A Garganta da Serpente

Márcio Ferrazzo

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Considerações sobre as lágrimas dele

(Márcio Ferrazzo)

Que derramava sobre o violão de cordas antigas

Dizia-se triste naquele dia: "Sinto como se uma lâmina fina como náilon cortasse meu coração aos poucos". Sutil e rígida. Dessa forma se referia a mulher inspiradora das lágrimas que escorriam dos olhos enquanto lastimava ao amigo. O rosto salgado e quente, de onde saltava olhar tão profundo quanto as olheiras, já fora um rosto doce e radiante.

A mulher que hoje inspirava lágrimas, há dias inspirava canções a saudar o amor. A torção dos sentimentos o fez derramar o líquido dessaborado sobre o violão de cordas antigas. Agora quando haviam canções elas já não eram a trilha sonora de beijos apaixonados, abraços fortes ou olhares refletidos nos olhares. Tocavam à plateia das lembranças, meramente.

Na primeira fila, ouvia a marcha fúnebre da ilusão a aventura da primeira vez em que se viram. Numa esquina daquela rua onde ele sempre passava. Aventura porque as mãos dela entrelaçadas às do antigo - mas, desconfiava ele, atual novamente - namorado, não impediram que ele a olhasse da forma precisamente oposta à que olhara a horas, na despedida.

O olhar da despedida não brilhava, captava na sua cor escura o peso da desilusão e da dor. E a cada acorde novo, mal dissonado, mais enchia-se a plateia da reminiscência. "Daquela esquina brotaram sorrisos, mas também tristeza". Nada o podia consolar, tampouco o amigo com quem sempre pudera contar. A verdade, leitores, é que amigos podem nos oferecer o lenço da compreensão pelo conforto da amizade, mas não são capazes de trazer de volta à vida o que morreu por dentro se o que morreu por dentro foi-se deixando espaço vazio.

Começara a morrer em pequenas brigas, isoladas, cotidianas irrelevantes. Como no domingo em que ele não quis ir à casa da sogra. Sogra, sim, mas mãe da esposa também - a impressão sobrevivente é a de que ele estava errado realmente. Desde então, por menos crível que possa parecer, destoavam as canções, bem como os beijos, os abraços e os olhares. E que união sobreviveria aos insultos frequentemente lançados nas brigas entre o domingo e aquele momento a qualificar atos do outro?

Os vizinhos, ouvintes de tudo - ou quase tudo - , questionavam-se assim. Respondo eu mesmo, que sei de muitos casos onde o amor sobrepôs-se às ofensas: uma união selada por esse sentimento tão sutil e rígido quanto o náilon cortante. Mas devo acrescentar que nenhum matrimônio resistiria ao espectro ora cenário das brigas. Pois uma coisa é uma ofensa aqui, uma lá, terminado, na maioria das vezes, nos elogios mútuos sobre a cama. Outra coisa é a mulher virar as costas enquanto o marido lhe dirige a palavra.

E isso ela dera de fazer ultimamente. Justificava o extremo do ato argumentando que o homem com quem casara-se já não falava com a devida coerência nos altos tons das discussões. E ele, que ela já não agia com o devido respeito nesses momentos. O que não compreendiam é que o amor assim como não costuma enxergar defeitos plenamente, não costuma entender certos atos do/a amado/a.

O amigo, enfim, apelava para o tempo: "Um dia sepultara-se o que morreu por dentro". Mas a trilha cada vez mais triste tocava o desafino à lembrança da última vez em que a vira, de costas, da porta da sala afora. O amor quando é náilon cortante, talvez resista aos desafios, cortando-os ao meio: sutil no beijo doce, rígido na união inabalável. O problema é quando a mulher é que é o náilon cortante: sutil na ironia do descobrir do finito, rígida na decisão de abandonar o infinito.

As lágrimas dele, portanto, tentavam regar o espaço vazio no peito - se sementes haviam nele saberemos no tempo em que devam crescer.

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