A Garganta da Serpente
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A múmia

(Mário Jorge Lailla Vargas)

A festa prosseguia alegre. O seleto grupo pilheriava acerca de assuntos diversos como sole acontecer nessas alegres reuniões tão típicas dessa época.

Entre os honoráveis cavalheiros estava um dos favoritos da marquesa de Heroaldine, nossa anfitriã. Era um estudante de medicina muito alegre e espirituoso. Já declamou colega seu assim:

Vejam nosso amigo conversador
que contraste a juventude
Como quer que tudo mude
entre tanto conservador?

- Rá-rá! Uma múmia voltar à vida e sair andando? Como são ridículos esses filmes! Mais fácil seria uma cadeira dançar e cantar. Impossível! Uma múmia é um corpo que teve as vísceras extraídas e que foi ressecado e embalsamado.

Então um arqueólogo, que estava ali de passagem, professor Nestorianus, quebrou o clima de farra contestando serenamente a ideia.

- Pois contarei o caso de meu colega, doutor Angus.

E começou assim:

Nos confins da Nicodéfia, numa das inumeráveis cavernas entre os montes Okrug, doutor Angus finalmente realizou seu velho sonho. Após tantos anos em busca e percalço conseguiu encontrar a múmia do rei Okran, o sábio, que teria vivido em volta do ano menos quatro mil e foi o mais culto, pacífico e admirado de toda sua dinastia. Angus encontrou sua múmia intata e com todos os apetrechos reais. Despachou a múmia a Cravejor. Em seu laboratório executaria finalmente seu grande projeto. Além da múmia despachou, também, uma grande quantidade de papiro, uns de língua conhecida, outros ainda a decifrar. Voltou feliz a sua terra.

Em seu laboratório reidratou uma célula da múmia, retirou um pedaço da cadeia de adeene, retirou uma porção igual do adeene duma bactéria e colocou aquele pedaço do adeene da múmia na bactéria. Com isso a bactéria passou a se comportar e se reproduzir com características meio suas meio da múmia. Com esse pequeno teste pôde verificar que seu intuito daria certo.

Mesmo pruma bactéria nova ser criada seria preciso realizar milhões de operações de combinação, o que poderia levar dez anos. Imagine um ser humano! Porém Angus é o pioneiro da engenharia genética computadorizada. O computador pode agilizar essas combinações e a bactéria pode ser criada num instante. Pra reconstituir a múmia é preciso fazer uma analogia da célula reidratada com as outras que não mais existem. A múmia dará origem a uma cópia do organismo quando vivo. A grande dúvida de Angus era se seria criado o rei Okran tal qual era como ao falecer, com memória, mentalidade e tudo o mais iguais às do original, ou um ser em branco, geneticamente idêntico ao rei mas com memória vazia, tendo de ser reeducado.

Que sensação no mundo científico! Tinha de fazer logo, antes que outro o fizesse.

Resolveu ver no que daria. Colocou suas máquinas em ação. Elas processariam tudo sozinhas. Graças a isso poderia dedicar seu tempo aos papiros. Não via a hora de estudar aqueles fascinantes papiros. Preferiu começar pelo papiro da Mina, descoberto por mineiros no fundo dum túnel, na Crizâmbia. Esse papiro seria um dos papéis secretos dos sacerdotes. Eles os guardavam em poços muito profundos, em caixas de pedra ou enterravam o mais profundo possível nas cavernas, sempre em caixas de pedra. Angus descobriu que a língua secreta dos sacerdotes era o miscalápio, uma língua desaparecida já naquela época, a época do rei Okran, que fora falada mais ao sul no continente pelos bárbaros Malir. Angus aprendera a língua quando estivera num mosteiro da Crizâmbia, na juventude, de modo que lhe é, agora, um tanto fácil traduzir o papiro.

O sacerdote Rak-akir, confidente do rei e guardião de seu túmulo era também o responsável pelos ritos de ressurreição do rei. Todos os corpos, inclusive os dos sacerdotes, eram cremados. Somente o rei era mumificado. Aconteceu que a filhinha predileta do sacerdote Rak-akir, Beliur, ainda bebê, fora raptada pelos guerreiros hananos, a caminho do templo de Armorax. Hananos, os temíveis guerreiros que ameaçavam a fronteira do reino e inspiravam terror em volta da antiga Hanânia. O sacerdote suplicou ao rei, em rios de lágrima, que fizesse alguma coisa para resgatar sua adorada filha. O sacerdote prometeu ao rei o segredo da imortalidade.

- Vejas, meu rei. Esta arte da mumificação é apenas uma paródia, um resquício degenerado duma arte muito antiga e perdida. Sei, pelos estudos que fiz, e lugares onde estudei que essa mumificação é uma farsa. Os sacerdotes já não conheciam o segredo mas não podiam perder seu prestígio perante os reis. Na verdade o que o processo faz é garantir uma morte definitiva, que o rei não volte pra assombrar os vivos. Mas se salvares minha filhinha, ó rei, te darei o sono eterno na profundeza da terra e colocarei outro qualquer pra ser destripado e ressequido por esses açougueiros presunçosos em teu lugar.

O que o sacerdote oferecia ao rei era o processo da catalepsia controlada, a verdadeira arte da imortalidade, arte perdida e parodiada nessa macabra mumificação. Arte que se disseminou ao longo dos milênios em sua forma mais terrível: O vampirismo.

Assim o rei iniciou a campanha contra os hananos, recuperou Beliur e em três anos arrasou o reino da Hanânia.

Rak-akir manteve prisioneiro um louco furioso com irreprimível instinto assassino que aterrorizava uma cidade do sul. O louco, que seria enforcado, foi aprisionado secretamente porque era fisicamente muito semelhante ao rei Okran e era mantido em estado de morte aparente esperando o dia da morte do rei.

Quando o rei faleceu Rak-akir ministrou os ritos secretos entre os ritos secretos e o levou à profundeza da profundeza pra que adormecesse até o dia em que renascessem todas as ciências perdidas dos remotos antepassados. No lugar do rei mumificou o louco com grande honra e muito ouro, pois a tradição assim exigia, no mais completo segredo.

Angus interrompeu a leitura aterrorizado.

- O processo está quase no fim. É preciso parar as máquinas imediatamente!

Mal se aproximou do teclado e se encolheu contra a parede tomado de pavor.

As máquinas já completaram a tarefa.

A ressurreição fora coroada de êxito.

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