A boca vermelha, sem expressão nenhuma, apenas um rasgo na face, duas
carnes polpudas, sem riso, sem cinismo, estáticas. Os olhos fixos num
ponto distante, os braços ao lado do corpo, a bolsa a tiracolo, um vestido
colado , estava ali e não estava. Talvez sua cabeça estivesse
em algum lugar só seu, que não era vendido, trocado ou doado,
um lugar que lhe pertencia eternamente.
Girou a cabeça em direção aos faróis que se aproximavam,
um carro grande, caro, luxuoso. A porta do carona se abriu e ela entrou, a mágica
se fez, os lábios sorriram um sorriso esplêndido, sedutor. O homem
ao volante lhe beijou o pescoço com avidez, ela gemeu doce, oferecida.
As casas, as luzes, os prédios, as árvores, as pessoas, passavam
ligeiras, translúcidas, opacas, rápidas, era assim que era sua
vida: uma janela de um veículo em movimento em que tudo passava, sem
ser tocado, sem ser olhado, apenas visto.
A mão em sua coxa, o sorriso de volta, as carícias, os sussurros,
ela e o homem, parados em um banco de carro mas pela lei da física, em
movimento, a vida era assim, o que parece ser talvez não fosse, o que
estava ali talvez não estivesse. Fulgás, etéreo, sem forma.
As sombras no quarto de hotel em movimentos confusos, frenéticos, as
mãos do homem, a boca dele em sua boca, seus seios, suas costas, gemidos
certos em horas certas, gritinhos certos em horas incertas, palavras montadas,
feitas, ensaiadas mas que pareciam reais. A água do chuveiro a espuma
do sabonete, o cheiro vazio do sabonete de hotel. Flagrou-se no espelho, o olhar
vazio, frio, a boca morta, tapou o espelho com a toalha, pronto, sem reflexo,
sem forma.
Os dedos contavam o dinheiro, somava, debitava. Logo seria outro dia, outra
hora, outro carro, outras imagens.
Desceu do ônibus na esquina de casa, os cabelos soltos, a boca sem batom,
uma calça jeans comum, uma blusinha discreta. O corpo perfeito, os homens
"babando" a sua passagem, ela sem olhar para os lados, subiu a rua
séria, quieta. Abriu o portão e o cachorro latiu com carinho para
ela, fez festa, balançou o rabo, ela o acariciou e entrou em casa. A
mãe e o pai viam TV, olhou-os, a emoção de vê-los
ali, serenos, doces. O pai lhe sorriu e a mãe apressou-se a ir ter com
ela.
- Toma mãe, estendendo um envelope, taí, o meu patrão me
pagou hoje, acho que dá para as compras, as contas eu vou pagar amanhã.
- Muito trabalho no escritório filha ? A mãe já de posse
do envelope lhe perguntava séria.
- Um pouco mãe, um pouco...vou tomar banho...estou me sentindo imunda.
No banheiro, tirando as roupas lentamente deixou-se ficar pôr alguns segundos
se olhando no espelho, duas pequenas lágrimas lhe caíram das faces,
aquela era sua imagem, a real.