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O mistério das tiras
Taquaraçu de Baixo, Minas Gerais, é uma dessas cidadezinhas que
nem aparecem no mapa. Cidadela suigêneris, onde os habitantes se reúnem
num curral improvisado de palco pra ver e encenar peça teatral escrita
e produzida pelos próprios moradores. Tradição já
de século, que se incorporou aos hábitos da pacata gente do lugar.
Ali nasceu a lenda dum desses autores do povo, alma grandiosa e imensamente
sonhadora, cuja peça a cidade não se cansava de esperar. Enquanto
seus colegas de ofício e arte exibiam suas pequenas e apreciadas peças
nosso amigo preparava algo um tanto grandioso e mais elaborado. Apaixonado pela
dupla dO gordo e o magro e por Carlitos, elaborava uma peça protagonizada
pelos três com Carlitos mudo e a dupla falante. Sonhava ver sua peça
convertida em filme com os próprios astros no papel principal ou talvez
com Grande Otelo, Oscarito e Mazarope. Se conta que, além da peça
escrita, desenhara em tira de quadrinho todo um longa-metragem pra cinema, ou
seja, a versão cinematográfica de sua peça.
Na cidade ninguém sabia mais que isso. O projeto não chegou a
ser visto. Os teatrológicos habitantes da cidade não chegaram
a conhecer o conteúdo da obra que com tanto denodo lhes reservava. Nem
os mais antigos moradores sabiam o que estava realmente escrevendo. Só
contam que todos comentavam e esperavam a tão prometida obra com O gordo
e o magro, Carlitos e Jeca Tatu. Viajara e não pudera voltar. Falecera
e seus papéis levara junto. Só o mais velho morador pôde
me dar uma pista, na dúvida, não se lembrando bem o nome do local
a onde a misteriosa personagem viajara. De sua boca uma pronúncia meio
gaguejante e indecisa: Pirituba.
Não encontrei cidade alguma chamada Pirituba. Há uma Piratuba
em Santa Catarina e como nosso autor é catarinense fui buscar informação
naquela cidade. Nada encontrei. Nunca esteve ali.
Foi muito por acaso, anos depois, que pude retomar o fio da meada. Como amante
da fruticultura conheci através do intercâmbio de semente da revista
Globo Rural outro amante da fruta, e artista da terra: Roberval, em Piritiba,
na Bahia. Um dia Roberval me mandou o seguinte desenho:
Desenho intrigante. Esse maravilhoso desenho, digno de ser colocado na mais
bela moldura, poderia ser a chave do mistério. Ali estavam, juntos, Carlitos
e Jeca Tatu! Pedi informação. Queria saber se aquela inteligentíssima
comparação lhe veio ao cérebro independentemente ou desenhara
algo que vira. Roberval me contou, então, uma interessante história.
Certa vez dormira até tarde porque na noite anterior participara como
jurado num festival musical em sua cidade. Como músico e desenhista prestigiado
em sua terra é sempre rodeado de convite. Aproveitou o resto do dia pra
garimpar na biblioteca pública da cidade. Ali descobriu, num velho e
empoeirado baú, uma longa estória em quadrinho muito maluca onde
doutor Jeckyll dO médico e o monstro é Jeca Tatu, o doutor
Jeca, na pele de Stan Laurel, o magro dO gordo e o magro. O gordo Oliver
Hardy é o monstro e o herói da trama é Carlitos.
Não era possível! Aquilo desvendava o mistério que eu tinha
por insolúvel. Fui a Piritiba copiar a tal estória.
Há muitos anos falecera, em Piritiba, um senhor que não se sabia
donde era. Entre seus pertences encontraram folhas e mais folhas de estória
em quadrinho, dispostas em tira, coladas só nas pontas em folhas maiores
que papel ofício. Guardaram tudo na biblioteca da cidade.
Conheci Roberval em pessoa numa chuvosa terça-feira. Passamos o dia falando
sobre e vendo nossas plantas. Não posso dizer que estava ansioso pra
ver as tiras porque as frutas me são tão fascinantes quanto elas.
Bem disse Roberval:
- Na verdade nada há de oposto entre nosso amor às frutas e nosso
amor à arte, pois fruta é arte da natureza. Muito me diverte imaginar
uma fruta que não existe, mas jamais conseguiria imaginar seu sabor.
Se a jaca não existisse quem de nós seria capaz de a projetar?
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O médico e o monstro dO gordo e o magro
O estranho caso do doutor Laurel e do senhor Hardy era o título da obra, o filme que o gordo e o magro não fizeram e que Mazarope poderia ter feito. Cada quadrinho corresponde a um fotograma de filme mas, passando bem em revista, notei que há dois volumes. O volume menor é a versão estória em quadrinho onde estão suprimidos os fotogramas intermediários que dão continuidade de movimento. Com balões de diálogo e tudo. Por último folhas soltas com notas explicativas.
Numa bem caipira cidadela do interior de Minas chegou pra ficar o doutor, ou
que assim se autodenomina, Jack Tatoo (que é o magro Stan Laurel bem
caracterizado de Jeca Tatu). Jack Laurel Tatoo, como se apresenta, é
logo aportuguesado a Jeca Tatu. É o Jeca Tatu tentando se passar por
cientista estrangeiro pra passar bem. Ninguém quer acreditar que aquele
jeca doentio é um ilustre cientista, mas explica que está ali
a tratamento médico contra o excesso de trabalho, por isso tem de levar
vida simples e pacata.
Diz o folclore junino que há ervas que devem ser colhidas na noite de
São João, 23 de junho, pra terem qualidades sobrenaturais, médicas
e teraupêuticas.
É tempo de festa junina. Doutor Jeca resolveu fazer um quentão.
Foi ao mato e colheu ervas que nem sabe o que são, pra incrementar a
receita. Mas eis que o quentão incrementado é, sem querer, uma
poção transformista. Doutor Jeca se transformou no gordo e alegre
senhor Hardy.
Nas noites de festança um travesso e misterioso caipira levantava a saia
das moças. Nas danças de quadrilha é o mais alegre e folgazão
(ou seria melhor dizer folgadão?). Nas barracas come e bebe de graça.
As mulheres lhe têm enorme simpatia e os homens muito temor e antipatia,
pois se com elas ele é licencioso e brincalhão, com eles é
um feroz cão guardião.
Mas um dos moradores do lugar é Carlitos, o único que consegue
proteger a namorada contra os assanhos de senhor Hardy. Então entram
as mais engraçadas peripécias. O filme é falado mas Carlitos
não fala. Está tal qual em seus filmes mudos, com aquele jeitão
acelerado e desengonçado. Numa dessas Hardy correu atrás de Carlitos,
tropeçou, caiu na fogueira e saiu correndo atabalhoado com a bunda em
chama.
Agora senhor Hardy está mais abusado. Abaixa a calcinha das moças.
As moças estão gostando muito da brincadeira, mas os homens...
- Á, não! Abaixar calcinha já é demais. É
desaforo!
Mas questão de honra pra senhor Hardy é chegar à namorada
de Carlitos Champlim, ciosamente protegida por um jogo de cintura de dar olé
em lambadeiro em dia de graça ou de deixar Garrincha no chinelo.
E Carlitos sempre mudo, pois o enredo é montado de tal forma a Carlitos
não sair de seu universo original. Era como se fizesse uma montagem entre
um filme dO gordo e o magro e um de Carlitos.
Na cola de doutor Jeca está o delegado Mazarope (aquele nosso famoso
caipira), que mais parece outro Jeca, muito desconfiado do fato do monstro ter
aparecido quando chegou o doutor Jeca e nunca se verem os dois juntos.
- Entendas, doutor Jeca: Não quero te prender. Quero, apenas, que me
dês a receita desse teu maravilhoso licor que nos torna o gostosão
das meninas.
- Mais eu fiz pur acásu. Num tenho a fórma. Também gostaria
di discubri.
- Então descubramos a fórmula. Penses, penses, que amanhã
virei àqui.
Jeca Tatu foi lembrando, lembrando ao longo da tarde...
- Á!, jurubeba, que eu quiria me fortificá. Poejo pra meus gais.
Boldo pra meu figo. Qui mais?... Vejamo...
Nessa noite senhor Hardy apareceu, pintou e bordou. Quem ficou contente foi
o delegado. Ainda mais contente que as moças da cidade.
Jeca Tatu preparou sua trouxa pra virar doutor Jeca e senhor Hardy noutra freguesia
bem longe, pois aqui já tem concorrência.
- I agora?, dotô delegado. Cumé que vai lidá quá
brabeza dos home quando for brincá com as moça que nem Macunaíma?
- Pode dexá. Amansá esse povim é coisa queu sei fazê
mutcho bem!
- Intão tá. Só cuida de num levantá a batina do
padre.
Riu e se foi.
Nas noites de folguedo aparecia no lugar do senhor Hardy outro gordo alegre
e brincalhão. É Zeca Levanta-saia. O delegado finge antipatizar.