A Garganta da Serpente
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Nono andar, número noventa e cinco

(Mauricio Duarte)

No caminho sinto os pingos da chuva fina me matando com rajadas violentas, que perpassam todo meu corpo. Entro no saguão do prédio com dor no estômago, que logo associo ao nervosismo que estou sentindo no momento. Aperto o botão do elevador e, quando ele chega, reparo que alguém estava fumando ali, pois o cheiro fétido da fumaça está impregnado no ar e no pequeno carpete avermelhado e gasto do piso. Olho no espelho defronte e lembro que ela também fuma, feito uma louca.

O elevador dá um tranco e estanca no terceiro andar. Entra um casal de idosos. Ele, careca, de sobrancelhas e lábios grossos, e um óculos de armação fina. Ela, cabelos brancos cacheados, rosto fino e pouco enrugado, considerando a idade que devia ter. Penso que poderia viver até a velhice com ela, se ela quisesse. Ela pode até querer, quem sabe? Mas acho difícil depois da briga que tivemos.

O casal desce no quinto andar. Deviam estar na casa de algum casal de vizinhos, deviam ser velhos amigos.

Torço para que chegue a tempo de pegá-la ainda no apartamento. Ela disse que passava aqui para apanhar suas coisas por volta das oito da noite. Olho no relógio e vejo que são quinze para às oito. Sinto um arrepio, pode ser tarde demais. Mas não tive como sair mais cedo do trabalho. Se eu encontrá-la hoje, nunca mais irei deixá-la ir embora da minha vida. Seremos como o casal de velhos, juntos até a morte e indo passar as noites de sexta- feira na casa de amigos.

Nunca uma viagem de nove andares de elevador demorou tanto. Não sei o que falar quando a vir, talvez não fale nada. Talvez, um olhar baste. Seis anos juntos vão pesar na hora da decisão, mas se for preciso, ajoelharei diante de seus pés e pedirei perdão por ter gritado e pedido que fosse embora. Isso foi há dois dias. Tentei falar com ela pelo telefone, mas ela não quis atender. Agora não tem jeito, vamos ficar cara a cara.

Olho novamente no espelho e vejo que estou completamente perdido e desesperado. E se ela não vier? Como vai ser? Vou viver assim, à toa? Não, ela virá. Estou vestindo a camisa que ela me deu no nosso quarto aniversário. Ela adora que eu a use. Vou lhe dizer que se quiser, não a tiro nunca mais. O elevador pára de novo e a porta se abre. É o nono andar.

Saio no corredor e está um silêncio de morte. O som dos meus sapatos contra o chão é maior do que todas as coisas agora. Chego na porta do nosso apartamento, número noventa e cinco, apanho o chaveiro no bolso da calça com as mãos trêmulas, mas hesito. Com as chaves em punho, não consigo abrir a porta. Se ela não estiver aqui é provável que eu nunca mais torne a vê-la. É provável que minha vida acabe.

Respiro tão fundo que é como se estivesse virando minhas entranhas do avesso. Tomo coragem e abro a porta. Entro numa sensação mista de afobação, pânico e entusiasmo. Olho em todos os cômodos do apartamento e nada.

Quando chego em nosso quarto, vejo um bilhete em cima da cama e percebo que agora aquele é só meu quarto, e não mais nosso. O bilhete diz que ela passou por aqui mais cedo e a esta hora já deve estar a caminho da casa de sua mãe em Minas Gerais, e que não deixou endereço porque não quer que eu a procure nunca mais.

Agora, o que resta de mim é esta figura medonha, esse estúpido sacolejar das mãos pensas e vazias. O bilhete está largado no chão. E eu, vou à janela, vejo um bando de pássaros que voam no céu, e penso que poderia ser um deles.

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