Que derramava sobre o violão de cordas antigas
Dizia-se triste naquele dia: "Sinto como se uma lâmina fina como
náilon cortasse meu coração aos poucos". Sutil e rígida.
Dessa forma se referia a mulher inspiradora das lágrimas que escorriam
dos olhos enquanto lastimava ao amigo. O rosto salgado e quente, de onde saltava
olhar tão profundo quanto as olheiras, já fora um rosto doce e
radiante.
A mulher que hoje inspirava lágrimas, há dias inspirava canções
a saudar o amor. A torção dos sentimentos o fez derramar o líquido
dessaborado sobre o violão de cordas antigas. Agora quando haviam canções
elas já não eram a trilha sonora de beijos apaixonados, abraços
fortes ou olhares refletidos nos olhares. Tocavam à plateia das
lembranças, meramente.
Na primeira fila, ouvia a marcha fúnebre da ilusão a aventura
da primeira vez em que se viram. Numa esquina daquela rua onde ele sempre passava.
Aventura porque as mãos dela entrelaçadas às do antigo
- mas, desconfiava ele, atual novamente - namorado, não impediram que
ele a olhasse da forma precisamente oposta à que olhara a horas, na despedida.
O olhar da despedida não brilhava, captava na sua cor escura o peso da
desilusão e da dor. E a cada acorde novo, mal dissonado, mais enchia-se
a plateia da reminiscência. "Daquela esquina brotaram sorrisos,
mas também tristeza". Nada o podia consolar, tampouco o amigo com
quem sempre pudera contar. A verdade, leitores, é que amigos podem nos
oferecer o lenço da compreensão pelo conforto da amizade, mas
não são capazes de trazer de volta à vida o que morreu
por dentro se o que morreu por dentro foi-se deixando espaço vazio.
Começara a morrer em pequenas brigas, isoladas, cotidianas irrelevantes.
Como no domingo em que ele não quis ir à casa da sogra. Sogra,
sim, mas mãe da esposa também - a impressão sobrevivente
é a de que ele estava errado realmente. Desde então, por menos
crível que possa parecer, destoavam as canções, bem como
os beijos, os abraços e os olhares. E que união sobreviveria aos
insultos frequentemente lançados nas brigas entre o domingo e aquele
momento a qualificar atos do outro?
Os vizinhos, ouvintes de tudo - ou quase tudo - , questionavam-se assim. Respondo
eu mesmo, que sei de muitos casos onde o amor sobrepôs-se às ofensas:
uma união selada por esse sentimento tão sutil e rígido
quanto o náilon cortante. Mas devo acrescentar que nenhum matrimônio
resistiria ao espectro ora cenário das brigas. Pois uma coisa é
uma ofensa aqui, uma lá, terminado, na maioria das vezes, nos elogios
mútuos sobre a cama. Outra coisa é a mulher virar as costas enquanto
o marido lhe dirige a palavra.
E isso ela dera de fazer ultimamente. Justificava o extremo do ato argumentando
que o homem com quem casara-se já não falava com a devida coerência
nos altos tons das discussões. E ele, que ela já não agia
com o devido respeito nesses momentos. O que não compreendiam é
que o amor assim como não costuma enxergar defeitos plenamente, não
costuma entender certos atos do/a amado/a.
O amigo, enfim, apelava para o tempo: "Um dia sepultara-se o que morreu
por dentro". Mas a trilha cada vez mais triste tocava o desafino à
lembrança da última vez em que a vira, de costas, da porta da
sala afora. O amor quando é náilon cortante, talvez resista aos
desafios, cortando-os ao meio: sutil no beijo doce, rígido na união
inabalável. O problema é quando a mulher é que é
o náilon cortante: sutil na ironia do descobrir do finito, rígida
na decisão de abandonar o infinito.
As lágrimas dele, portanto, tentavam regar o espaço vazio no peito
- se sementes haviam nele saberemos no tempo em que devam crescer.