A Garganta da Serpente
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Quatro Atos

(Marcelo Guedes Lima)

A Casa Grande parecia maior ainda agora, quase totalmente vazia. Os poucos móveis que restaram estavam cobertos com lençóis brancos, dando um aspecto ainda mais sombrio ao lugar. Mas eu não podia ter medo, tinha que chegar ao meu objetivo ali, mesmo sem saber muito bem o que me trouxera de volta à Casa Grande depois de tantos anos. Negro moleque, o que fazes perambulando pela casa? A voz de sinhazinha veio forte e arrogante como sempre. Vai-te para a cozinha, ou esqueço-me que és o protegido de meu pai e mando deitar-te ferros. Vejo minhas mãos enrugadas sobre a cadeira de sinhazinha, coberta de pó, e retomo consciência do tempo.

Um som forte me desperta, penso ser o velho relógio do salão principal, mas abrindo os olhos vejo um teto que já fora branco e agora apresenta manchas de mofo espalhadas formando o mapa de um planeta estranho. O som se repete, a campainha da porta, deve ser importante para me incomodarem tão cedo. Dez passos de bêbado até a porta, não me incomodo em passar no banheiro antes, deve ser alguém conhecido mesmo. Meu pai mandou avisar que amanhã vai faltar água no prédio. A filha mais velha do síndico falava como uma criança matreira, acho que para me provocar de cima de seus belos dezoito anos. Agradeço quase mudamente o aviso e fecho a porta bem devagar, vendo a linda negrinha afastar-se ao invés de convidá-la para entrar e dividir comigo o calor da minha cama.

Dez passos até o banheiro e me lembro que é sábado, minha bexiga dói. Alívio rever o banheiro. Resolvo voltar para a cama e exercitar o sábado mais um pouco, a noite foi cansativa, não consigo nem me lembrar porque.

Ao abrir os olhos, mosaicos movimentos negros se fazem e desfazem, o gosto salgado do sangue enche minha boca, minhas costas ardem em carne viva. Consigo distinguir melhor as formas a minha volta, o povo da senzala me hostiliza. O protigido do Senhô agora é igual a gente, o Senhô 'tá morto, vai tê que aprendê a vivê no meio do seu povo. Não entendo o que aconteceu até tentar me mexer e sentir as dores do açoite voltarem à carne.

Mais alguns passos adiante na Casa Grande. Venha cá, moleque, ajude-me a descalçar as botas, que pesam-me os pés. A voz do Senhor já se tornara cansada há muitos anos e, esparramado em sua cadeira do salão principal da casa, parecia ainda mais frágil. Corri para ajudá-lo, mas ele já não está mais lá, em seu lugar, o branco encardido do lençol me traz mais uma vez à realidade. Me pergunto novamente o que me trouxe de volta àquele lugar, enquanto me perco observando um retrato do Senhor em um quadro a minha frente. Os traços fortes de um jovem empreendedor parecem enfraquecidos pelo tempo no próprio quadro. Vejo algo mais familiar do que a imagem do meu antigo Senhor e protetor naquele rosto.

Tento me levantar, mas as profundas dores castigam todo o meu corpo. Os gritos saem inconscientes da minha boca, reflexos da grande dor física, conscientemente não sinto nada. O teto mofado parece mais distante e mofado do que de costume, alcanço, com a dificuldade que o exercício de sábado me impõe, o relógio em um ponto qualquer da cama. Dez da manhã e alguns minutos. A primeira tentativa de me levantar fracassa, simplesmente porque meu corpo não obedece às ordens da minha mente confusa e sonolenta. Dez passos após a segunda tentativa e estou novamente no conhecido banheiro. A água está no ponto, quente como a cama, o suficiente para me manter relaxado ainda.

Ele não deve sobreviver por muito mais tempo. O branco do teto é tão puro que parece que não vejo nada, dois vultos brancos estão a minha direita e eu percebo que não posso mover minha cabeça, não há resposta dos meus músculos. Tento articular as palavras, em vão, minha boca também não obedece. Nem sei se estou consciente, não sinto nada, os vultos e o teto branco são tão imprecisos, que eu não sei se os vejo realmente, ou se estou apenas imaginando. Ele já viveu muito, merece partir com dignidade. Já recebemos a autorização para desligar a respiração artificial? O sábado é azul, mas uma sensação de desconforto me domina, como se eu pudesse esperar que algo importante vá acontecer, não gosto de acontecimentos importantes. Na praia encontro os mesmos amigos de sempre, amigos de sábado.

Acordo reconfortado porque alguém trouxe água e o gosto de sangue já diminui, não conheço o jovem rosto que me tomou para seus cuidados, mas isso não importa. Nem imagino porque alguém enfrentaria os demais para cuidar de mim e não me deixar morrer ali, como era o desejo de sinhazinha. Muitos risos e prantos, luzes e escuridão passam por mim até que eu fique forte o suficiente para trabalhar, os feitores voltam a exigir do escravo o que o escravo tem que fazer, mas aquele rosto nunca me escapou da mente. Levanta, anda, trabalha negro preguiçoso, 'cabou o tempo de regalias da Casa Grande. A imagem do Senhor no quadro já não é tão importante e continuo meu caminho pela velha casa à procura do que me levou até ali, sem saber o quero encontrar. Um grande corredor levava até os quartos. Entrando pelo corredor, parei diante da primeira porta, fechada. Vem cá, negro, me ajuda a dar jeito de quarto de gente nisso aqui, tem visita hoje e sinhazinha fica ardida se tudo num 'tivé brilhano.

O teto branco aparece de novo, penso ver manchas de mofo, como no velho quarto-sala em que vivi meus bons anos de juventude. O branco é de novo só branco, quase invisível os sábados vem e vão na memória. Acho que hoje é sábado, se pudesse sentir, sentiria o cheiro morno do sábado de sol, que chama a gente pra praia, ou o cheiro doce do sábado frio, que incita ao exercício do sábado, a cama. A vida passa rápido no sábado, no domingo ela nem passa, atravessa a gente como se ontem não tivesse sido sábado.

Acho que é Dia Santo, os feitores não aparecem e a senzala não é silêncio. Meu rosto, não o meu, mas aquele outro, atravessa meu olhar repetidas vezes, o movimento é presente em todos, sem esforço, o que permite à imaginação, o imaginar. O rosto, que passava, começa a parar, vira atenção, pedaço de pão, gole de aguardente proibida, até toucinho aparece. Deve ser Dia Santo.

O sábado segue alto, a praia é só praia, a mesma coisa de todo o sábado quente. Volto pra casa no ritmo da cerveja, com deliciosos passos de bêbado, que o dia permite. Não que eu esteja bêbado, mas vale a pena andar sem se preocupar com o pé ante pé, só pelo prazer de não chegar mais cedo sem estar atrasado. Ao pé da escada a negrinha parece que me espera, seu sorriso largo parece que quer me dizer algo além do oi sibilante, que sussurramos ao nos cruzarmos. No banheiro, o chuveiro é mais uma vez amistoso comigo, estou livre da tentação de um sorriso.

A noite cai quente na senzala e a aguardente sobe à cabeça, os gritos ao redor do fogo parecem tão distantes, estão dentro da minha boca. O rosto agora é corpo, esguio, quente, vivo. A atenção agora é toque, carne, calor, saliva e suor. A negrinha vê a lua e eu não vejo saída, a cerveja gelada é nossa, um copo, duas bocas, cerveja dentro do copo, um boca dentro da outra, não preciso mais do copo para me embriagar.

O quarto do Senhor é o último do grande corredor. Luz sob a porta, porta entreaberta, aberta. Vejo. Vejo o teto branco. A autorização chegou, desligue os aparelhos de respiração artificial. Não! Eu vejo. Um corpo se debate debilmente até a morte, sinhazinha debruçada sobre a cama. Minha cama, o calor do corpo da negrinha me atenta, aquece meu prazer. O corpo, que já foi rosto, agora é fogo, eu me queimo agora, unhas nas costas. Na cama. Na senzala.

O corpo não se debate mais, não está mais lá, minhas pernas não obedecem, não vejo. Não vejo o teto branco, agora negro. Não sinto, nem lembro do cheiro do sábado. Não ouço. Meus gritos tentados sob as unhas, na minha cama, na senzala. Meu corpo cai. Não tenho mais corpo, ele se foi, descansa sob o teto branco, na soleira da porta, sobre o corpo, beijando o rosto, ofegante na minha cama.

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