A Garganta da Serpente
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A longa viagem
Um conto de ficção científica

(Mário Jorge Lailla Vargas)

A nave avançava, imponente, rumo ao desconhecido. O Sol se desvanecia ao longe. O velho mundo foi deixado atrás, saturado, denso. Ninguém sabia da possibilidade de sobreviver no ambiente de destino nem que monstruosidade se encontraria na viagem ou na chegada, além do intenso calor ou intenso frio em potencial, que arrepiava a mente de todos. O céu negro e estrelado se descortinava adiante. A viagem, que começara eufórica, aos poucos caía numa monotonia preocupante e já durava mais que o prometido. Se temia que essa pequena desmotivação resvalasse a uma frustração maior: Motim. Diante de rumor de que se falava em voltar, o comandante reuniu os oficiais a discutir alguma forma de motivar o grosso da tripulação a continuar a viagem. Se debruçando sobre a grande mesa apontou uns desenhos de rota e esquema.

Vez e outra a nave era sacudida por um desequilíbrio dos elementos, quiçá de origem cósmica, e os tripulantes eram atirados contra as paredes, tendo de se segurar precariamente onde pudessem. Como quando um meteorito passou muito perto. Tão perto que alguns julgaram que seria o fim da viagem.

- Vede. Estamos neste ponto, bem perto do destino. Quando atingirmos esta estrela, aqui, teremos chegado. Um mundo novo e completamente diferente nos espera. Motivemos nossos homens a continuar. Nossa missão é pioneira e crucial. Temos de chegar!

Eis que o cronista da nave, homem de imaginação e cultura, teve uma ideia brilhante: Espalhou sutilmente entre os mais tagarelas e espirituosos tripulantes de hierarquia inferior uns contos prazerosos. Assim passaram a circular estórias e mais estórias sobre as mulheres que encontrariam nesse novo mundo.

- É um lugar onde as mulheres andam nuas ou cobertas apenas de finas tiras que deixam ver tudo. Mulheres de cabelo liso, longo e sedoso, que tomam banho no rio alegremente e que pintam seu corpo nu pra alegre festa onde exibem dança sensual ao som de harmoniosos acordes.

A viagem ganhou uma empolgação inusitada, quase um frenesi. Os homens queriam saber mais e mais detalhes sobre esse lugar e essas mulheres de sonho que ali viviam, alegres e ingênuas, lânguidas e cheias de amor. Com a face de intensa felicidade ouviam o cronista contar maravilha.

- Um lugar de exuberante fartura e fascinante paisagem. A terra é fértil e a vida abundante. Ali existem os frutos mais deliciosos como jamais algum de nós imaginou um dia. As mulheres são duma beleza exótica, amorosas e dóceis e não têm vergonha da nudez. São livres e selvagens, sabem preparar os mais apetitosos pratos e têm muita história pra contar e coisa pra ensinar. Nos braços dalguma delas, de lábio fogoso e pele macia, tão carinhosa e submissa e que tudo faz pra agradar a seu amor, qualquer um de nós ficará tão feliz que jamais quererá voltar.

Apenas um dos homens não acreditou nesses contos maravilhosos. Argumentou do inverossímil dessa estória contestando tudo o que se contava.

- Não enxergais que é tudo mentira? São contos ingênuos e manipuladores. Maquiavel não faria melhor. Isso tudo é bom demais pra ser verdade. É tudo invencionice pra nos iludir e nos animar a continuar esta tediosa e incerta viagem. Não existe mulher assim, tão maravilhosa. As mulheres são todas interesseiras, maliciosas e rabugentas. Tive mãe, irmã, esposa e amantes que comprovam fartamente o que digo.

Riso geral.

Assim a viagem continuou na mais estrita ordem até o final. Mais e mais detalhes surgiam incitando a imaginação e alimentando devaneio, excitando os sentidos e fazendo cada um pintar na mente a imagem mais tentadora.

Só o sonho, a ilusão, a esperança no maravilhoso, o fascínio ao desconhecido, são capazes de impulsionar o homem a superar seu limite, a embelezar sua tediosa privação na sublime roupagem de poética esperança e fé em fabulosa realidade que a imaginação elabora se recusando a ponderar sua justa possibilidade.

Chegaram e constataram que era tudo mentira, tudo uma piedosa mentira sem a qual não seria possível suportar tão monótona viagem?

Não. Era tudo verdade!

O cronista era Caminha. E tudo o que inventara encontrou de fato e narrou na tão famosa carta.

Pensamento positivo, coincidência, vidência, ciência secreta? Mistério.

Eram os pujantes portugueses singrando o mar pra colonizar o mundo.

Essa nave era a de Cabral a caminho das índias.

Isso mesmo: índias, com i minúsculo.

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