Nem sei o que foi feito dessa novíssima anestesia brasileira. Nunca mais
se falou no caso. Vez ou outra me indago se mais alguém passou a mesma
experiência que eu.
Na véspera de 21 de abril tomei de vez consciência de que precisava
mesmo ir ao dentista. O que cada vez que parecia que tinha passado voltava com
mais e mais intensidade. Percebi que fazer bochecho com pinga era efêmero
paliativo. Só me restava respirar fundo e superar o profundo pavor que
tenho de dentista. Afinal, medo de dentista e de avião quem não
tem?
- Ai, meu Deus! Terei de ir!
Mesmo sabendo que Deus não existe a gente usa a expressão. É
cultural.
E agora? Como acharei plantão? Por sorte um colega me contou que estavam
fazendo experiência com uma revolucionária anestesia local que
provoca inconsciência mas que não é anestesia geral. Isso
me empolgou, pois que o que os olhos não veem o coração
não sente.
Me apresentei como voluntário no dia 21. Doutor Leandro me recebeu em
aparatoso e moderno consultório junto a sua encantadora assistente, senhorita
Neide.
Foi a moreníssima Neide quem aplicou a injeção que me fez
relaxar, pois estava tão trêmulo que ela, várias vezes,
ameaçou e retirou a agulhada. Devem ter rido muito de mim, nunca devem
ter atendido a um adulto tão medroso quanto eu.
A última coisa que vi foram os olhos negros de Neide. Então tudo
ficou turvo. Senti como atravessando uma névoa narcótica e cinzenta.
Percebi que na verdade estava no chão ao lado de várias pessoas
com roupa antiquada, que olhavam assustadas a uma porta fechada. Falavam muito.
Olhei ao redor. Era tudo muito tosco e simples. Estaria nalguma fazenda? De
dentro da porta ouvi gritos de dor que me fizeram gelar a espinha. Dali a pouco
saiu tonto, cambaleando, um velhinho que gemia segurando o maxilar. O próximo
era um negro sem camisa. Estava algemado. Dois homens brancos o seguravam. Gritava
tentando fugir mas foi levado a força a dentro, onde mais gritos de arrepiar
o cabelo e batidas metálicas de atiçar a imaginação
com a mais horripilante expectativa.
Eu seria o próximo, por isso fui levantando de fininho mas fui interceptado
por uma velhinha de alvo cabelo e um jovem muito alto e muito magro. Ela foi
dizendo num sotaque estranho:
- Vamos, meu filho, coragem. Nem penses na consequência de deixar
teus dentes nesse estado. Deus te livre! Aproveites que quem está ali
é doutor Tiradentes, o melhor arrancador que existe. Ninguém morreu
por obra dele. E sabe-se-lá quando estará de volta a esta vila!
Voltei a meu lugar. Lá dentro a confusão era infernal. Parecia
que o negro procurava fugir a todo custo. Sozinho correndo e gemendo, segurando
a boca. Os dois brancos saíram atrás calmamente.
Fiquei aterrorizado. Quis fugir mas três homens, entre eles um dos que
seguraram o negro, me conduziram na marra lá a dentro e me amarraram
a uma cadeira inclinada e me administraram goela abaixo uns goles de cachaça,
e da boa. Um homem maduro, moreno, de cabelo curto, era Tiradentes. Não
se parecia com o cabeludo de camisola e corda no pescoço dos livros escolares.
Estranho que nessa hora me veio à cabeça a questão de por
que Tiradentes é patrono da polícia militar e não dos dentistas.
Seus assistentes eram dois negros suados, sem camisa e com tremendo bafo de
pinga. Amarraram minhas pernas. Um enfiava em minha boca uma barra de ferro
pra a manter aberta enquanto o outro deu, com o braço direito, uma gravata
em minha testa pra manter minha cabeça contra o encosto da cadeira. Fiquei
horrorizado ao ver pegar dois longos alicates sujos. Nem os esterilizara. E
saberia o que é isso? Talvez ainda nem tivessem inventado o microscópio.
Nem sei descrever o que sofri. Meu dente era enorme, arraigado, acavalado e
cariado. Ele puxava de todo jeito e não conseguia arrancar. Quase desmaiei
de dor. Gritei mais que todos os outros juntos. Ele mudava de posição,
trocava de alicate, blasfemava, esbravejava, xingava a mãe. Minha camisa
já estava empapada de sangue. Quando, enfim, arrancou senti uma dor inimaginável,
intensificada ainda mais por mais outros goles de cachaça que me ensoparam
a camisa já quase toda empapada de sangue.
Desmaiei. Fui voltando à consciência lentamente. Quis gritar. Quando
abri os olhos vi que estava com Neide e Leandro. Ela foi dizendo:
- Foi um sucesso. Estava difícil extrair mas doutor Leandro é
craque mesmo. Não disse que sentirias absolutamente nada? Essa nova anestesia
é uma maravilha.
Juro, juro que, se estivesse armado naquele momento, teria matado com todas
as balas aquelas duas equivocadas criaturas!