A Garganta da Serpente
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Memorial de autoinvenção

(Maura Estrela)

Eu nunca me sinto inteiramente pronta de manhã.

Não me refiro ao cabelo despenteado e à aparente cancha de alguém mal dormido e forçosamente removido de um estado de torpor. Eu falo de que nunca há tempo para a gente se montar de manhã. Pernas, tronco e cabeça. Estarão em ordem? E quem sou eu mesmo? Eu sou Fulana de Tal-eu-sou-Fulana-de-Tal-eu-sou-Fulana-de-Tal...Com certeza, eu sou Fulana-de...o quê mesmo? Eu sou Fulana de Tal, eu faço isso e não aquilo, eu amo este e não o outro. Fico repetindo isso a cada manhã mas não adianta, sempre sou pega de surpresa por uma ideia, um pensamento destoante e um curto-circuito matinal é frequentemente inevitável. Porque eu passo parte do dia sendo um eu mesma muito mal ajambrado. Como é difícil a gente acordar de manhã despida e apenas ser, brilhante e indubitavelmente o que já somos - desde muito antes de ontem.

Uma outra coisa que me assola a cachola é se é preciso mais de um para alguém existir. Da seguinte maneira: se ninguém desejou que eu existisse - euzinha, sem tirar nem por do jeitinho que eu sou- e se ninguém é testemunha da minha existência, será que eu existirei? Se ninguém, nenhum um ser outro jamais imaginou que fosse possível haver no mundo alguém como eu, eu posso inventar eu mesma? É permitido a gente se inventar tão completamente? É possível existir o real sem ter sido precedido pelo imaginário? Se alguém não me acalentou na imaginação é possível eu me existir sozinha? Se ninguém me desejou eu posso viver sem álibis? E enquanto não tenho esta resposta vou levando sem saber se estou muito depois de burlar a regra regulamentar do jogo.

Tudo isso parece muito pouco natural. Porque ando por aí e acho que todo mundo já se amanheceu muito direitinho, certeirinho e cheirosinho. E não posso evitar de suspeitar que aquele sujeito ali foi sonhado sem-tirar-nem-por. Tudo que ele é, a meia que combina com o cinto, a marca de cigarro e o lado para o qual ele ajeita o cabelo:o tim-tim-por-tim-tim dessa pessoa foi sonhado antes de este fulano existir.Um planejamento ricamente detalhado precedeu a existência deste ser. Isto explica a razão de alguém se sentir tão confortável na própria pele. Explica também como os outros podem parecer tão senhores de si. Como se ser fosse assim, bem óbvio. Como se fosse assim, bem leve, como uma pluma que vai flanando e caí direitinha, tudo conforme deve ser. Mas isto são os outros outros, claro, porque há os outros que são como nós mesmos.

Agora mesmo estas palavras me saem com tanta dificuldade... que já é difícil o processo diário de montagem-autoautoral-do-ser-que-eu-mesma-sou, imaginem que labuta que não é eu estar aqui a espremer estas palavras meio descritivas e meio que também autoautorais-do processo-de ser-eu-mesma. Agora me ocorre perguntar se alguém já fez isso antes. Porque se não, lá vou eu de novo inventar o que não foi previamente sonhado, desejado e ternamente acalentado. E isso a gente só faz com machadadas. Machados que rompem a dureza do nada que estava aí antes. E eu não sei dizer exatamente se elas vão por dentro ou por fora.

Mas não penso que isso é inútil. E como poderia ser? Aqui já vai se tecendo o imaginado. Aqui vou tramando um sapatinho de tricô de existir enquanto acalento a ousadia de apenas ser, um ser que seja bem simples assim. Será que alguém, se existisse alguém que pudesse, se alguém me sonhasse do jeitinho que eu sou, teria me imaginado com amor? E se alguém me tivesse imaginado minuciosamente com amor, estaria ao meu lado? E assim, seria leve, seria boa, seria doce a sensação de existir com legitimidade? Sim, pois que às vezes penso que melhor é ter autoridade para nascer com descrença, que nem robusta flor na junção de rochas intempéries.Não disse antes, mas perguntar assim me dá muito medo e é compreensível que nunca se pergunte. Acho que a maioria não foi minuciosamente sonhada e prefere a dor do não saber ao certo. Do que uma pergunta assim tão drástica a esta altura. O que eu creio, porém, é que para alguns não há escolha. Vai se caminhando por canaletas cada vez mais finas. E depois? Depois é o inefável e nem lá saberemos.

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