O universo não é só mais estranho do
que imaginamos
É mais estranho do que podemos imaginar
JBS Haldane
Lamentei muito não ter ido com Valdo mas hoje dou graças que
tenha sido assim.
Valdo, que domina vinte idiomas e entende outros dez, que estudou avidamente
as culturas antigas, nutre um fascínio fenomenal pelo passado misterioso
da Terra. Falar de civilizações perdidas e escondidas como Chambala,
Agarta e tantas outras enchia seus olhos de lágrima.
Um dia eu lhe trouxe uns rolos de couro com inscrição, coisa que
encontrei num mercado na Índia. Estudou com afinco durante um mês.
Em seguida foi acampar nalgum lugar distante. Quando voltou me contou, exultante,
que encontrara a entrada duma caverna em Mato Grosso.
- Não acreditarias. É incrível! O que descobri é
o depositário duma civilização desaparecida. Uma grande
biblioteca, duma poderosa civilização do passado distante, pode
estar ali. Vamos. Vamos descobrir essa maravilha!
Então começou o preparativo da grande viagem. Parecia mais um
acampamento comum, pois não queríamos muita especulação
em torno do que faríamos. Chegamos à chapada, lugar que tantos
místicos afirmam ser mágico, dada a formação da
rocha, a estrutura do terreno, com energia telúrica e lençóis
subterrâneos, de modo a influenciar o psiquismo.
Levamos três dias pra chegar ao local. Atravessamos um pântano,
descemos uma encosta escarpada tendo no fundo um boqueirão de água
cristalina. Demos a volta nele e chegamos a um desfiladeiro tortuoso meio escondido
na mata. Abrimos caminho a facão atravessando uma espessa muralha de
mato até chegar a uma imensa clareira com entradas de grutas de vários
formatos.
Acampamos ali e nos pusemos a perscrutar o lugar. Pegamos nossas pranchetas
e máquinas fotográficas e tomamos, cada um, rumo oposto pra comparar
o resultado. Valdo voltou exultante. Uma daquelas grutas, segundo ele, parecia
ser a entrada a um mundo fascinante.
- Numa delas fiz o teste do pêndulo, pois senti ser um local diferente.
E confirmei, mesmo. Tem energia muito boa ali. Me senti muito bem, como embevecido.
O lugar parece inspirar felicidade, fascínio, prazer de viver. Nalgumas
paredes vi inscrições que parecem uma variação do
grego. Fui adiante e não teria me detido se estivesse sozinho. Voltei,
a contragosto, num ímpeto, pois tinha compromisso contigo. Vamos, vamos!
Amanhã, ao raiar do dia, estaremos lá.
Foi, então, que, num escorregão, caí e rolei uma ladeira.
Torci o tornozelo. Contrariado tive de ficar na barraca. Valdo engatilhou minha
espingarda, pediu socorro através do celular e me deixou em linha direta
com ele. Então passei o tempo analisando, ao microscópio, as amostras
que recolhera da caverna: Raspa da parede, do solo, pequenas pedras, pontas
de estalagmite, água de poça.
- Tive de optar por uma galeria. Escolhi a da direita. Creio que a corda dará
pra chegar até o fim. Senão, terei de espalhar papel picado pra
marcar o caminho.
A análise das amostras me deixou pensativo, pois em vez da natural simetria
hexagonal, característica da matéria inanimada, a estrutura molecular
apresentava simetria pentagonal, própria dos seres vivos.
- Como assim?
- A estrutura dum cristal, por exemplo, sempre apresenta simetria hexagonal.
Um floco de neve tem seis pontas. Ao passo que tanto uma flor quanto uma estrela-do-mar,
em geral, têm cinco pontas. Estranhamente a organização
molecular das amostras apresenta simetria pentagonal, própria dos seres
vivos!
Pausas de duração variada. 15 minutos, 10 minutos, meia hora.
Certa vez ficou uma e meia hora em silêncio. Eu nunca o interrompia com
interpelação.
- Vejas! Uma inscrição em grego! É grego mesmo! Fala sobre
o labirinto do Minotauro. Como é que pode?! Teseu e Ariana. No lado oposto
conta uma história que parece ser parte da Odisseia de Homero.
Irei adiante. É fascinante. Parece que estou preste a descobrir um mundo
novo. Muito da história perdida da humanidade pode estar aqui. É
uma inefável sensação de fascínio e motivação.
- Pareces um lovecraft ao avesso.
- Nem só o terrível e nefasto existe no mundo. Existe também
o maravilhoso e inebriante. Não só o pavor impronunciável,
também o fascínio inefável. Vejo inscrições
desconhecidas. Certamente dum passado muito remoto. Só ligo a lanterna
em momento necessário. Vejo, agora, uma estátua incrustada na
rocha. Uma obra-prima.
Nesse ponto mais silêncio. Senti um tanto de inveja. Nada há mais
maravilhoso que um daqueles momentos de grande inspiração, quando
nos sentimos eufóricos e cheios de criatividade. Como quando eu escrevia
uma sátira e, vez e outra, largava o teclado e ria a gargalhada de minha
ridícula personagem. Era essa a sublime euforia que ele estava sentindo.
A mais deliciosa sensação à qual um intelectual pode aspirar.
Um lovecraft ao avesso, literalmente.
- Incrível, incrível! Neste ponto a luz se infiltra pelo teto
dando ao recinto uma claridade tênue e avermelhada. É aqui a entrada
da biblioteca! Meu coração pulsa ante descoberta tão maravilhosa.
Tens ideia da importância, do alcance, desta descoberta? Por nada
nesta vida eu retrocederia. Serei o primeiro homem contemporâneo a pôr
os olhos nesses manuscritos guardados há incontáveis milênios.
Uma luz agora amarelada. Entrei ao recinto da biblioteca. Uma abóbada
imensa. Rente às paredes, até o teto, estantes escavadas na rocha.
Coisa linda! Contidos nelas rolos de couro, tijolinhos de argila, até
placas de metal. Incrível! Miríades de obras das mais diversas.
A biblioteca de Alexandria deve estar toda contida aqui. Uma biblioteca digna
de Borges. Levarei apenas alguns exemplares pra estudar. E voltarei pra repor
tudo e deixar exatamente como estava. Este lugar é campo pra muitos e
muitos estudiosos.
Um intervalo de silêncio mais longo que o habitual. Meia hora... 45 minutos.
- Valdo! Valdo! Respondas! O que há?
A empolgação deu lugar a um tom de voz amedrontado.
- Estranho. As obras parecem ter uma estranha fosforescência. Não
posso retirar alguma, pois elas são prolongamentos da parede! Como se
fossem esculturas na parede! E agora não posso voltar porque estou emparedado.
A entrada se fechou silenciosamente. Não há mais entrada. É
tudo parede! Estou preso.
- Valdo! Valdo! Calma! Procures a saída. Tem de ter uma saída.
- Não tem. Das paredes escorre uma substância ácida. Estou
no estômago da criatura. Trepei nas prateleiras mas não adianta.
É meu fim. Agora compreendo. Caí na armadilha igual uma mosca
cai numa planta carnívora, atraída por aroma ou cor. Em meu caso
a isca foi intelectual. Por isso senti tanta empolgação, tanto
fascínio, tanta curiosidade, tanta vontade de ler e conhecer. Este é
um predador que atrai a presa forjando um fascínio intelectual. Decerto
num passado longínquo multidões vinham estudar aqui e eram digeridas.
Nalgum estágio da evolução, numa era, quiçá,
anterior aos dinossauros, uma criatura desenvolveu um predatismo psíquico.
Com o surgimento do intelecto humano ela desenvolveu uma isca conforme esse
intelecto. É o mimetismo da inteligência. Uma criatura que cria
religiões, ufos, ideologias, assombros, como fachada, pra fascinar sua
presa. Como a flor carnívora que exala cheiro de carniça pra atrair
mosca, esta excita o intelecto pra atrair os humanos. O ser humano não
deveria ser tão ingênuo em pensar que mesmo se multiplicando como
rato não surgiria um predador que encontraria uma maneira de vencer seu
intelecto.