(Dedicado a Dennis D., um grande amigo e incentivador)
Um homem está caído, imóvel, em uma calçada de
uma rua próxima ao centro da cidade. É uma fria noite de julho.
O homem não passa de um mendigo e cheira mal, as pessoas passam por ele
e fazem cara de desgosto, os sentido incomodados, como se fosse uma ofensa alguém
morrer no meio da rua.
Alguém, descuidadamente liga para a polícia, que, sabendo de antemão
do que se tratava, vem, sem pressa, recolher o corpo do homem. Recolheram o
corpo sem cuidados e o levaram para o necrotério da cidade, onde o deixaram,
sem nem mesmo a formalidade de um saco preto ou da geladeira, em cima de uma
das mesas de autópsia, ao lado de outros, que tiveram a mesma infelicidade
de morrer nesta noite. O tempo foi passando e nada do legista de plantão.
A temperatura mais amena da sala aqueceu, pouco a pouco, o corpo do homem. Por
fim, ele sentou-se sobre a mesa de metal, abriu os olhos e deu uma olhada em
volta, viu os instrumentos, os corpos sobre as outras mesas. Porém, estranhamente,
não ouve nenhum tipo de espanto da parte do homem, ele sabia exatamente
o que havia acontecido. Deu uma boa olhada para si mesmo, e disse: "Milagre,
isto foi um milagre". Neste momento ele sentiu todo o poder que emana de
um Cristo ressuscitado.
Sentiu também uma outra vontade mais imediata e também muito forte.
Ele enfiou a mão no bolso, tateando, e dali foi retirando algumas bitucas
de cigarro recolhidas pela rua mais cedo, foi apertando com os dedos e retirando
todo o restinho de fumo delas, e o enrolou em uma das tiras de saco de papel
que guardava consigo para este fim.
Acendeu e ficou ali fumando, tranquilo, enquanto pensava na vida. Sempre
teve, de alguma forma, consciência de que era especial, sentia-se diferente,
tinha certeza que era. Toda a pobreza e abandono não tinham sido em vão,
sentiu que tinha recebido em compensação o pacote completo da
santidade, sentiu que poderia fazer tudo, tudo que quisesse, até mesmo
transformar água em vinho, tudo. Deu um grande trago em seu cigarro,
sentido o prazer do ato: "Delícia, assim está muito melhor!"
O gosto do fumo velho desaparecia.
"Já deve ter passado os três dias, tenho certeza..."
Quando, no passado, afirmou sua santidade, todos riam dele e diziam que era
louco, que não falava nada com nada. Por fim, acabou na rua, sofrendo
abstinências, sofrimentos e abandono. Mas tudo isso não passou
de uma preparação, uma purificação. O que todos
diriam agora quando vissem seus milagres?
O delicioso cigarrinho consumiu-se totalmente, estava livre. Desceu lentamente
da maca, esticando as pernas. Acabou sendo atingido pelo silêncio do lugar.
Ouvia-se apenas o tiquetaquear do relógio, e isto, acabou fazendo com
que ele se sentisse terrivelmente só. Não havia ninguém
para conversar, para contemplar sua nova condição, seus milagres.
Acabou encontrando a solução:
"Por que não ressuscitar um destes aí? Eu posso".
Então, assim foi ele, caminhou até o mais próximo, olhou,
examinou, mas não foi com a cara do sujeito, parecia um bandido. Andou
até outro, que estava coberto, puxou o lençol, o rosto coberto
de faixas ensanguentadas e disse para si mesmo:
"Não, o primeiro tem que ser mais simples... Tá difícil
escolher, hein?"
Olhou para a última das mesas, um pobre mendigo, como ele, provavelmente
vitimado pelo frio. Foi até o sujeito e o reconheceu, sentiu muita pena,
lembrou-se de sua vida com uma lágrima. Seria esse o escolhido.
Inspirou profundamente, esfregou as mãos, sentia-se completamente imaculado
e santo. Esticou os braços e tocou o corpo imóvel à sua
frente, murmurou algumas palavras e repetiu os gestos três vezes. Esperou
um pouco, e, por fim, abriu um dos olhos, para espiar, depois o outro, para
ter certeza.
Nada, nem um mísero movimento. Olhou novamente ao seu redor, certificando-se
que não havia ninguém. Não havia. Sentiu novamente todo
o peso da realidade, sentiu a solidão, a loucura que voltava, junto com
o gosto amargo impregnado em sua língua e que subia do fundo da garganta.
Sentiu o frio apertar novamente, e começou a chorar baixinho, soluçando,
querendo morrer...
(18/08/2006)