No outro lado dos morros e aquém das nascentes dos rios está
o castelo de Gottfrud, onde há seis séculos reinou o príncipe
Ghásgar.
Contam as memórias secretas escondidas entre as paredes que sua crueldade
e frieza chegavam a níveis só atingíveis por um louco.
Segundo essas memórias, vivia trancado na masmorra, celebrando cerimônia
de magia e pesquisa fantástica, obcecado por uma mítica substância
da longevidade, o kalut, que, acreditava, poderia extrair do sangue humano e
que o organismo o produziria sob tensão de medo alucinante. Assim o príncipe
louco provocava, em sua presa, o mais extremo pavor e atrocidade sem limite.
Durante séculos esse terrível castelo permaneceu intocado, ocupado
por gerações sucessivas de descendentes do príncipe. As
memórias só foram descobertas neste século, quando todo
o castelo passou a pertencer ao governo nerlandês. Já era uma tradição
a sina dos que moravam no castelo. Temor estranho, insegurança, fraqueza,
loucura. Por certo temor supersticioso a nobreza, evitando habitar o próprio
centro do horror passado, vivia nas áreas adjacentes. Isso só
já bastava pra se sentir o hálito do lugar e sofrer, ainda que
debilmente, a herança ambiental como um efeito colateral. Foi pelo interesse
de cientistas do continente e de várias partes do mundo pelos casos desagradáveis
de malefício que persistiam contra todos os métodos racionais,
que o governo nerlandês decidiu comprar o lugar e o converter num centro
de estudo sério e intenso. Mas foi ligeiramente antes disso que cheguei
ao castelo de Gottfrud, quando já desanimava na procura.
O círculo fechado dos esquisitos habitantes do castelo não gostava
de curioso, mesmo cientista. Por isso sabia que teria enorme dificuldade em
descobrir o caminho pra chegar até lá contornando a montanha e
vales tortuosos. Estava eu sozinho, analisando um mapa no alto do vale. Fui
adentrando a mata. O dia estava nublado, prenúncio de chuva ameaçando
cair nas encostas e na mata, mas não previ a iminência da queda
dágua e tomei um atalho. Cortei uma secante na tentativa de voltar e
ousei ir numa nova trilha. Já decidira retomar o rumo quando ouvi o temido
som de trovoada. A água jorrou do céu ensopando tudo. Caminhei
sem rumo até chegar à base da montanha. Pouco a pouco o vento
serenou e a chuva se tornou fina e insistente. Na entrada da caverna havia várias
outras entradas. São conhecidas as lendas de que certas pessoas conhecem
a passagem nesse famoso labirinto tão intrincado quanto as grutas de
Ingesturd. Muito aventureiros intrépidos já se perderam nesses
lugares.
Gastei bastante tempo examinando cuidadosamente as paredes da caverna com a
pequena lanterna, até que vi algo que me chamou a atenção.
Num cantinho discreto havia colunas de pequenas perfurações irregulares.
Na primeira coluna três perfurações, na segunda duas, na
terceira quatro, na quarta um e na quinta três. Aquele deveria ser o mapa
de pedra a que se referiam os conhecedores da passagem ao castelo. Mas nada
me tira da cabeça que a passagem que descobri é apenas a camuflagem
e que deve haver uma passagem a lugares ainda mais secretos.
Decidi arriscar. Poderia me perder a sempre mas não pude resistir. Memorizei
os números e avancei pela terceira entrada contando da esquerda à
direita. Era escuro e assustador. Difícil escolher a entrada certa. O
chão ora se inclinava e era preciso me arrastar pra manter o equilíbrio,
e luzes vindas doutras alas eram tentadoras. Talvez por isso tantos aventureiros
tenham se perdido: Seguiram aquelas luzes que são falsas esperanças.
Ao fim da travessia a luz ia ficando mais intensa. Na frente da saída
da caverna havia uma planície verde e vasta que pisei sem saber onde
estava. Olhei em volta, logo adiante, no alto dum penhasco e na margem do rio,
estava o castelo. Era belo e majestoso, com sua fachada um tanto sombria. As
altas torres diante do rio vigiavam sua entrada e, ao lado, a água despencava
muitos metros abaixo. O lado oposto ao rio estava infestado de árvores
que cresciam até rente às paredes e trepadeiras que se agarravam
à úmida parede cheia de limo. Silencioso e estranho.
Fui entrando por seus portões livres. O fosso estava transponível
e o que se podia ver era um deslumbrante cenário do passado. Ao que tudo
indica os moradores mantêm tudo fiel ao que era outrora. Ninguém
à vista. Continuei admirando, atento, como se pudesse estar, de repente,
no passado. Algumas pessoas apareceram e me trataram como se já fosse
dali. Os segui por uma escada longa e tortuosa. O fim da escada dava a um vasto
salão. Fiquei encostado na parede, vendo os casais que dançavam
estranhamente. Ao som de música lenta e enfadonha, se moviam tão
lentamente que pareciam bonecos. O homem amável, que era um dos herdeiros,
fez o convite pro jantar. Era tudo tão estranho quanto uma armadilha
de antropófagos. O outro salão tinha uma grande mesa quase pronta.
Os criados a preparavam pro jantar. Os convidados se comportavam como meio zumbis.
Poucos falavam, mal pude saber daquela que mastigava tanto e tinha um risinho
demente. Era a condessa. Um criado torto comandava as criadas. O que pude perceber
bem era que a condessa era estúpida e irracional. A todo momento dava
ordem a grito e, a seguir, se contrariava incoerentemente. Uma criada trouxe
um prato, de repente a condessa deu um forte murro na mesa.
- Quem mandou trazer pato agora? Sua estúpida!
Le levantou e continuou gritando.
- Tragam porco! Quero porco!
Um convidado baixinho e atarracado não parava de dar risinho quando dos
gritos da condessa. Eu estava assustado. Pouco depois a condessa derrubou a
bandeja doutra criada e a expulsou do salão. Fiquei ainda mais assustado.
Tive tempo de sobra pra ficar em paz e não faltava quem pudesse me informar.
Aquele não é um lugar normal, é insano. Há muito
que estudamos as gravações materiais mas o obstáculo sempre
foi sua comumente fraca intensidade. Eis a importância ímpar de
Gottfrud: É o lugar onde as vítimas eram submetidas a um
pavor em intensidade máxima. Por isso seria de se esperar que a memória
das paredes fosse mais poderosa que em qualquer outro lugar. Se há um
lugar onde se espera que as gravações psíquicas sejam densas
e sólidas, esse lugar é Gottfrud.
Se aproximando das áreas principais se sente um medo crescente e sensação
inquietante. Um temor que pode evoluir a um pavor que pode levar à loucura.
É como violar um santuário dos mais sagrados e terríveis.
As emoções gravadas há séculos naquelas paredes
se irradiam à pessoa presente e dão a impressão de reencarnação.
Uma transmissão de memória tão compacta que se chega a
crer que se foi um daqueles.
Cheguei mais perto, senti terrível medo. De repente vieram a mim recordações,
recordações de coisas que nunca me aconteceram. Durante horas
herdei toda a memória duma daquelas personagens e acreditei piamente,
no decorrer, que eu era aquela. Conversando com os moradores soube que isso
era comum, que as lembranças das antigas personagens fluem das paredes
aos presentes, de modo que muitos já se declararam a reencarnação
de determinada personagem. Hoje os pretensos reencarnados devem estar brigando
pelo título ou chegaram a um acordo de que são a mesma vida ocupando
dois corpos ao mesmo tempo (mosagia).
Mas é tal a confusão de identidades e de épocas que uma
invasão de impressões distintas atinge o visitante. Assumindo
parcialmente tantas identidades ao mesmo tempo fica impraticável identificar
a identidade influente. Fantasmas bem sólidos perfazem sua rotina repetitiva,
mas cuidado pra não lhes chamar a atenção: São gravações
mais intensas e, portanto, mais versáteis e podem reagir a certos estímulos.
Segundo as teorias mais recentes o grau de intensidade da emoção
gravada é proporcional à versatilidade do fantasma. Assim os fantasmas
comuns, transparentes, se comportam como um filme, indiferentes, repetitivos,
cíclicos. Já as gravações mais fortes reagem um
pouco a estímulos, encaram interlocutores, avançam e os atravessam.
Mas em Gottfrud parecem ou são materiais e dão a impressão
de serem vivos. É como um filme que a cada vez que é projetado
interage com quem o assiste. Gottfrud é um filme encantado.
Todo o medo, todo o ódio, todas as emoções dos que estiveram
ali, estão impressos naquelas paredes, prontos a atingir quem quer que
se exponha a seu raio de ação. Se pode ouvir gritos alucinantes
que cortam a noite e arrepiam a espinha. Gritos horrendos, choros e soluços.
Nada é escamoteado, cada cena, cada evento passado se pode sentir pela
memória que flui do lugar. Os eventos dramáticos se repetem em
ciclos, mas são tantos. É difícil os observar sem ser afetado
e isso constitui uma dificuldade aos estudiosos. Os eventos são tantos
que ainda hoje se vê reprises desconhecidas. Com tenaz paciência
cientistas registram essas fantasmagorias e reconstituem a cronologia desses
horrores.
Ninguém permanece sozinho nos aposentos do castelo, nem fica ali na noite
porque as hordas fantasmagóricas enlouquecem o presente em seu momento
mais vulnerável. As impressões se acentuam e o observador prudente
nunca se expõe além de certo limite de segurança.
As memórias nos contam que Ghásgar era um artista. Empregava toda
sua imaginação e armava um verdadeiro teatro, com enredo e tudo,
pra conseguir novas formas de aterrorizar. Seu enredo era tão confuso
e intrincado que causava medo até em seus cúmplices, mas ele nunca
se confundia. Com suas vítimas improvisava verdadeiras estórias
nas quais tomava parte como protagonista. Dos relatos temos, por exemplo, que
já se misturara a suas vítimas como se fosse uma delas. Coisa
que exigia grande intrepidez, pois seus carcereiros tinham de saber quando estava
se fazendo de prisioneiro reclamando pra sair, ou ordenando realmente. Muitos
de seus carcereiros pereceram graças a esse jogo confuso.
Quando colocava um dos seus entre os prisioneiros, dizendo que tudo seria representação
e que mesmo que dissesse que o iria matar ou o pendurasse, isso seria só
representação. Assim Ghásgar tinha um eficiente meio de
fazer de seus subordinados verdadeiras marionetes. De certa forma Ghásgar
contribuiu pra preservar certas tradições porque as utilizava
em suas peças e foram registradas pelos cronistas, e assim chegaram até
nós.
Ao anoitecer pude ouvir os uivos que cortavam a noite vindos da torre abandonada.
Disseram que eram feitos pelo príncipe pra apavorar suas vítimas.
Pude ver, com lentes, sombras em movimento frenético nas janelas qual
uma dança de loucos. Aqueles eram períodos de recrudescimento,
muitos falavam de possessão porque Gottfrud é uma imensa
pilha supercarregada de pavor. As memórias das paredes irradiam ao observador
e suplantam sua personalidade.
Antes de ir embora me deixei submeter a um rito de licença, pois a maldição
do príncipe impedia que estranhos saíssem impunemente do castelo,
mesmo eu tendo ficado somente na periferia dos eventos. Não é
prudente desafiar tabus só por teimosia.
Hoje os cientistas estão estudando detalhadamente esse lugar e as surpresas
não são poucas.