Não se sabe como a briga começou, o fato é que, sem aviso,
o sujeito sacou de uma faca e enfiou fundo na barriga de Aparício que,
meio bêbado, não teve tempo nem de se defender. Gritos, desespero
e enquanto isso, o sujeito foi saindo de fininho.
O boato que chegou aos meus ouvidos é que Aparício, em decorrência
desta facada, havia morrido. Fiquei triste, Aparício, além de
ter o mesmo nome que eu, havia sido meu amigo de copo durante anos. Era um desses
caras que a gente se sente bem ao lado. Engraçado, bonachão, enfim,
um excelente camarada. Por termos o mesmo nome, onde me encontrava me chamava
de "xará". Ficávamos horas rodando os botequins até
o dia amanhecer numa boêmia maravilhosa. Culpei-me muito por, justo no
dia em que ele levou a facada, não estar presente para ajudá-lo
ou até impedir a tragédia.
Por causa da notícia da morte do meu grande amigo resolvi me afastar
do bairro por uns tempos, para esquecer o incidente. Cada botequim que eu entrava
tinha a "marca" de Aparício, ficava triste e saudoso de meu
companheiro e "xará".
Pois bem, fiquei longe de Cascadura por uns exatos dois meses. Evitava sequer
passar pela localidade e encontrar outros companheiros, detestaria encontrá-los
e ter que ouvir lembranças do amigo morto. Queria lembrar dele sempre
assim: com seu pandeiro do lado, suas calças brancas largas e aquele
sorriso maroto que encantava as crioulas.
Dois meses passados, fui voltando a circular a circular pelos botecos do bairro.
Encontra um amigo aqui, bebe umas cervejas ali e estranhei o fato, apesar de
não querer, que ninguém falasse do falecido. Aquilo também
era um abuso, Aparício era uma figura que deveria ser lembrado, aliás,
estranhei mais ainda não haver comentários nem do enterro, que
diga-se de passagem, deveria ter sido digno de um rei, de um nobre. Andei a
madrugada inteira pelos bares, botecos, prostíbulos, porta de barraca
e nada de se falar no sujeito.
Lá pelas quatro da matina, arrumei uma mulata que só de se tocar
nela provocava um delírio. Fui levando-a até a subida do morro
onde ela morava, detalhe: sozinha. Fomos subindo num amasso só. Pega
dali, segura daqui e ia eu imaginando atos libidinosos para quando chegasse
no barraco da fulana, quando ouvi, vindo de longe, o som de um pandeiro. Estaquei,
parecia ser o mesmo jeito, a mesma malemolência na qual meu finado amigo
batia em seu instrumento. Foi quando, no meio da subida, meu coração
deu um pulo, quase saindo pela boca. Lá vinha vindo Aparício,
descendo o morro com seu gingado característico e quando me viu gritou,
como nos velhos tempos:
- Fala, meu "xará" !!
Não pensei duas vezes: larguei a mulata e corri morro abaixo feito um
desesperado. Aparício desatou a correr também atrás de
mim e eu gritava sem parar de correr e sem olhar para trás:
- Volta de onde você veio, sua alma penada !!
- Pára ai, "xará" ! Me dá um abraço !
- Abraço que nada, sai pra lá, alma penada.
Nesse dia, acho que corri feito um coelho fugindo do cão. Fui parar na
estação de Madureira e quando não aguentei mais e
vendo que Aparício não parava de correr atrás de mim, resolvi
enfrentá-lo. Quase colocando os bofes pra fora, fui logo partindo para
a ignorância:
- Olha aqui, Aparício, não te fiz nada, sempre fui teu amigo,
como é que tu vo9lta do além pra me dar um susto destes ? Volta
para teu lugar, te esconjuro !!
Aparício, também sem fôlego, olhou-me por uns instantes
e de repente desatou a rir de mim:
- Tá maluco, "xará" ! Tu tá pensando que eu sou
alma do outro mundo? Não tô morto, tô vivo.
- Ué, falaram que tu tinha morrido...
- Morri nada- levantando a camisa- Fiquei com uma cicatriz feia pra cachorro
mas tô vivo, dá cá um abraço !
Aparício me abraçou e eu meio desconfiado fiquei ali agarrado
a ele sentindo sua respiração. Quando constatei, de verdade, que
ele tava vivo, quase fui às lágrimas. Afinal o meu amigo, meu
"xará", estava vivo. Isso precisava ser comemorado. Fomos pra
birosca do seu Joaquim e, na dúvida, fiquei com ele até o meio-dia,
que se ele fosse alma penada, não suportaria tanto tempo assim na terra,
não é?