Ele queria morrer em paz...a última febre vacilava em voltar. Rastejando-se,
chega à varanda e observa as pinceladas do Criador na natureza. Respira
mais livremente, ouve os murmúrios do mar e lembra de Ana. Ah! Se ela
voltasse, se estivesse ali, unida ao seu peito, lábios colados nos dele!
Ela penetra nos seus sonhos. Com ela, as tardes eram mais belas. O pessegueiro
ao lado, aos seus pés, derramava flores e os pássaros cantavam
nos galhos. Uma furtiva lágrima desce pela face descorada pela doença.
Suas veias, ainda ardentes, correm lentas. Sente-se morrer, seu cérebro
transborda.
Foi um louco. Hoje, na solidão, odeia o mundo...e nem teve um Deus para
crer. Já ouve a voz que da treva assombra. O sepulcro é seu ventre.
Voltará para ele. Quer voltar!
De lá, não verá ninguém chorando, nem uma lágrima
sentida rolando. Voltará ao pó e sua alma se erguerá fria,
sangrenta. Pedirá perdão a Deus pela descrença, acha que
com sofrimentos já foi castigado e merece o céu. As ilusões
já não o chamam à vida, banhou-se com lágrimas insensatas
e a última esperança foi enterrada.
Volta à sala com dificuldade. Pega um bloco sobre a mesa e uma caneta.
No papel, lágrimas misturam-se com palavras: "Perdoa-me, Ana, se
menti. Não me odeies. Te amarei até o exalar do último
suspiro. É um afeto único, imenso. Deus me perdoará e entre
os anjos te esperarei. Chora...mas sonha! Quero daqui a algum tempo repousar
em teu regaço, acordar com teu abraço, nos jardins do céu.
Lá, amor, não mais passarei para ti o maldito vírus HIV.
Não sofrerás essas agruras e essas dores dilacerantes que enfrentas
aí, nesse maldito hospital. Vou na frente, mas em breve, estaremos juntos
por toda a eternidade."