Por que não ressuscitar um destes aí? Eu posso".

Então, assim foi ele, caminhou até o mais próximo, olhou, examinou, mas não foi com a cara do sujeito, parecia um bandido. Andou até outro, que estava coberto, puxou o lençol, o rosto coberto de faixas ensanguentadas e disse para si mesmo:

"Não, o primeiro tem que ser mais simples... Tá difícil escolher, hein?"

Olhou para a última das mesas, um pobre mendigo, como ele, provavelmente vitimado pelo frio. Foi até o sujeito e o reconheceu, sentiu muita pena, lembrou-se de sua vida com uma lágrima. Seria esse o escolhido.

Inspirou profundamente, esfregou as mãos, sentia-se completamente imaculado e santo. Esticou os braços e tocou o corpo imóvel à sua frente, murmurou algumas palavras e repetiu os gestos três vezes. Esperou um pouco, e, por fim, abriu um dos olhos, para espiar, depois o outro, para ter certeza.

Nada, nem um mísero movimento. Olhou novamente ao seu redor, certificando-se que não havia ninguém. Não havia. Sentiu novamente todo o peso da realidade, sentiu a solidão, a loucura que voltava, junto com o gosto amargo impregnado em sua língua e que subia do fundo da garganta.

Sentiu o frio apertar novamente, e começou a chorar baixinho, soluçando, querendo morrer...

(18/08/2006)

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