A Garganta da Serpente
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A Bela Adormecida

(Maria José Zanini Tauil)

Tânia era uma mulher que vivia há muitos anos ao lado de um homem sem formar com ele uma dupla, um conjunto, ou um par.
Após trinta anos de casamento, filhos casados, ela era um containers de ressentimentos e mascarava suas carências caramelizando-as com calda de chocolate e se empanturrando de doces e bolos, como se isso preenchesse o vazio de sua vida.

Ao descobrir-se traída, segurou-se para não escorregar no limbo de sua autopiedade. Engordou quase quarenta quilos. Chegou à obesidade mórbida. Escondia seus atrativos físicos, que outrora chamaram tanto a atenção masculina , com quilos e mais quilos de tecido adiposo e peles caídas. Os braços se encurtaram e se arredondaram. Não dava para definir onde acabava o queixo e começava o pescoço. era um papo só.

Não sabe como, mas colocando o dedo na ferida, buscou a cura.. O seu, era um casamento sem cumplicidade, sem carinho, sem choque de pele ao contato, sem beijo na boca.. O sentimento de rejeição passou a ser um incentivo para trilhar novos caminhos. Mergulhou fundo numa nova mulher, que aos poucos foi surgindo das profundezas de um poço que parecia não ter fim e chegou à tona.

Encontrou duas grandes companheiras nessa jornada: O seu próprio "eu", a sua autoestima e sua médica ortomolecular, doutora Eloísa, que a incentivou e ajudou. Começou a operação resgate, transpassou a cortina de lágrimas e desamor em que vivera por tantos anos.

Também surgiu um oásis no deserto da sua vida, um alguém que a valorizou como mulher sem nunca tê-la visto. Tânia colocava suas desditas e amarguras nos poemas que escrevia para vários sites da internet. Seus sonhos, dores e anseios de ser amada, suas carências de carinho.

Curiosamente, Paulo também sofria de solidão., também escrevia e a temática de ambos era a mesma, as mesmas carências , afinidades inúmeras.

Ele era viúvo, perdeu a mulher com câncer e sobrevivera ao sofrimento por ter como meta principal o encaminhamento das filhas menores. Ele assumia os dois papéis com inusitado amor , o de pai e o de mãe, não aceitava substitutos . O amor homem-mulher foi esquecido por anos.

Duas almas sedentas e carentes, que não pediram, mas tiveram seus caminhos cruzados pela tecnologia (ou por Deus?).

Com um espaço físico que os tornava tão distantes, Rio e Brasília, e um monitor de computador que os aproximava tanto a ponto de conseguirem vislumbrar no imaginário o brilho nos olhos, o toque de mãos e bocas ardentes..
Só percebiam que não era tão longa a distância porque podiam contemplar a mesma lua, as mesmas estrelas....

A venenosa autoestima de Tânia recebeu esse antídoto: as palavras de afeto de Paulo, sua atenção e carinho, excelentes combustíveis para um ser tão desmotivado.

A perspectiva de um encontro um dia, fez com que Tânia se esmerasse nos cuidados com os cabelos, com a pele, com o corpo, já que a alma começava aos poucos a se renovar e se preparar para amar novamente..

Ela se percebia a cada dia melhor, pois o assédio e elogio dos homens era um sinal. Olhos mais atentos ou mais sensíveis descobriam nela a beleza interior. Mesmo o homem sendo puro visual, deixando-se levar pela sugestão do que seus olhos contemplam, alguns viam algo mais nela, talvez uma sensualidade contida e pronta para explodir, ou sua capacidade imensa de dar carinho e amor.

As vezes se revoltava. Quanto tempo perdido! Muito de sua celulite foi produto de abandono, sexualidade estagnada, esquecida. Chegou aos cinquenta anos assim... Passou pela vida...não viveu.

Em tempo, jogou sua dor na lata do lixo, passou a dar mais atenção à elastina que segura sua pele e aos poderosos aminoácidos que rejuvenescem. Aprendeu a comer comedidamente. Não esquecia as recomendações da doutora Eloísa: "Só água não tem calorias".

E o Paulo? Bem... Ele jamais saiu do outro lado do monitor, ou melhor, saiu sim. Pegou um avião e foi ao seu encontro, ávido pelo olhos nos olhos, mãos nas mãos. Chegou ao aeroporto e ligou para ela. Era uma surpresa.

A mulher corajosa que surgiu metamorfoseada, que conseguiu vencer as barreiras do casulo, perdeu a coragem. Aquele encontro tinha gosto de traição e pecado. Precisava primeiro tirar a vírgula de sua vida e colocar um ponto final. Paulo não lhe perdoou a fraqueza. Para ele, existia um amor grande, alimentado por seis meses de trocas de e-mails, confidências, poemas. Um funcionou para o outro como analista. Conheceram-se mais do que muitos casais que vivem anos juntos. Conheceu o caráter daquele homem mais que conhecia o íntimo de seu marido.

Nunca mais se falaram. Só ficou no ar a promessa dele: "Estarei a sua espera, mas o primeiro passo deve ser dado por você"

Ao sentir-se preterido, o marido despertou também de um sono: o da indiferença. Passou a enxergá-la, confessou seus delitos amorosos e pediu-lhe perdão.Tenta exaustivamente agradá-la e recuperar o tempo perdido, se é que isso é possível.. Ela perdoou. É cristã. Aceitar é difícil. É ato heróico. Tudo em nome da paz e da união familiar, do exemplo aos filhos e do carinho que voltou a sentir por aquele homem que pela primeira vez em trinta anos, se humilha, dá provas de amor e tem gestos de ternura e carinho.

Difícil saber que viveu uma longa vida de mentiras, que seu homem dividia o corpo com outra e beijava outra boca. Esquecer? Não conseguirá, certamente. Ser feliz? Nunca o será, completamente. As feridas cicatrizarão, mas deixarão marcas profundas.

Quanto a Paulo, quem sabe, foi um anjo mandado por Deus para despertar aquela mulher adormecida por tantos anos .O lado positivo de sua história? Tania passou a gostar de si mesma.

  • Publicado em: 12/12/2003
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