A Garganta da Serpente
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Nunca vás ao dentista em 21 de abril

(Mário Jorge Lailla Vargas)

Nem sei o que foi feito dessa novíssima anestesia brasileira. Nunca mais se falou no caso. Vez ou outra me indago se mais alguém passou a mesma experiência que eu.

Na véspera de 21 de abril tomei de vez consciência de que precisava mesmo ir ao dentista. O que cada vez que parecia que tinha passado voltava com mais e mais intensidade. Percebi que fazer bochecho com pinga era efêmero paliativo. Só me restava respirar fundo e superar o profundo pavor que tenho de dentista. Afinal, medo de dentista e de avião quem não tem?

- Ai, meu Deus! Terei de ir!

Mesmo sabendo que Deus não existe a gente usa a expressão. É cultural.

E agora? Como acharei plantão? Por sorte um colega me contou que estavam fazendo experiência com uma revolucionária anestesia local que provoca inconsciência mas que não é anestesia geral. Isso me empolgou, pois que o que os olhos não veem o coração não sente.

Me apresentei como voluntário no dia 21. Doutor Leandro me recebeu em aparatoso e moderno consultório junto a sua encantadora assistente, senhorita Neide.

Foi a moreníssima Neide quem aplicou a injeção que me fez relaxar, pois estava tão trêmulo que ela, várias vezes, ameaçou e retirou a agulhada. Devem ter rido muito de mim, nunca devem ter atendido a um adulto tão medroso quanto eu.

A última coisa que vi foram os olhos negros de Neide. Então tudo ficou turvo. Senti como atravessando uma névoa narcótica e cinzenta. Percebi que na verdade estava no chão ao lado de várias pessoas com roupa antiquada, que olhavam assustadas a uma porta fechada. Falavam muito. Olhei ao redor. Era tudo muito tosco e simples. Estaria nalguma fazenda? De dentro da porta ouvi gritos de dor que me fizeram gelar a espinha. Dali a pouco saiu tonto, cambaleando, um velhinho que gemia segurando o maxilar. O próximo era um negro sem camisa. Estava algemado. Dois homens brancos o seguravam. Gritava tentando fugir mas foi levado a força a dentro, onde mais gritos de arrepiar o cabelo e batidas metálicas de atiçar a imaginação com a mais horripilante expectativa.

Eu seria o próximo, por isso fui levantando de fininho mas fui interceptado por uma velhinha de alvo cabelo e um jovem muito alto e muito magro. Ela foi dizendo num sotaque estranho:

- Vamos, meu filho, coragem. Nem penses na consequência de deixar teus dentes nesse estado. Deus te livre! Aproveites que quem está ali é doutor Tiradentes, o melhor arrancador que existe. Ninguém morreu por obra dele. E sabe-se-lá quando estará de volta a esta vila!

Voltei a meu lugar. Lá dentro a confusão era infernal. Parecia que o negro procurava fugir a todo custo. Sozinho correndo e gemendo, segurando a boca. Os dois brancos saíram atrás calmamente.

Fiquei aterrorizado. Quis fugir mas três homens, entre eles um dos que seguraram o negro, me conduziram na marra lá a dentro e me amarraram a uma cadeira inclinada e me administraram goela abaixo uns goles de cachaça, e da boa. Um homem maduro, moreno, de cabelo curto, era Tiradentes. Não se parecia com o cabeludo de camisola e corda no pescoço dos livros escolares. Estranho que nessa hora me veio à cabeça a questão de por que Tiradentes é patrono da polícia militar e não dos dentistas. Seus assistentes eram dois negros suados, sem camisa e com tremendo bafo de pinga. Amarraram minhas pernas. Um enfiava em minha boca uma barra de ferro pra a manter aberta enquanto o outro deu, com o braço direito, uma gravata em minha testa pra manter minha cabeça contra o encosto da cadeira. Fiquei horrorizado ao ver pegar dois longos alicates sujos. Nem os esterilizara. E saberia o que é isso? Talvez ainda nem tivessem inventado o microscópio.

Nem sei descrever o que sofri. Meu dente era enorme, arraigado, acavalado e cariado. Ele puxava de todo jeito e não conseguia arrancar. Quase desmaiei de dor. Gritei mais que todos os outros juntos. Ele mudava de posição, trocava de alicate, blasfemava, esbravejava, xingava a mãe. Minha camisa já estava empapada de sangue. Quando, enfim, arrancou senti uma dor inimaginável, intensificada ainda mais por mais outros goles de cachaça que me ensoparam a camisa já quase toda empapada de sangue.

Desmaiei. Fui voltando à consciência lentamente. Quis gritar. Quando abri os olhos vi que estava com Neide e Leandro. Ela foi dizendo:

- Foi um sucesso. Estava difícil extrair mas doutor Leandro é craque mesmo. Não disse que sentirias absolutamente nada? Essa nova anestesia é uma maravilha.

Juro, juro que, se estivesse armado naquele momento, teria matado com todas as balas aquelas duas equivocadas criaturas!

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