A Garganta da Serpente
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Um conto de fadas diferente: "O rei triste"

(Maristel Dias Santos)

I

Era uma vez um rei muito bondoso e muito, muito rico, como devem ser todos os reis. Ele governava um grande país que ficava pra lá do fim do mundo. Era bondoso, era rico, mas era também um rei triste. Nunca ninguém jamais ouvira o som de uma risada saída daqueles lábios reais. Às vezes um leve sorriso. Um sorriso triste. Era bondoso, rico, triste e jovem. Jovem e muito bonito. Tinha longos cabelos levemente encaracolados nas pontas e uma barba curta e bem cuidada, de uma cor pouco mais escura que os cabelos, os quais trazia sempre presos à nuca por uma fivela entalhada em osso de dragão. Dragão, sim, por que não? Você já viu histórias de rei sem dragão? Na verdade foi esse mesmo dragão que o rei, seu pai, quando o nosso rei triste era apenas um príncipe, decidiu enfrentar. Matou o dragão que ameaçava seu reino, mas ficou tão ferido que logo após veio a falecer. Foi quando o príncipe virou rei, um rei triste. Já era triste quando era príncipe. Acho até que já nasceu triste, porque nem chegou a conhecer sua mãe, a rainha que morreu ao dá-lo à luz. Diziam que era a mulher mais bela de todos os reinos e além da tristeza deixou também para o filho a beleza de seus cabelos dourados e de seus profundos e tristes olhos escuros, tão escuros quanto a sua tristeza. Foi assim que ficou órfão de mãe e de pai o nosso querido príncipe que virou rei. Um rei jovem, bonito, bondoso, rico e triste.

De vez em quando seus conselheiros, ministros e secretários, que gostariam de ter um rei alegre, vinham lhe dizer que o que ele precisava era achar uma linda princesa, casar-se e tornar-se um rei feliz. Era a solidão que o impedia de ser feliz. Alguém falou outro dia mesmo: "O poder é solitário". O rei tinha lá suas dúvidas. Vivia despachando de seu castelo pretendentes graciosas, ricas representantes de ricos países que vinham lhe oferecendo tudo de tudo. Ele as tratava gentilmente e as dispensava cordialmente. Logo cansou-se das festas e das badalações e ordenou que seus ministros parassem com essa coisa que viviam lhe impingindo e passou a fazer longos passeios pela floresta. Claro que havia uma boa floresta, como em todas as histórias de reis, de fadas e de bruxas, não é? Levava sempre consigo seu amigo mais fiel, uma belo cão de guarda cujo nome era Fidalgo. Num desses passeios, em certa tarde de outono, quando as folhas das árvores ficam douradas e caem forrando as trilhas da floresta com macio e estalante tapete colorido, o cão Fidalgo assustou-se com algum pássaro e saiu como louco em sua perseguição. O rei triste, com medo que ele se perdesse naquele intrincado mundo de árvores altíssimas, correu em seu encalço, chamando-o angustiado. Quanto mais o rei corria, mais iam-se distanciando os furiosos latidos de Fidalgo. Afinal, encontrou-o sentado à beira de um imenso charco, acompanhando com olhar fixo os voos circulares do pássaro que sobrevoava o pântano como se desafiasse o inquieto animal a prosseguir sua perseguição feroz. O pântano estava velado por espessa neblina que parecia também esvoaçar sobre a sua superfície, algumas vezes subindo, permitindo a visão e logo após descendo cerrada, de modo a escondê-lo completamente. Era um local assustador e um tanto fantasmagórico que Fidalgo jamais se atreveria invadir e o pássaro continuava a exibir-se em voos rasantes ou subindo às alturas e parecia comandar o movimento da cinzenta neblina, ao mesmo tempo em que desafiava a coragem do cão. O rei quedou-se ao seu lado admirando o espetáculo e num daqueles momentos em que o pássaro elevava-se levando consigo a forte neblina, o rei pode ver, bem no meio do charco, uma belíssima flor branca que tremulava e se agitava como se quisesse fazer-se notar, ou talvez aquela agitação significasse um pedido de socorro: que a tirassem dali, do meio daquele lodo negro, antes que sua imaculada brancura ficasse prejudicada por aquelas águas pútridas. O rei não podia entender a existência de uma flor tão bela e fresca quando o outono já ia bem adiantado e fazia secar toda e qualquer vegetação da mata. Encantou-se o olhar do rei triste e seu bondoso coração sentiu-se constrangido e corajosamente invadiu o charco, enterrando suas reais pernas na lama fétida e pegajosa que já estava a lhe atingir os ombros quando suas mãos se aproximaram do caule da flor, para afoitamente arrancá-la do lodo negro. Nesse instante, um grito de medo cortou os ares : "- Aaaaiiii! Por favor, não me arranque pelo caule, pois irei arrebentar-me e certamente morrerei..." O rei, assustado, olhou em torno de si. De onde vinha aquela voz meiga e soluçante? Estaria ficando louco ou sofrendo alucinações causadas por gazes emanados pela putrefação de matéria orgânica, misturada à lama apodrecida? Teria partido da bela flor tais palavras?

Da margem, Fidalgo temendo pela segurança de seu rei, latia furiosamente, correndo de um lado para o outro, sem, porém atrever-se a penetrar nas águas lamacentas do charco.

- "Quem enunciou tais palavras? Teria sido você, bela e branca flor, ou estarei sofrendo efeito dos gazes produzidos pela decomposição de animais e vegetais deste terrível pântano, provocando delírios em minha mente real?"

- "Não, não, meu rei. Fui eu mesma que falei. Esta pobre e infeliz flor que tanto tem a lhe contar. Por favor, leve-me daqui e tudo lhe direi. No entanto é preciso que procure retirar o vaso de ouro onde meus pés, isto é, minhas raízes encontram-se enterradas, mas... espere. O vaso é guardado por muitas e muitas serpentes possuidoras de mortal veneno e se picarem seus reais braços ou suas reais mãos, com certeza provocarão morte instantânea".

- "Mas, então, como livrá-la desse triste destino, minha bela e perfumada flor? O que devo fazer?"

- "Retorne à margem. Procure entre as árvores da floresta uma sengazeira. Dela colherás três frutos. Os sengás são frutos dourados, ocos e transparentes como se de cristais opalinos fossem feitos. Deve quebrá-los cuidadosamente e deles beber todo o líquido amargo e ardente que neles está contido. Esse líquido é o antídoto que lhe dará imunidade à peçonha desses répteis imundos."

Sem pestanejar o amável rei correu de volta à margem para gáudio e alívio de seu fiel cão.

II

Bem, o rei conseguiu salvar a flor e o vaso de ouro. No palácio, em seus aposentos, ficava a admirar a bela flor e acabou perdidamente apaixonado, porém a linda jovem transformada em flor pelo feitiço da bruxa não podia revelar o segredo que a desencantaria. O rei pensava e pensava e nada dizia a flor que lhe indicasse o que fazer para ver a branca flor transformada em linda princesa e poder tomá-la como esposa.

Agora ....por que teria a bruxa transformado a moça em flor?

III

(Eu imagino que a bruxa fez o feitiço porque era uma atriz frustrada e odiava a jovem princesa que andava fazendo sucesso entre as troupes circulantes do reino e pelo palácio, quando por ali passavam, além de ser uma princesa rebelde que desafiava o rei, seu pai, Ele que morria de vergonha ao ver sua linda filha e princesa às voltas com atores e atrizes, miseráveis vagabundos dos circos e faziam a felicidade de seus súditos pobres e tolos. )

IV

O jovem rei, desesperado, vendo que dia após dia sua linda flor dava sinais de ir-se emurchecendo, tomou o vaso de ouro em seus braços e chorou, chorou copiosamente.Foi quando... Eureca! Era de uma lágrima real que a flor precisava receber em suas pétalas de neve para desencantar-se. Não mais que de repente, era uma lindíssima jovem que o rei triste, já então alegríssimo, teve nos braços.

Só sei que o rei triste deixou de ser triste! Renunciou ao seu reino que deixou por conta das baratas e baratos, claro! Descobriu que era triste porque havia estado no lugar errado, entre pessoas erradas e resolveu correr mundo com sua linda princesa.

V

Daí então?

O rei triste descobriu que a felicidade não era resultado do poder e do luxo. Descobriu que feliz é o homem quando aprende que para ser feliz necessário se faz encontrar, na trajetória da vida, amigos semelhantes, afinidades nos sonhos e no trabalho e esse trabalho era a missão de levar alegria aos que fossem tristes como ele foi.

Encontrou em sua flor encantada o verdadeiro motivo de viver e foram felizes por muitos e muitos anos, por todo o tempo em que puderam se abastecer da alegria que partia dos aplausos do seu povo e se multiplicavam em suas almas...

FIM

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