A Garganta da Serpente
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Esta é minha carne!
Este é meu sangue!

(Mário Jorge Lailla Vargas)

Um sonho tão vívido. Me pareceu o mais longo dos sonhos, durante minha difícil convalescença. Não discutirei o mérito, a verossimilhança de minha onírica aventura. Apenas relatarei fielmente, mantendo as impressões e ideias que me ocorreram naquele estado alterado de consciência, com o cérebro intoxicado por miríade de dejeto bacteriano, cada toxina mais potente que a outra, resultando em pensamentos febris de lógica inconcebível. Pude relatar porque anotei tudo imediatamente ao despertar, do contrário já teria esquecido. Hoje, relendo, me parece memória doutra pessoa, tal a estranheza e fascínio que me causa.

Eis, sem censura e na íntegra, o pesadelo:

Era madrugada, horas antes da alvorada saímos, na camionete de Raul, de Campo Grande pra pescar no rio Miranda. Aproveitávamos o feriado da paixão pra pescar. Eu pilheriava dizendo que deveríamos reunir um grupo de sambistas e fazer um retiro carnal, pois os anticarnavalescos não fazem retiro espiritual durante a folia?

Eu ia ao volante. Fitando o estirão de asfalto mil coisas me passavam na cabeça: Me vinha, em onda, a preocupante lembrança do escárnio com que Raul se referiu, em sua palestra na universidade federal, a toda forma de religião estabelecida. Ele ria de minha preocupação mas conheço tantos casos na história, onde o inconsciente coletivo de determinada crença agia de forma punitiva contra seu agressor, gerando uma maldição. Eu era muito cientificista quando muito jovem mas cresci e aprendi, pela vida e pela leitura, que ignorante é quem comete a ignorância de ignorar a própria ignorância. Já ia longe o tempo quando eu encontrasse uma encruzilhada comeria a galinha preta com a farofa, degustando a pinga à luz da vela preta.

Lá pelas 9h avistamos camiões vindo no sentido oposto fazendo sinal de luz. Após a curva seguinte uma densa e inexplicada neblina nos colheu de surpresa e envolveu o veículo num manto de vertigem. Permanecemos nela quase meia hora e, ao sair, estávamos perdidos. Raul ficou pasmo em se perder em área tão conhecida. Misteriosamente não mais estávamos sobre asfalto e sim sobre estrada de terra terrivelmente esburacada. Não encontrávamos placas nem conseguíamos nos situar no mapa.

A vegetação não era a de nossa região e estava ainda mais quente. Logo adiante vimos uma placa de entrada dum povoado: São José das Tormentas. Raul se exasperou.

- Não há tal povoado no local, nem fazenda, nem chácara com esse nome. Já viajei até a pé em toda parte e nunca vi ou ouvi falar em tal lugar. Nasci e sempre vivi aqui!

Em seguida nos deparamos com Santa Cruz das Almas. Ali paramos pra pedir informação. Então fomos recebidos com uma amabilidade exagerada. Muitas pessoas nos cercavam, curiosas e um velho fazendeiro nos ofereceu sua casa. Assim ficamos hospedados na casa do coronel Leodegar, pois só assim, disse ele, poderíamos ficar livres de ser importunados pela curiosidade do povo, que muito raramente vê um forasteiro.

Pra nosso espanto já chegava o crepúsculo, sendo que poucas horas se passaram de nossa saída de Campo Grande. Deveria ser, no máximo, 12h. Meu relógio marcava 11:27h. Nesse momento chegou o padre pra nos conhecer. Velhote muito amável, brincava e pilheriava a valer. Como ele nos sentimos a vontade pra indagar, o que não fizemos com o sisudo coronel.

Logo ficamos sabendo que é sempre uma alegria quando chegam forasteiros prà Sexta-feira Santa. Eles têm a honra de estrelar a grande encenação da paixão. O povo acredita que a presença de forasteiros estrelando a peça traz muito favor divino à comunidade. Fomos contemplados. Um papel será o de Cristo e o outro o de Judas.

Na rua reinava o mais completo silêncio. As pessoas não se permitiam rir ou demonstrar qualquer alegria. Era a Semana Santa bem ao gosto de nossos avós. As pessoas tinham de demonstrar tristeza e consternação pela morte de Jesus, tudo bem ao estilo de minha avó materna, e mesmo de minha mãe, no Paraguai. O único alegre e folgazão era mesmo o padre. Nem sei se estava brincando quando lhe mostramos nosso mapa e pedimos pra nos mostrar onde estamos. Rindo dizia que nunca vira um mapa antes.

Na manhã seguinte participamos da via sacra. Interminável, mórbida e maçante via sacra. Demos uma volta no povoado e no meio do caminho uma pausa pra eleger nosso papel. Raul insistiu em ser Cristo. Porque muitas vezes na escola fizera esse papel, porque até já fora o Cristo em Nova Jerusalém, etc., etc. A mim coube o papel de Judas.

A missa se realizou na gruta, a meia hora de caminhada do povoado, mas que entre reza, cântico e louvor se converteu em duas e meia horas. Na base dum morro e no começo de vasta planície se situa a gruta de larga entrada. Penetramos fundo com tochas preparadas pra esse fim. Não posso descrever a intensa impressão que me causou aquela missa tocante no fundo da gruta a luz de tocha. Encantador e mórbido é o mínimo que posso dizer. Lá pelas tantas o padre levantou o cálice com a hóstia consagrada e pronunciou estas palavras:

Esta é minha carne!
Este é meu sangue!
Quem crer em mim terá vida eterna

Então pegou um alfinete e com ele fincou a hóstia. Raul deu um grito de dor. Seu braço esquerdo sangrou com uma espetada. No rosto do padre percebi uma fisionomia irônica, quase um sorriso sardônico. Corremos pra fazer curativo. Era espantoso que ele, justamente ele, que fora eleito pra representar Cristo na encenação, estava carnalmente identificado com o vinho e a hóstia. Não sei como não me ocorreu antes que a oferenda da comunhão é uma cerimônia vudu.

Na verdade na comunhão não é o corpo de Cristo que nos é oferecido, e sim um pouquinho de cada um de nós a ele! Por isso a necessidade de tantos adeptos: Tirando pouco de cada um seu predatismo não é percebido.

Fiquei pensando qual seria o motivo duma religião tão irracional como o cristianismo se implantar e perdurar dois milênios. Resistiu, mesmo, a nosso tempo de racionalismo exaltado. Mesmo a Ciência, que tanto combate a superstição e qualquer crença irracional, jamais se ergueu contra essa crença absurda num salvador sangrento. Realmente: Superstição é a religião é dos outros. Eles, que debocham dos macumbeiros, dos espíritas e dos adeptos de vida natural, jamais se dispuseram a nos abrir os olhos contra essa crença imposta pela espada e pelo fogo. O mesmo posso dizer do islamismo e do judaísmo, por exemplo. A única diferença é que o islamismo nunca foi intolerante e obscurantista até bem recentemente.

O padre encerrou a missa com um pequeno sermão.

- Irmãos! Somos imensamente privilegiados. Temos o que todas as outras comunidades cristãs jamais sonharam obter, conhecemos o que jamais sonharam conhecer. Somos os guardiões do túmulo de Cristo. Ele, que andou no mundo e faleceu aqui. Vamos, pois, orar em volta do túmulo de nosso salvador!

Era tradição todo ano a procissão terminar ao redor da tumba de Cristo. Nem mesmo o papa teria acesso a ela durante qualquer outra data do ano.

Nos embrenhamos ainda mais gruta adentro, descendo por caminhos tortuosos e escarpados, de escuridão terrificante e unidade perigosa, molhando os pés em arroios muito rasos e estreitos. Lá embaixo, numa ampla galeria subterrânea rica em estalactite e estalagmite, o sarcófago de Jesus sobre um maciço bloco de pedra. Abriram a tampa e, à luz das tochas, naquele ermo de treva, o que vi me pareceu ainda mais medonho do que se visse em plena luz do dia. O corpo de Jesus plenamente conservado durante dois mil anos, catalético, como dormindo. O semblante cruel e bestial de cuja boca semiaberta se projetavam duas pontudas presas de vampiro e donde escorria sangue, sangue este que empapava o branco lençol que o envolvia. Embaixo do lençol se podia ver, em parte, o manto púrpura. Esse cristo se parecia muito com aquele do famoso sudário.

Recuei horrorizado mas me recompus a tempo de fazer crer que era por pura emoção e não horror. Ali estava o deus sangrento do cristianismo, vivo enquanto tantos outros deuses estavam mortos. Fiquei imaginando em que outros abismos estariam Maomé, Moisés, Buda e deuses da Índia.

Senti grande impulso de procurar uma estaca (se estivesse sozinho assim o faria). Um pedaço de estalactite ou estalagmite serviria, e dar cabo desse monstro, desse baluarte duma religião de impostura.

Era esse o destino do tão controverso corpo de Jesus. De suas viagens na Índia e no Tibete aprendeu a arte do transe profundo e com isso pôde resistir ao martírio da cruz. Foi retirado da cruz em morte aparente e levado à profundeza secreta por seus seguidores mais fanáticos. É daí que esse catalético, esse ser em profundo sono, maquina o destino do mundo. Esse estado de profunda coma perverte todos os sentidos cerebrais na busca única à sobrevivência e é isso que torna o vampiro uma criatura completamente bestial. É, portanto, esse estado vampírico que sustenta, há dois milênios, essa religião sem pé nem cabeça e explica sua inominável crueldade. Somente um terremoto ou outro acontecimento que ponha fim a esse monstro dormente fará extinguir essa religião pervertida e perversa.

Há muitas lendas de túmulos de Jesus pelo mundo. Em Jerusalém, no Himalaia, no Japão. Em cada local o povo acredita que está ali o túmulo de Jesus. Muitas teses discorrem sobre o destino final da personagem. Tenho, em meu arquivo, um recorte da Folhasp de sábado, 25 de dezembro de 1993:

The Independent de Londres
Cristo Morreu no Japão, crê vilarejo

O jornal diz que os moradores dum vilarejo ao norte no Japão acreditam que Jesus Cristo está enterrado ali. Segundo eles, Cristo esteve no Japão aos 21 anos pra estudar teologia. Retornou à Judeia pra resgatar o corpo de seu irmão Iskiri, crucificado pelos romanos. Em seguida voltou ao vilarejo de Xingo, via Sibéria, onde se casou, teve três filhos e morreu aos 106 anos. O vilarejo não tem morador cristão e ninguém se interessa por cristianismo. De acordo com as autoridades locais Xingo não tem interesse em explorar o potencial turístico do túmulo de Cristo localizado num arrozal cercado de pinheiro.

Durante longos quartos de hora rezamos e cantamos em torno daquela monstruosidade. Várias vezes cheguei a arrepiar com o choro e lamento tocantes que chegavam quase a ser uivo de dor da perda dum ente querido. Todos viviam intensamente aquela intensa dor. A paixão era deles e não de Cristo. A todo momento sentia um medo de que a emotividade instável daqueles fanáticos em estado de emoção transbordante pudesse fazer com que a delirante missa degenerasse em violência descontrolada que se converteria numa carnificina implacável. Os distúrbios em estádios de futebol, os linchamentos e as guerras começam dessa forma.

Fecharam novamente o sarcófago e empreendemos a viagem de volta. Chegamos no fim de tarde a ponto de fazer a grande encenação da paixão. O povo todo na rua pra assistir e figurar. Noite adentro o teatro se desenrolou: Maria fugindo ao Egito, Jesus expulsando os mercadores do templo, a traição de Judas (felizmente não fui hostilizado nesse momento), a prisão, a crucifixão, entre outras cenas, se desenrolaram.

A crucifixão! Que horror inefável senti naquele momento, quando percebi que, na encenação, Cristo é crucificado de verdade! Como posso expressar o horror que senti ao ouvir os gritos, autênticos gritos de dor, de Raul, que foi coroado de espinho, carregou a cruz e foi pregado nela. E eu ali, preso como Judas, nada podia fazer. Não os pude trazer à realidade, de seu delírio louco, de sua desvairada empolgação. E quando o soldado romano lhe espetou a lança, que dor senti. Assassinos! Os vi matarem meu amigo, matarem de verdade! Quando o desceram da cruz vi que relaxaram minha guarda e corri junto a seu corpo. Estava morto, realmente morto. Se esse é o castigo de Jesus, imagine o de Judas! Fiquei ainda mais apavorado. Estou no papel de Judas, meu castigo será ainda mais atroz! Me lembrei da colgadura. Li, certa vez, que o castigo que os partidários de Jesus aplicaram ao traidor da causa, Judas, foi a colgadura: Judas foi dependurado e seu ventre aberto de cima a baixo vivo, de modo que as vísceras fossem caindo pela força da gravidade. Um castigo ainda mais cruel que o suplício na cruz. Corri feito louco a me esconder na mata. Já estava quase fora do povoado quando me vi cercado.

- Será meu fim. Serei malhado como Judas. Malhado de verdade. Talvez agora, talvez no sábado de aleluia. Então, até lá, sofrerei sabe lá que tortura psicológica.

Fiquei branco, gelado, trêmulo, pasmo, aterrado, quase em choque. O padre se aproximou de mim e disse num tom tranquilizador:

- Por que foges? Achas que te malharemos? Por certo que não! Se Cristo foi crucificado pra nos salvar, então Judas nos fez um bem. É graças a ele que fomos salvos. A ele devemos agradecer: Seríamos muito ingratos se o malhássemos.

Encheram minha camionete de presente e me deixaram ir em paz. Vaguei três dias sem rumo até me achar em local conhecido.

Mesmo assim, só um pensamento me obsedava:

Um dia procurar aquela tumba e destruir seu ocupante.

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