Jamais vou me esquecer daquele 30 de setembro de 1935, em Lisboa. O céu
era de um azul claríssimo, quase sem nuvens, parecia mais infinito do
que o de todos os dias. Não havia pregado os olhos na noite anterior,
só pensando na tarefa a mim designada. Entrevistar Fernando Pessoa, quanta
responsabilidade. Apesar de não ser conhecido do grande público,
o poeta já era considerado um gênio por muitos nos meios intelectuais
e literários. E fui incumbido de falar com esse homem.
Já havia lido, apesar de serem poucas, as publicações de
Pessoa feitas até então, bem como as revistas nas quais ele teve
fundamental participação, como, por exemplo, a revolucionária
Orpheu, mas não o conhecia pessoalmente. Só uma vez o havia visto,
a uma distância considerável, na Baixa lisboeta. Sabia que a literatura
não havia lhe garantido condições financeiras razoáveis,
era pobre e trabalhava como empregado de escritório. Sabia também
que ele tinha intenções de publicar, ainda antes de outubro deste
mesmo ano, seu primeiro grande livro - façanha que nunca chegou a realizar
em vida. Eram boas coisas para se abordar na entrevista. O encontro estava marcado
às nove horas da manhã no café Martinho da Arcada, tão
ao gosto do poeta.
Enquanto seguia andando para o café, um turbilhão de pensamentos
passava pela minha cabeça. Não sabia como iria reagir quando visse
Fernando Pessoa, pois eu já o admirava profundamente, e isso poderia
prejudicar a qualidade do meu trabalho. Dentro de pouco tempo, ele estaria na
minha frente, à minha inteira disposição, poderia fazer-lhe
qualquer pergunta, saber de muitas coisas que me interessavam. Não podia,
de maneira nenhuma, deixar a situação intimidar-me ou ser levado
pela emoção.
Quando estava a uma distância de uns cem metros do meu destino, senti
o coração bater aceleradamente, parecia galopar. Como iria entrevistar
o homem que escreveu Mensagem, O Guardador de Rebanhos e tantas outras coisas
fabulosas? Perto dele pareceria uma criança de doze anos que faz sonetos
para impressionar as meninas.
Cheguei à porta do café e sentia as pernas bambas e as mãos
trêmulas. Entrei e vi que ele já estava sentado em uma mesa ao
fundo. Então, subitamente, fiquei calmo quando fitei o poeta. Era um
homem franzino, baixo, de uma presença física tímida, quase
ausente. Vestia, como de costume, um sobretudo, chapéu, gravata ao pescoço
e os óculos redondos e pequenos. Concentrado na leitura do jornal, nem
se deu conta de que eu o observava, e aproveitei para fazê-lo mais um
tempo.
Naquela hora entendi que aquele homem, embora pequeno, possuía uma alma
tão imensa que uma só pessoa não podia suportar. Por isso
foi preciso que se dividisse em diversos heterônimos, para que ela conseguisse
se assentar, mas nunca em paz, sempre em constante desassossego.
Aproximei-me da mesa e o chamei. Ele levantou-se e, em um gesto simpático,
adiantou-se em me cumprimentar. Apertei a mão do poeta e sentamos. Ele
ordenou ao garçom que lhe trouxesse um café e perguntou se eu
também queria. Aceitei. Ficamos os dois em completo silêncio, até
ele esvaziar por completo a xícara.
Então, com um ar compenetrado, perguntou-me:
Compreende?
Sim, respondi convicto.
Fernando Pessoa levantou-se, despediu-se e foi embora. Tinha estado ali, na
minha frente, e eu não havia feito nem uma pergunta sequer a ele. E,
curiosamente, sabia que aquela havia sido a melhor entrevista de toda a minha
vida, a mais completa, a que mais me ensinou. O poeta faleceu exatamente dois
meses após esse dia.
Quanto a matéria que eu teria de escrever, expliquei o que havia acontecido
ao meu editor e sua primeira reação foi de frustração,
mas depois, assim como eu, entendeu tudo. Todas as respostas que eu procurava
daquele homem estavam respondidas em sua obra. Tudo o que ele tinha para dizer
já estava escrito.