A Garganta da Serpente
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Tia Cinira

(Mário Jorge Lailla Vargas)

A típica velhinha dos contos ingleses de crime e suspense. Extremamente magra, mirrada, alvo cabelo, passando dos 80 anos. Sempre vestida de preto, mesmo nos dias mais quentes de verão. Um falar manso, baixo e rouco. Extremamente econômica no falar e no andar. Parece só dizer ou fazer um movimento quando muito necessário, como se seu combustível fosse uma pequena pilha de brinquedo infantil.

Uma parente afastada que nos momentos difíceis acolheu papai e mamãe. Muito querida também por minha irmã, pois nos momentos difíceis da separação foi tia Cinira quem deu sábios conselhos.

- Caias fora. O mandes sair de casa imediatamente. Te livres dele o quanto antes. Só está te explorando.

Ela gostava de tia Cinira porque ouvia e aconselhava sensatamente sem bancar a moralista, sem impor, sem dar bronca. Por isso ficava em festa quando tia Cinira aparecia.

Durante os anos difíceis, com meu pai desempregado, mamãe ia a São Paulo todo mês, de ônibus, buscar roupa pra vender. Durante muitos anos sustentou a família com a marreta. Tinha clientes espalhados na cidade toda. Naquela época a estrada ligando Campo Grande a Três Lagoas ainda era de terra, com isso os ônibus davam uma volta enorme pra ir a São Paulo, portanto a viagem era mais cara e demorada. Uma vez, aos doze anos de idade, me levou pra ver como era. Pra eu constatar como não era fácil aquela odisseia. Um lanche rápido num bar qualquer, com direito a dor-de-barriga daqueles salgadinhos duvidosos e bater perna o dia inteiro carregando duas enormes sacolas que, no fim do dia, estariam cheias, indo à fábrica Hermitex, em Campinas, e várias lojas de turco em São Paulo. Tudo isso pra voltar no mesmo dia, no crepúsculo. Foi tia Cinira quem ensinou a mamãe esse esquema de marreteira.

Assim vive tia Cinira. Morando em Bauru, São Paulo, visitando ora um ora outro parente. Uns dias na casa dum filho, em Campinas, outros visitando os netos em Marília, uma temporada com uma filha em Campo Grande... Sempre que vinha a Campo Grande tia Cinira não deixava de avisar mamãe, que ia de carro a buscar e a levava de volta. Assim passava o dia todo do sábado e ou domingo.

Uma figura simpaticíssima, uma voz rouquinha, mansa, calma, falando baixinho parecendo convalescente. Mas tinha muito assunto. Era agradável conversar com ela. Tinha opinião sobre as coisas como qualquer pessoa bem instruída. Em nada se intrometia e tinha muito pra contar.

Só era xarope pra comer. Não comia carne, de jeito nenhum, nem de peixe. Mesmo o macarrão de mamãe ela recusava porque macarrão tem molho e molho sempre tem carne, nem que seja só o suco da carne no molho. Não deixou de observar que comera bem a farofa porque farofa não tem carne, mas melhor omitir o deslize: Tem muito ovo. Também não toma líquido à refeição. Não toma água, só chá. Mesmo nos dias extremamente quentes quase não toma líquido. Muito pouquinho. Também o que come no almoço é mínimo.

Eu dizia que ela não precisava se alimentar, só ligar à tomada elétrica. Comentei com mamãe que pessoas assim são suspeitas de sugar energia alheia. No livro O vampirismo, de Robert Ambelain, li casos sobre vampirismo dos vivos. Tinha a velhinha espanhola que toda empregada sua logo definhava e morria. Isso a fez pensar e lembrar umas coisas.

A filha e o genro que moram com ela ficaram muito doentes e a outra filha, que mora com ela em Campo Grande está problemática. Na casa de sua filha, onde ela estava ultimamente, em Campo Grande, todo mundo pegou a tal gripe frei Damião (que custa ir embora) e ela nem se sentiu ameaçada. Quando mamãe e papai moravam com ela (tinham um hotel, isso na década de 1970, bem antes do caso do rei Baltazar) foi um período de atraso, desemprego, quase miséria. Só quando ela se foi tudo começou a melhorar novamente. Um filho ficou meio louco. E com ela nada acontece, tudo vai sempre bem.

Todas as outras pessoas que têm contato prolongado com ela adoecem ou atrasam na vida. Minha irmã:

- Mas ela é tão agradável, encantadora.

- Encantadora até demais. Pessoas assim, que sugam energia dos outros, instintivamente são encantadoras, fascinantes. O perigo maior é a ti, que estás fragilizada, que tens diabete. Não vês como quase não come, não toma água nem remédio? Falando com ela parece que se está falando com uma sonâmbula. Não tem vivacidade. Seu movimento e fala são extremamente econômicos. É quase um vegetal com cérebro. Parece que economiza energia ao máximo. Como se estivéssemos sob um frio glacial ou inverno nuclear. Conversar com ela é o mesmo que conversar com alguém hipnotizado. Quase não fala, não ri, não gesticula, não conta caso. Seu olhar é vago e abobado. Sua voz rouca nos remete às bruxas dos contos infantis: Voz rouca que nos fascina sugerindo sabedoria e ponderação ao mesmo tempo que nos faz apiedar de sua fragilidade e meiguice.

- Ela disse que não suporta o vento, que o vento a enfraquece.

- Pois então! Qualquer excesso pode tirar sua energia. Por isso sempre se veste de preto: Pra receber o máximo de calor. Se comesse mais ou bebesse muita água isso aceleraria seu metabolismo, gerando gasto de energia. É um autêntico candidato a vampiro póstumo.

- Hoje, quando passou o dia aqui, tive muita dor de cabeça.

- É assim mesmo. A personalidade mais forte suga a outra.

Mamãe:

- Em mais de quarenta anos que a conheço, nunca a vi adoecer. Também nunca a vi sozinha. Até hoje ela vive assim: Um pouco em casa dum, outra temporada em casa doutro. Passa três meses em Bauru, depois mais dois em Campo Grande, então se hospeda na casa doutro, e assim vai fazendo um rodízio. Não fica num só lugar, nem com as mesmas pessoas.

- Porque se o fizesse secaria a fonte e chamaria atenção. Isso já aconteceu e ela aprendeu instintivamente a fazer como o governo: Roubar um pouquinho de cada um.

Há anos não vemos tia Cinira. Morreu? Duvido.

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