Desde a aposentadoria temida e confirmada, no início do ano de 2003,
tenho por hábito e necessidade psicomuscular caminhar de manhã.
É verdade que não sigo à risca a recomendação
médica:
- O ideal para você é andar na areia dura, à beira d'água,
molhando levemente os pés. Faz um bem enorme à coluna lombar e...
à psiquê.
Andar a pé deve ser mesmo um barato para o bem-estar corporal, a julgar
pelo batalhão desordenado de pessoas das mais diversas faixas etárias,
inclusive quase anciãos, que o faz, em ritmos e trejeitos esdrúxulos,
pelo calçadão da orla marítima ou pela Lagoa. Do raiar
de um sol convidativo, sob garoa despretensiosa, em noite quente ou fria...
Comportamentos desiguais, alguns iniciantes param, esbaforidos, logo após
uma ou duas quadras, para recomeçar de novo o sacrifício compensador.
Os iniciados, ao final do dever cumprido, encetam, entre um e outro arfar aflitivo,
uma prosa de gosto aprimorado, acompanhada por goles abençoados de água
de coco. Os menos puristas deliciam-se, premiados, com uma cervejinha ao ponto.
Os mais ritualistas não admitem interrupções do programa-saúde.
Sumiço geral só por culpa de intempéries aterrorizantes,
ressacas marítimas de invadir calçadas e avenidas.
De minha parte, deixo de reserva o calçadão do Leblon até
Ipanema, para acompanhar o atletismo de fim de semana de meu marido. Antes acompanhada
do que só.
Consola-me da doença do não ter o que fazer a hidroginástica
suave e as calçadas das compras, divertidas e socializadoras. Converso
muito nas lojas, nos mercados e feiras da Zona Sul. Mato duas funções
primordiais de um só golpe: alivio a solidão e me inspiro para
meus escritos.
Na calçada obrigatória para o supermercado, venho notando uma
figura estranha. Invariavelmente no mesmo local, junto ao muro do quartel do
Batalhão da Polícia Militar, lá está ela, em seu
assento tosco, bambo de cansaço, pequeno demais para o volume de suas
ancas e nádegas. Banco do tipo clássico das cozinhas do tempo
de minha mãe, para empregada sentar. Patroa, nunca. Herança da
escravidão.
A princípio, eu a jurava um amontoado de lixo volumoso, encoberto por
uma barraca de praia de grandes proporções. Impossível
distinguir a quantidade ou qualidade do monte de tralha vislumbrado. Bem encoberto
pela barraca ex-amarela, palidamente decorada com o nome de um seguro-saúde
famoso. Presente provável de um transeunte mais caridoso do que eu, seguramente
ignorado pela empresa mantenedora. Do contrário, teria se livrado rápido
da publicidade às avessas, exposta ao vento e à poeira da rua,
encardida e rota pelo atravessar do tempo e das mudanças climáticas.
Até algum tempo, vislumbrava apenas determinados ângulos de gente,
câmera cinematográfica em ação, rodopiando em torno
da cena desejada. Comecei pela percepção de uns leves movimentos
e indícios rudimentares de sexo feminino: um lenço estampado à
cabeça, encobrindo uma parte de cabelos meio longos, embaraçados,
de cor indefinida; um meio-perfil precário de rosto gorducho e imberbe;
um pedaço escapulido de busto e pernas inchadas.
Diminuindo de propósito o passo e firmando os óculos de grau ao
nariz, uma parte do quadro pictórico uns milímetros maiores vai
se deixando entrever: um crochê de várias cores sendo tecido, com
rapidez, por mãos de bebê obeso; um olhar de soslaio dirigido,
num átimo de segundo, a quem passa; um mover de boca em provável
resmungo sem destino; um amontoado confuso de carnes.
Certa vez, de supetão, quase esbarro na figura feminina. Numa das raras
manhãs em que me dispus a sair mais cedo de casa. Surpresa de não
ter avistado a barraca sempre à mostra na calçada, dei com a dona
de minha curiosidade de caminhante sem vocação. De corpo inteiro
e ... andando. Como eu: passo relutante às vezes, firme, outras. A barraca
segue fechada em uma das mãos e, ao ombro oposto um tanto caído,
sacola de viagem entulhada de cacarecos.
Ela segue direto para a calçada de sua escolha, muito pelo fato de se
sentir protegida pelos soldados do batalhão, sem ninguém a perturbar-lhe
a paz e a liberdade.
Não me parece ter mais do que cinquenta anos. É baixa, muito
volumosa, de pele avermelhada e reluzente de quem jamais usa água limpa
de chuveiro ou sabonete. Veste a indumentária colorida e improvisada
das mendigas: várias roupas superpostas. Sujas, mas intactas. Sequer
um rasgão aparente. Nos pés, sandálias de couro ou plástico
marrom, bastante conservadas, cobrem meias. Essas, sim, de cor indefinida. Supostamente
brancas, num passado muito remoto. Sem furos, sem cerzidos. Posso jurar.
"Também, essa mulher não anda quase!"- concluo, leviana,
sem saber de onde ela vem, nem que tipo de vida leva. "E a roupa não
rasga porque não sofre esfrega de sabão ordinário, mãos
inábeis ou máquina de lavar de má qualidade".
Aos poucos, adquiro a certeza de que não se trata de pedinte, como outras
que rolam pelas calçadas da Zona Sul do Rio de Janeiro. Penso, ou foi
alucinação, que a vi, de uma feita, mostrar seu crochê a
uma senhora bem vestida, ao pé dela. Não sei se para vender ou
apenas exibir sua arte.
Curiosidade prioritária: onde será que ela descarrega suas necessidades
fisiológicas, uma vez que não há nada fedorento saindo
ou escorrendo de seu esconderijo? Frequenta o banheiro do batalhão?
Teço mil hipóteses sobre esse ser de hábitos tão
peculiares. Até porque me assombram, com frequência, pensamentos
e sonhos de minha própria pessoa dormindo ao relento. Situação
pior do que a dela que, lá no muro, não dorme. Só descansa.
Pode ter perdido toda a família. Razão plausível para um
dia a dia desleixado. Recordo pessoas com situações equiparáveis,
em minha cabeça excitada. Uma senhora que, ficando sem nenhum familiar
bem cedo, segue vivendo. Conforma-se. É verdade que não está
pobre. Deixaram-lhe de herança alguns trocados. Vive casa, comida, amizades.
Vida modesta. Em todo caso, vida.
Já uma vizinha de minha mãe teve reação inversa.
Marcou época no bairro porque se deixou literalmente morrer, devido à
perda de um dos seus três filhos. Religiosa ao extremo, tinha esperança
de estar com ele no céu. Deixou de comer, definhou e foi-se.
- Meu filho morto, não quero mais viver.-, confessara a uma vizinha solícita
e apavorada com tamanha entrega e desprezo pela família restante.
Um amigo meu, imigrante, sem parentes na terra natal, nem no Brasil, não
se casou, não fez descendentes, nem fortuna. Viaja, plenamente satisfeito,
nas leituras dos clássicos da literatura. Basta-lhe. Misantropia de nascença.
Considero outra hipótese igualmente viável para a postura da senhora:
perda do primeiro e único amor. Casada por muitos anos, o marido a troca
por jovem muito mais moça do que ela. Coisas comuns aos homens brasileiros,
machões inveterados. Consequência: ela entrega-se à
ruína de corpo e alma. Vai engordando e calando-se, perdendo a capacidade
de dialogar. A rua serve para distrair-lhe as dores. O crochê é
praxiterapia espontânea. Nenhuma recomendação médica.
Quantas pessoas, em caso semelhante, superam a tragédia, saem para outro
parceiro. Às vezes, até melhor. Amadurecem. Tornam-se cônjuges
de qualidade. Refazem a família numa boa.
Não se pode negar que deve haver gente em condições bem
mais precárias do que a mulher do guarda-sol amarelado. Ela, pelo menos,
não pernoita na calçada. Nunca é vista à noite.
Portanto, deve ter moradia. Sabe se defender" - penso, quase desabafando
em voz alta o dissabor da inércia, minha e dela.
Vêm-me à cabeça, por outro lado, os desafortunados totais.
Povoam as ruas dia e noite, encharcados em álcool. Arrastam a existência
conversando consigo próprios, apoiados no vício enganador. Ou
se abrigam em bandos de alcoólatras semelhantes. Recusam a realidade.
A seu modo.
Penso em mais uma possibilidade para a estátua viva. "À minha
imagem e semelhança, aposentou-se. Quem sabe não era solitária
por índole, adorava um trabalho tranquilo e compatível com
o seu temperamento. E, ao voltar para uma casa confusa e barulhenta, esteve
prestes a morrer de desespero? Nesse caso, o muro do quartel, o voltear incessante
da agulha de crochê e o banquinho são a maneira ideal de se sentir
à vontade, mulher de aposentadoria ridícula."
Há incontáveis justificativas para a mulher-enigma. Posso prosseguir
com elas indefinidamente. Um dos modos de não me azucrinar com a minha
própria condição mal aceita de professora aposentada.
Habituando-me, eu própria, a pequenas descobertas, semana passada, munida
de coragem e desejo, decido parar, sem pejo, diante da mulher-monumento, cumprimentá-la
e, delicadamente, perguntar-lhe por que razão tão imperiosa está
sempre ali.
Espanto-me. Ouço-lhe a voz firme, sem resquício de rouquidão
ou desgaste, me perguntar de volta:
- A senhora não é a filha de Dona Zefa, da Praça? Não
se lembra de mim? Fui acompanhante de sua mãe. Fiquei no lugar da outra.
Emocionada, respondo uma mentira afirmativa, com voz quase inaudível,
de sem graça. Santo Deus! Como pude esquecê-la?!. Havia servido
à minha mãe, sem dúvida. Asseada, cuidava da velhinha com
todo o empenho que a profissão exigia. Cobrira as férias de uma
outra, cumprindo as exigências de uma boa companhia de idosos.
Fui seguindo em frente, depressa, cabisbaixa, envergonhada da minha omissão.
Soube, ontem, que a prefeitura proibiu-lhe o uso do guarda-sol. Por imposição
do tal seguro-saúde. Até o crochê foi-lhe proibido. Não
tinha licença de ambulante. Revolto-me. Digo impropérios.
Hoje, ela olha para o nada durante todo o dia. Se duvidar, faz seu crochê
bem escondido, debaixo de uma bolsa de plástico. Mas continua lá,
firme em seu posto de soldado sentado da rainha da Inglaterra. A chuva e o sol
batem-lhe em cheio, encharcando-a, tirando-lhe o que resta de pele à
mostra.
Um dia, saio da imobilidade condescendente. Hei de melhorar a vida dela. Se
é que me conheço.