Eu nunca me sinto inteiramente pronta de manhã.
Não me refiro ao cabelo despenteado e à aparente cancha de alguém
mal dormido e forçosamente removido de um estado de torpor. Eu falo de
que nunca há tempo para a gente se montar de manhã. Pernas, tronco
e cabeça. Estarão em ordem? E quem sou eu mesmo? Eu sou Fulana
de Tal-eu-sou-Fulana-de-Tal-eu-sou-Fulana-de-Tal...Com certeza, eu sou Fulana-de...o
quê mesmo? Eu sou Fulana de Tal, eu faço isso e não aquilo,
eu amo este e não o outro. Fico repetindo isso a cada manhã mas
não adianta, sempre sou pega de surpresa por uma ideia, um pensamento
destoante e um curto-circuito matinal é frequentemente inevitável.
Porque eu passo parte do dia sendo um eu mesma muito mal ajambrado. Como é
difícil a gente acordar de manhã despida e apenas ser, brilhante
e indubitavelmente o que já somos - desde muito antes de ontem.
Uma outra coisa que me assola a cachola é se é preciso mais de
um para alguém existir. Da seguinte maneira: se ninguém desejou
que eu existisse - euzinha, sem tirar nem por do jeitinho que eu sou- e se ninguém
é testemunha da minha existência, será que eu existirei?
Se ninguém, nenhum um ser outro jamais imaginou que fosse possível
haver no mundo alguém como eu, eu posso inventar eu mesma? É permitido
a gente se inventar tão completamente? É possível existir
o real sem ter sido precedido pelo imaginário? Se alguém não
me acalentou na imaginação é possível eu me existir
sozinha? Se ninguém me desejou eu posso viver sem álibis? E enquanto
não tenho esta resposta vou levando sem saber se estou muito depois de
burlar a regra regulamentar do jogo.
Tudo isso parece muito pouco natural. Porque ando por aí e acho que todo
mundo já se amanheceu muito direitinho, certeirinho e cheirosinho. E
não posso evitar de suspeitar que aquele sujeito ali foi sonhado sem-tirar-nem-por.
Tudo que ele é, a meia que combina com o cinto, a marca de cigarro e
o lado para o qual ele ajeita o cabelo:o tim-tim-por-tim-tim dessa pessoa foi
sonhado antes de este fulano existir.Um planejamento ricamente detalhado precedeu
a existência deste ser. Isto explica a razão de alguém se
sentir tão confortável na própria pele. Explica também
como os outros podem parecer tão senhores de si. Como se ser fosse assim,
bem óbvio. Como se fosse assim, bem leve, como uma pluma que vai flanando
e caí direitinha, tudo conforme deve ser. Mas isto são os outros
outros, claro, porque há os outros que são como nós mesmos.
Agora mesmo estas palavras me saem com tanta dificuldade... que já é
difícil o processo diário de montagem-autoautoral-do-ser-que-eu-mesma-sou,
imaginem que labuta que não é eu estar aqui a espremer estas palavras
meio descritivas e meio que também autoautorais-do processo-de ser-eu-mesma.
Agora me ocorre perguntar se alguém já fez isso antes. Porque
se não, lá vou eu de novo inventar o que não foi previamente
sonhado, desejado e ternamente acalentado. E isso a gente só faz com
machadadas. Machados que rompem a dureza do nada que estava aí antes.
E eu não sei dizer exatamente se elas vão por dentro ou por fora.
Mas não penso que isso é inútil. E como poderia ser? Aqui
já vai se tecendo o imaginado. Aqui vou tramando um sapatinho de tricô
de existir enquanto acalento a ousadia de apenas ser, um ser que seja bem simples
assim. Será que alguém, se existisse alguém que pudesse,
se alguém me sonhasse do jeitinho que eu sou, teria me imaginado com
amor? E se alguém me tivesse imaginado minuciosamente com amor, estaria
ao meu lado? E assim, seria leve, seria boa, seria doce a sensação
de existir com legitimidade? Sim, pois que às vezes penso que melhor
é ter autoridade para nascer com descrença, que nem robusta flor
na junção de rochas intempéries.Não disse antes,
mas perguntar assim me dá muito medo e é compreensível
que nunca se pergunte. Acho que a maioria não foi minuciosamente sonhada
e prefere a dor do não saber ao certo. Do que uma pergunta assim tão
drástica a esta altura. O que eu creio, porém, é que para
alguns não há escolha. Vai se caminhando por canaletas cada vez
mais finas. E depois? Depois é o inefável e nem lá saberemos.