Não queria. O que, exatamente, não sabia. Também não
queria saber. Negava-se a falar, a beber o café que esfriava sobre o
balcão da padaria que o recebia religiosamente todos os dias, no mesmo
horário. Negava-se até mesmo a negar. Apreciava a catatonia, a
abstração, não pensar, não estar. Assim é
que era bom: o nada.
- O senhor está bem?
Em resposta, nada... E as caras de besta olhando-o, as vezes até indignadas
de ficarem assim, sem ouvir retruco, sem ter o que argumentar. A longo prazo,
visto que ele nem erguesse mais os olhos para admirar as expressões perplexas
dos indagadores, talvez começassem a cutucá-lo, sacodi-lo. Então
- a glória! - teria permissão para nem mesmo ordenar seu corpo:
o gozo com o nada, o desfalecer, babar e lançar excrementos sem destino
ou hora marcada.
As filhas - quando a esposa tivesse morrido, desgostosa das tentativas de causar
nele qualquer reação - revezariam: na primeira quinzena de cada
mês a responsabilidade pelo estorvo seria de Fernanda, na segunda, de
Marcela. E quando um - ou dois - dos maridos sugerisse a internação,
elas intercederiam: "Pai a gente só tem um, Ernesto (ou Jessé)!".
Talvez nessa hora sentisse vontade de se manifestar, deixar que as costas da
mão estralassem na boca da menina em castigo pela grosseria gramatical
do "a gente".
Os netos - crianças são sempre sinceras - poderiam usá-lo
como brinquedo: fazer dele uma montanha boa de se escalar, e com as unhazinhas
afiadas, fustigar-lhe-iam na aposta de quem conseguiria chegar primeiro ao "topo",
código usado para se referir à cabeça do vovô, na
presença de adultos.
Será que o Gerson da tabacaria perdoaria sua dívida? Por certo
que sim, afinal, ele era um dos únicos homens que ainda conservavam a
dignidade de fumar cachimbo, e o que era uma dividazinha mensal comparada ao
prazer de ver a figura de um gentleman a manusear seu aparato de madeira soltando
fumaça cheirosa?
O Matias, em nome dos bons tempos, suarento como nunca, iria visitá-lo.
Inventaria mil histórias sobre as morenas que gostam mesmo é de
um bom coroa e do time pelo qual ambos eram apaixonados, que vencera todos os
campeonatos daquele ano. Depois, cansado de encenar, do alto de sua ira, esbofetearia-lhe
a cara e ainda arremataria: "Aqui, não volto mais, velho safado!".
O chefe do jornal teria a confirmação de que o Carlos não
serve mesmo para nada.
Um novo revisor seria contratado: um frangote metido, doido para sair com a
Vera, sua preferida. E ela, saindo com ele, não se preocuparia mais em
aprender tantas massagens e técnicas tailandesas ou indianas, capazes
de enrijecer qualquer músculo.Talvez agora pudesse se dedicar ao Kama-Sutra
e às tantas peripécias de que o seu Carlão não dava
conta.
Como as filhas começassem a se cansar do fardo e estivessem em contínua
discórdia sobre que quinzena era de quem, no Natal dariam a ele, além
de meias e um cobertor para aquecer as pernas atrofiadas, uma enfermeira. Recatada,
sem graça, mais que tivesse tara por velhinhos catatônicos e, na
hora do banho, demorasse com o lenço úmido nas partes que ninguém
valoriza - a fenda entre o dedo mindinho e o anelar, os pêlos da axila,
a narina esquerda, as depressões que formam os cantinhos dos olhos -
gemendo a cada uma delas.
Morreria enfim, de causa indeterminada ou de algum termo médico impronunciável,
no dia em que completasse redondos cem anos, muito bem vestido numa solenidade
na Câmara Municipal onde ele seria condecorado o cidadão mais antigo
- porque "velho" é ofensa - de Pontaporã. No exato momento
em que o Prefeito fosse lhe pregar a medalhinha na roupa, soltaria um esgar
horrendo, quase matando o homem de susto com a perspectiva de tê-lo espetado.