A Casa Grande parecia maior ainda agora, quase totalmente vazia. Os poucos
móveis que restaram estavam cobertos com lençóis brancos,
dando um aspecto ainda mais sombrio ao lugar. Mas eu não podia ter medo,
tinha que chegar ao meu objetivo ali, mesmo sem saber muito bem o que me trouxera
de volta à Casa Grande depois de tantos anos. Negro moleque, o que fazes
perambulando pela casa? A voz de sinhazinha veio forte e arrogante como sempre.
Vai-te para a cozinha, ou esqueço-me que és o protegido de meu
pai e mando deitar-te ferros. Vejo minhas mãos enrugadas sobre a cadeira
de sinhazinha, coberta de pó, e retomo consciência do tempo.
Um som forte me desperta, penso ser o velho relógio do salão principal,
mas abrindo os olhos vejo um teto que já fora branco e agora apresenta
manchas de mofo espalhadas formando o mapa de um planeta estranho. O som se
repete, a campainha da porta, deve ser importante para me incomodarem tão
cedo. Dez passos de bêbado até a porta, não me incomodo
em passar no banheiro antes, deve ser alguém conhecido mesmo. Meu pai
mandou avisar que amanhã vai faltar água no prédio. A filha
mais velha do síndico falava como uma criança matreira, acho que
para me provocar de cima de seus belos dezoito anos. Agradeço quase mudamente
o aviso e fecho a porta bem devagar, vendo a linda negrinha afastar-se ao invés
de convidá-la para entrar e dividir comigo o calor da minha cama.
Dez passos até o banheiro e me lembro que é sábado, minha
bexiga dói. Alívio rever o banheiro. Resolvo voltar para a cama
e exercitar o sábado mais um pouco, a noite foi cansativa, não
consigo nem me lembrar porque.
Ao abrir os olhos, mosaicos movimentos negros se fazem e desfazem, o gosto salgado
do sangue enche minha boca, minhas costas ardem em carne viva. Consigo distinguir
melhor as formas a minha volta, o povo da senzala me hostiliza. O protigido
do Senhô agora é igual a gente, o Senhô 'tá morto,
vai tê que aprendê a vivê no meio do seu povo. Não
entendo o que aconteceu até tentar me mexer e sentir as dores do açoite
voltarem à carne.
Mais alguns passos adiante na Casa Grande. Venha cá, moleque, ajude-me
a descalçar as botas, que pesam-me os pés. A voz do Senhor já
se tornara cansada há muitos anos e, esparramado em sua cadeira do salão
principal da casa, parecia ainda mais frágil. Corri para ajudá-lo,
mas ele já não está mais lá, em seu lugar, o branco
encardido do lençol me traz mais uma vez à realidade. Me pergunto
novamente o que me trouxe de volta àquele lugar, enquanto me perco observando
um retrato do Senhor em um quadro a minha frente. Os traços fortes de
um jovem empreendedor parecem enfraquecidos pelo tempo no próprio quadro.
Vejo algo mais familiar do que a imagem do meu antigo Senhor e protetor naquele
rosto.
Tento me levantar, mas as profundas dores castigam todo o meu corpo. Os gritos
saem inconscientes da minha boca, reflexos da grande dor física, conscientemente
não sinto nada. O teto mofado parece mais distante e mofado do que de
costume, alcanço, com a dificuldade que o exercício de sábado
me impõe, o relógio em um ponto qualquer da cama. Dez da manhã
e alguns minutos. A primeira tentativa de me levantar fracassa, simplesmente
porque meu corpo não obedece às ordens da minha mente confusa
e sonolenta. Dez passos após a segunda tentativa e estou novamente no
conhecido banheiro. A água está no ponto, quente como a cama,
o suficiente para me manter relaxado ainda.
Ele não deve sobreviver por muito mais tempo. O branco do teto é
tão puro que parece que não vejo nada, dois vultos brancos estão
a minha direita e eu percebo que não posso mover minha cabeça,
não há resposta dos meus músculos. Tento articular as palavras,
em vão, minha boca também não obedece. Nem sei se estou
consciente, não sinto nada, os vultos e o teto branco são tão
imprecisos, que eu não sei se os vejo realmente, ou se estou apenas imaginando.
Ele já viveu muito, merece partir com dignidade. Já recebemos
a autorização para desligar a respiração artificial?
O sábado é azul, mas uma sensação de desconforto
me domina, como se eu pudesse esperar que algo importante vá acontecer,
não gosto de acontecimentos importantes. Na praia encontro os mesmos
amigos de sempre, amigos de sábado.
Acordo reconfortado porque alguém trouxe água e o gosto de sangue
já diminui, não conheço o jovem rosto que me tomou para
seus cuidados, mas isso não importa. Nem imagino porque alguém
enfrentaria os demais para cuidar de mim e não me deixar morrer ali,
como era o desejo de sinhazinha. Muitos risos e prantos, luzes e escuridão
passam por mim até que eu fique forte o suficiente para trabalhar, os
feitores voltam a exigir do escravo o que o escravo tem que fazer, mas aquele
rosto nunca me escapou da mente. Levanta, anda, trabalha negro preguiçoso,
'cabou o tempo de regalias da Casa Grande. A imagem do Senhor no quadro já
não é tão importante e continuo meu caminho pela velha
casa à procura do que me levou até ali, sem saber o quero encontrar.
Um grande corredor levava até os quartos. Entrando pelo corredor, parei
diante da primeira porta, fechada. Vem cá, negro, me ajuda a dar jeito
de quarto de gente nisso aqui, tem visita hoje e sinhazinha fica ardida se tudo
num 'tivé brilhano.
O teto branco aparece de novo, penso ver manchas de mofo, como no velho quarto-sala
em que vivi meus bons anos de juventude. O branco é de novo só
branco, quase invisível os sábados vem e vão na memória.
Acho que hoje é sábado, se pudesse sentir, sentiria o cheiro morno
do sábado de sol, que chama a gente pra praia, ou o cheiro doce do sábado
frio, que incita ao exercício do sábado, a cama. A vida passa
rápido no sábado, no domingo ela nem passa, atravessa a gente
como se ontem não tivesse sido sábado.
Acho que é Dia Santo, os feitores não aparecem e a senzala não
é silêncio. Meu rosto, não o meu, mas aquele outro, atravessa
meu olhar repetidas vezes, o movimento é presente em todos, sem esforço,
o que permite à imaginação, o imaginar. O rosto, que passava,
começa a parar, vira atenção, pedaço de pão,
gole de aguardente proibida, até toucinho aparece. Deve ser Dia Santo.
O sábado segue alto, a praia é só praia, a mesma coisa
de todo o sábado quente. Volto pra casa no ritmo da cerveja, com deliciosos
passos de bêbado, que o dia permite. Não que eu esteja bêbado,
mas vale a pena andar sem se preocupar com o pé ante pé, só
pelo prazer de não chegar mais cedo sem estar atrasado. Ao pé
da escada a negrinha parece que me espera, seu sorriso largo parece que quer
me dizer algo além do oi sibilante, que sussurramos ao nos cruzarmos.
No banheiro, o chuveiro é mais uma vez amistoso comigo, estou livre da
tentação de um sorriso.
A noite cai quente na senzala e a aguardente sobe à cabeça, os
gritos ao redor do fogo parecem tão distantes, estão dentro da
minha boca. O rosto agora é corpo, esguio, quente, vivo. A atenção
agora é toque, carne, calor, saliva e suor. A negrinha vê a lua
e eu não vejo saída, a cerveja gelada é nossa, um copo,
duas bocas, cerveja dentro do copo, um boca dentro da outra, não preciso
mais do copo para me embriagar.
O quarto do Senhor é o último do grande corredor. Luz sob a porta,
porta entreaberta, aberta. Vejo. Vejo o teto branco. A autorização
chegou, desligue os aparelhos de respiração artificial. Não!
Eu vejo. Um corpo se debate debilmente até a morte, sinhazinha debruçada
sobre a cama. Minha cama, o calor do corpo da negrinha me atenta, aquece meu
prazer. O corpo, que já foi rosto, agora é fogo, eu me queimo
agora, unhas nas costas. Na cama. Na senzala.
O corpo não se debate mais, não está mais lá, minhas
pernas não obedecem, não vejo. Não vejo o teto branco,
agora negro. Não sinto, nem lembro do cheiro do sábado. Não
ouço. Meus gritos tentados sob as unhas, na minha cama, na senzala. Meu
corpo cai. Não tenho mais corpo, ele se foi, descansa sob o teto branco,
na soleira da porta, sobre o corpo, beijando o rosto, ofegante na minha cama.