A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Diário de um velho

(Maria José Zanini Tauil)

De repente, vejo-me um velho, mas lúcido ainda. Relembro as histórias todas, as causas dos meus medos, dos dias em que fui tudo e dos dias em que não fui nada. Os desenhos rupestres que cravei nas rochas por onde passei, precisam de perspectivas para uma explicação. Não sei mais que temperos colocar no desespero de não ser mais nada; apenas um velho.

Meu discurso é longo e lento, ninguém tem interesse de ouvi-lo. Não consegui segurar a juventude, nem fazê-la me acompanhar. Não vivo na expectativa de um momento incrível que não acontecerá. É melhor pagar já o preço de não ter ousado, de não ter tentado ser diferente. Poderia ter usado máscaras, ou algum disfarce só para ver o que aconteceria; virar cambalhotas, fazer palhaçadas, chamar a atenção para o picadeiro onde sempre atuei sem ter nenhuma projeção.

Quando jovem, tinha passarinhos nos olhos e os passos da pessoa amada eram belos como um filme, onde o final é sempre feliz. Mas um dia, a luz e o viço da sua pele já não me acalentaram. Se existe amor verdadeiro, aquele não era, certamente. Não fui soldado, não me alistei no exército estrangeiro, não lutei por pátrias perdidas, não conquistei um pedestal, não tive filhos, enfim, não me imortalizei.

De que adianta conhecer tantas histórias, mas não ter uma de amor, autêntica, que eu tenha protagonizado? Sobraram as respostas que não foram perguntadas. O tempo que me resta foi emprestado com altíssimos juros. Da minha boa memória, só vale registrar o pasto de hoje. São poucos os fatos que não possuem pitadas de nostalgia.

Hoje tenho um desejo recorrente de tomar banho de chuva miúda, mesmo correndo o risco de uma pneumonia, que agrave meus problemas pulmonares. Vontade de sentar sob vastas sombras de árvores maduras como eu, e ali ficar, vendo as folhas outonais caírem e as crianças brincarem por tardes inteiras.

Meu destino é o vento, mas ele não sobe os degraus que já não consigo descer. Sinto que das nuvens desce, lentamente, um barco, à procura de um passageiro. Não virá ninguém à minha festa. Vou até a porta, apago a luz e me debruço no batente da janela, forrado com um pequeno tapete persa para não esfolar os cotovelos tão gastos. Estou à espera... pacientemente.

  • Publicado em: 08/05/2017
menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br