A Garganta da Serpente
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Cíclico

(Maria José Zanini Tauil)

Os filhos cresceram e se foram. O marido já tinha feito a derradeira viagem. Viveram aos trancos e barrancos, mas a morte mostrou-lhe o quanto aquele homem foi importante em sua vida. Era o esteio, o ombro, o apoio, a força e o abrigo. A viuvez deixou-a desorientada. Nem entrar sozinha num elevador sabia.Como enfrentar bancos, assinar documentos, assumir responsabilidades? Aquele homem fazia tudo! Até mercado e feira. Contar com os filhos? Não...eles não tinham tempo.

Casa vazia e dor infinita na alma. Como administrar aquela solidão permanente? Nem sequer uma grande amiga para jogar conversa fora. A filha não entendia aquele marasmo da mãe, seu isolamento, a falta de sociabilidade, o viver solitário. Na verdade, ela alimentou uma amizade com uma companheira inseparável: a televisão. Eram todas as novelas, o Silvio Santos, o Gugu, o Raul Gil e todos mais que mostrassem
sua cara no ar. Nada cultural. Conteúdos para distrair, entorpecer a mente, compartilhar os dramalhões da ficção. Assim envelheceu: uma casa confortável, uma tv, uma independência ilusória e uma grande
carência de afeto. Teve uma infância difícil. Os pais se separaram cedo. Teve que cuidar de irmãos até se casar. Vieram cinco filhos. Sempre acreditou que só se casou para fugir daquela vida. Os filhos já chegaram ao mundo encontrando uma mãe meio sem paciência. Tinha dificuldades em expressar o amor que nunca fez parte de sua árida vida. Frutos do carinho mal expressado, esses filhos se distanciaram. As visitas eram rápidas e escassas. Não havia mais os almoços e a confraternização de final de ano, quando o pai fazia questão de todos os filhos à mesa.

Vieram os netos. Pouco apego. Amava-os, sim, desde que não lhe dessem trabalho. Acostumou-se demais a ser só, à falta de compromisso com alimentação, casa ou sobremesas preferidas de cada um. Em suas viagens frente à televisão, ia onde queria. Chingava os vilões e aplaudia os heróis; punha-se no lugar das heroínas. O tempo passou e com ele chegaram as limitações da idade, a necessidade de ter alguém para lhe cuidar e amparar. Foram anos presa à cama, à cadeira-de-rodas. A boca silenciou; nem perguntas nem respostas. Era assim que estava acostumada. Os olhos fitavam o vazio e, talvez, por não enxergar bem, já não buscavam a tv.

Nessa altura, a filha já era xerox da mãe. Os filhos se foram e para bem longe;circunstâncias de trabalho.Via-os só nas férias anuais. O ciclo se repetia, então: outra casa vazia, solidão para ser administrada e ser repartida com o marido e, por fim, a compreensão do que se passava na alma de sua mãe e que ela nunca conseguiu entender. A televisão também passou a ser seu cinema, seu teatro, seu único lazer, sua fuga e, principalmente, a única e fiel companheira: tudo de novo...

  • Publicado em: 28/09/2010
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