Fora o Zé Colmeia, o Catatau e o Urso do Cabelo Duro, eu nunca
tinha visto um urso de perto, só no zoológico. E no zoológico
não se vê nada de perto! Quando eu estava na 1ª série
do primário lembro de quase ter caído no fosso solitário
de um grande urso negro de pêlo brilhante. Na ponta dos pés feito
bailarina, atrás da muretinha que me isolava pelo pescoço do gigante
lustroso, eu tentava vê-lo melhor, chegar mais perto e, quem sabe, tentar
um abraço. Como era de se esperar fui arrastada de lá sem direito
a advogado pela maternal Tia Bete. Naquele dia reparei na indelével pintura
verde-água que tingia cada vez mais forte suas pálpebras dia após
dia. Talvez ela tivesse nascido daquele jeito, como eu poderia saber? Ela me
puxou precisa e disse rindo que eu era louca de me pendurar no muro daquele
jeito - e se eu caísse, o que ela iria dizer para a minha mãe?
Eu não via perigo, só conseguia ver o urso andando impaciente
de um lado para o outro com os bracinhos de sonâmbulo esticados a frente.
Não parecia oferecer mal nenhum, parecia querer um pouco de mel ou de
picadas de abelha, ainda não sabia ao certo. O que sei é que sempre
senti falta de ursos. Eu dizia para a minha vó que no Brasil os ursos
podiam dormir no verão e acordar no inverno, mas nunca se ouviu notícias
de algum. Além do mais o inverno é tão doido, mesmo aqui
no sul, que os ursos ficariam confusos sem saber se haviam acordado na hora
certa ou não. E o meu vô não ficaria nada feliz se um urso
folgado metesse as mãos no parreiral dele e atrapalhasse a safra de vinho
do ano. Era bem capaz de ele degolar o bicho e depois fazer um tapete para enfeitar
a varanda em que costumava dividir o chimarrão com os compadres. Esta
varanda ficava no meio do casarão de madeira que ele próprio havia
construído e separava a cozinha (com um grande fogão à
lenha) e a sala de "manger" dos 9 quartos, totalmente necessários
para quem tinha 12 filhos! E o meu senso decorativo diz que não ficaria
nada bem um ursão preto esticado no meio de uma roda de mate.
Mas, voltando ao zoológico, desde então eu cresci, quase como
um urso (um urso depilado obviamente), e um dia fui para a Califórnia
não para ser artista de cinema, só para me distrair um pouco,
mas se o alvo da distração fosse algum artista daqueles bem famosos,
melhor ainda. Posso dizer contente que Al Pacino ficou encantado com o vestido
vermelho de bolinhas brancas naquele sábado ensolarado em Santa Monica
Mas eu estava interessada em ursos e apesar de Al ser peludo o bastante e estar
vestido de preto, eu sabia que era um truque e não estava disposta a
cair nele. Retribuí o beijo sem desacelerar os patins e quase fui atropelada
por um skatista que de tantas tatuagens mais parecia um catálogo ambulante.
Um dia achei que era hora de largar os patins e rumar para a toca. Segui de
carro a uns 300 e poucos quilômetros a leste da cidade mais sísmica
da Califórnia e alcancei o parque dos ursos - o Yosemite National Park.
Sequoias gigantes, lagos do reino das águas claras, cachoeiras
cantantes, morros uivantes, e o ofuscante hotel Ahwahnee que não aceita
estrelas para classificá-lo, só diamantes. Mas o que mais me chamava
a atenção eram as placas plantadas por todo o parque sinalizando
o mesmo e animador aviso: "Cuidado com os ursos". Demorou, mas finalmente
eu me encontrava no lugar certo.
Cheguei num convidativo fim de tarde de outono e nunca mais fui embora. Como
poderia imaginar? O fato é que após estar devidamente instalada
num chalé com calefação, banheira e tevê, me acomodei
de tal maneira que me esqueci do mundo, apesar de ter tentado e lutado contra
mim mesma, sem saber o que era vontade e o que era birra. Como naqueles sonhos
em que você tenta desesperadamente abrir os olhos mas não consegue
porque é infinitamente maior a vontade de mantê-los fechados.
Ah, ursos, ursos. Depois de tomar o meu primeiro banho relaxante com favos
de mel na banheira, decidi ir até o restaurante que não ficava
muito longe da Curry Village. Quando coloquei as botas pra fora do chalé
levei um susto daqueles! Estava tudo escuro e eu sem lanterna para poder ver
meus ursos queridos que, aquelas alturas, pareciam existir apenas nas placas
de aviso. Eu estava há algumas horas em Yosemite e nada de ursos! Seria
mais um tipo de propaganda enganosa para atrair turistas ingênuos? Quer
dizer que sou considerada uma mocinha ingênua? Pisando a grama raivosa
fui até o carro torcendo para que um ursão aparecesse e me guiasse
até o restaurante, mas nada disso aconteceu e acabei perdendo a fome
no meio de tanto descontentamento.
Resolvi trocar o restaurante pela mercearia local onde tudo custava uma fortuna!
É o preço que se paga para ver ursos, calculei. Comprei a lanterna
e algumas coisinhas para beliscar estômagos anoréxicos, inclusive
um pote bem grande de mel de flores de pessegueiro que adoro. Assim poderia
voltar para o chalé mais tranquila, imagina se me aparece algum
urso no meio da noite pedindo um pouco de mel emprestado e eu sem nada?
No caminho meu coração disparou feito cavalo de corrida e meus
olhos quase que me enganam! No meio dos arbustos, vislumbro um ser enorme vindo
em minha direção, posso até sentir suas garras em meu pescoço,
mas é só a vadia da minha fome que acorda mal-amada. Sem dar atenção
a ela olho para o céu e vejo o mais maravilhoso de toda a minha vida,
um céu que nem o Planetário me mostrou nos meus tempos de menininha!
Tantas eram as estrelas, uma grudadinha na outra, todas tão fosforescentes
e perfeitas que nem precisavam competir por vaidade - todas brilhavam em incontáveis
quilates. Só faltava uma coisa - cadê os meus URRRSOOOOOOOSSSSSSS?!!!
Puxo oxigênio puro da montanha, pego as compras e vou a passos de formiga
para a vila. Penduro o casaco, tiro as botas, ligo o fogão elétrico
e ponho a água para esquentar na chaleira de vaquinha. Abro uma frestinha
da janela e coloco o pote de mel lá, destampado, como um presente desembrulhado.
Vou ver tevê tomando leite com Pops. Quando a chaleira apita corro para
o fogão e preencho a xícara de porcelana pintada à mão
com o chá de frutas vermelhas. Pego emprestadas 2 colheradas do mel que
deixei na janela e volto para a tevê. Estou tão cansada! Cansada
da viagem, cansada de esperar, cansada de comer Pops. Os olhos começam
a me chantagear e nem são dez da noite. Vem urso, vem logo, eu não
estou aguentando mais, pleaaaaaase!
Na tevê a apresentadora Oprah Winfrey entrevista Brad Pitt que está
estreando "Meet Joe Black", aquele filme em que ele faz o papel da
morte e que se apaixona justamente pela filha da sua vítima, o milionário
vivido por Anthony Hopkins. Agora Oprah está perguntando se Brad acha
que tem a bunda bonita e ele fica desconcertado. Ela diz: "Oh, você
está encabulado? Mas a sua bunda é realmente linda!" A plateia
lotada de histéricas grita em coro, obviamente concordando com o comentário
constrangedor da apresentadora; parece que bundas é mesmo um assunto
de interesse mundial. Oprah insiste e diz que ele está impecável
na foto em que aparece nu, que aquela revista de celebridades publicou. Ele
ri nervoso e tenta desconversar avisando que o inconveniente fotógrafo
foi multado em milhares de dólares e que, bem, voltando ao filme, ele
adorou trabalhar com Sir Anthony Hopkins e blá-blá-blá-blá,
só elogios dispensados ao ator veterano. Então, de repente, ouço
um barulho vindo da janela que faz com que meu transe por Brad seja quebrado.
Parece que uma mão peluda acaba de deixar algo cair no chão.
Levanto apressada enrolada numa manta de cashmere rosado e com a lanterna em
punho tento enxergar a silhueta do meu ladrãozinho. Ele corre pesado
entre as árvores, sua respiração, eu sinto, é igualmente
pesada e apesar da minha marcha de lebre o invasor nativo leva vantagem - para
a minha derrota final ele camufla rapidamente o corpanzil no breu da floresta.
Sem guardar rancor volto para a cama pedindo sonhos revigorantes. No dia seguinte
acordo cheia de energia para fazer o reconhecimento do parque, mas nada de excursões
com gente saída do seriado dos Simpsons, decido fazer eu mesma o itinerário.
Preparo minha mochila com água, barrinhas de cereais, bagles e o mais
importante: mel em saquinhos para algum encontro inesperado. Calço as
botas de biqueiras de aço que também servem como espelho, lembro
da lanterna, carrego a máquina fotográfica com filme preto e branco
na esperança de imitar Ansel Adams e me entrego ao maravilhoso mundo
verdejante ansiosa por encontrar meu amado.
Passo por um campo repleto de flores amarelas que apontam para uma sonora cachoeira
que desaba sobre pedras limosas e respinga sem economia no vale. Tiro a máquina
fotográfica da mochila, acerto o foco e começo a bater fotos de
todos os lados tal como uma típica turista nipônica. Uma borboleta
azul que descansa leve sobre uma das flores me encanta com a pose de esnobe.
Nesta hora me arrependo do filme preto e branco e me xingando com razão
de burra e outros piores, ajoelho humilde para compor melhor o quadro. Mas antes
que eu pudesse me cansar da modelo azul, um zangão, provavelmente atraído
pelo meu perfume de flores, começa a voar em torno da minha cabeça
e atrapalha a foto. Dou uns tapas no ar e chego ao cúmulo de perguntar
"qual é o problema?" O insetão rabugento se recusa terminantemente
a ser razoável e parece decidido a querer entrar debaixo dos meus cabelos
cor de cobre. Assustada com esta possibilidade saio correndo, ele a zumbir atrás
de mim, eu pensando em como seria uma mordida de zangão, ele a zumbir
mais alto e devendo achar que voava atrás de uma rara flor gigante
Eu corria do seu amor quando sem perceber onde pisava caí num abismo
assentado no meio do nada. Mas o que estou dizendo? Qualquer lugar em Yosemite
pode ser descrevido como no meio do nada! Ou será no meio de tudo? Felizmente
acho que não me machuquei, mas para evitar maiores estragos procuro a
lanterna para entender melhor o buraco em que eu havia escorregado. Aperto o
botão "on" e imediatamente lamento de ter trazido a lanterna.
Talvez, penso eu, tivesse mais chances de sobreviver se não soubesse
onde havia caído. ESTE BURACO É UM NINHO DE COBRAS!!! Acho que
estou acabada
duplamente acabada! Imóvel, sem saber o que fazer,
imagino como minhas novas acompanhantes reagiriam caso eu tentasse me salvar.
Bem que elas poderiam ser compreensivas, bem que elas poderiam não pregar
seus dentões fininhos e virulentos em mim. E pensar que eu só
queria ver meu urso
agora nem isto! Vou morrer sem ter visto um único
urso de perto! Se ao menos eu tivesse seguido a excursão com aquele pessoal
que tem a cara dos Simpsons eu não estaria em apuros. Quem mandou ser
preconceituosa e metida e fresca e insuportável? Bem feito! Haaaaaaaaaaaaaaaa!,
grito gralha na esperança de ser ouvida, mas o máximo de reação
é uma coisa gelada que cai sobre a minha cabeça e balança
como pêndulo na frente dos meus olhos.
- Ai meu Deus, acho que elas querem se vingar de mim! - digo como se recebesse
a extrema unção da cabeça alaranjada em forma de triângulo
e que acha que pode me hipnotizar só porque alguém da sua família
já fez isto com o Mogli!
Mas, de repente, tudo fica muito claro. Lembro da coral que invadiu o parreiral
do meu avô quando eu ciscava umas uvas e, aterrorizada, cacarejei delatora.
O tio que veio em meu auxílio decapitou a coitada num único e
afiado golpe. Ele me jurou que a bichinha não sentiu nada. Disse mais:
que foi uma morte igual a de Maria Antonieta! Agora eu sei que tudo foi uma
grande e deslavada mentira, que estas víboras estão aqui para
se vingar! Ouço o discurso que a minha algoz sibila inflamada:
- "Morte a delatora que acabou com a vida peçonhenta de uma de
nós, uma irmãzinha rastejante que já nasceu desfavorecida
e sem direitos ofídicos!".
Sei que estou sendo julgada e tenho a impressão que vou ficar louca.
As víboras sabem da verdade porque têm uma única consciência
- o que uma sabe todas sabem. Como dizer que sou inocente? Minha cara de pau
não chega a tal extremo. Relembrando o passado sei que poderia ter pego
as uvas, quantas desejasse, feito de conta que não havia visto nada e
a coral seguido desimpedida o seu caminho. Ou, ainda, eu poderia ter sido gentil
e oferecido um cacho, duvido que se interessasse por uvas. Também poderia
ter oferecido vinho e, amavelmente, a víbora teria mordido a taça
e deixado pingar em nobre agradecimento um pouco de seu precioso veneno. Mas
eu não fiz nada, eu apenas fui má! A sentença será
dura e eu nem deixei um testamento... Então mentalmente dito meu testemunho
(talvez ele possa ser ouvido por alguma alma do vale) que deve ser escrito com
agulha quente num pergaminho feito com a minha própria pele:
"Caio num abismo cheio de víboras e após curto julgamento
por ter sido mandante do assassinato de uma delas o castigo começa. Todas
se deslocam de seus esconderijos e vêm ao meu encontro. Seguindo suas
preferências enlaçam meu pescoço (não em sinal de
amizade mas de protesto), atravessam-me malignas com os dentes cortantes, abraçam-me
com seus corpos frios e abrem caminho desbravadoras dentro de mim! A dor é
lancinante, mas o perdão também o é. Uma delas, que nem
é tão grande assim, sobe internamente pela panturrilha e eu grito
de dor, é pior do que mil câimbras. A visão das víboras
passeando, marcando em relevo minha pele é assustadora. Quero desmaiar,
quero me livrar desta realidade, quero morrer, mas a vontade de terminar com
o meu testemunho mental é maior. Espere! Ouço um arfar pesado,
um tipo gafado que invade o buraco onde sou prisioneira e uma esperança
em forma de urso negro surge para mim. Eu sabia que ele viria me salvar! Eu
sabia que ele não esqueceria de mim! Fiz tanto para conhecê-lo,
não posso terminar minha vida tão desamparada. Queria tanto poder
alcançar os saquinhos com mel de flor de pessegueiro e estourá-los
em sua boca de fera, mas não tenho forças. Dezenas de víboras
rastejam nos subterrâneos do meu corpo, é horrível! Eu sinto
muita dor. Fecho os olhos porque não quero mais ver a invasão
e me concentro no pergaminho. O grande urso negro alcança minha mão
direita e tenta me puxar para fora, mas as víboras se enrolam em meus
tornozelos e fazem pressão para baixo funcionando como raízes
diabólicas. Parecem querer dividir o meu corpo em dois: da cintura para
cima e da cintura para baixo. Sinto o incrível esforço do urso
para me salvar e não consigo me concentrar no testamento. Respiro profundamente
e tento organizar minhas últimas palavras que assim saem: Eu lutei, mas
não posso continuar. Eu errei. Você foi perfeito e não quero
estragar a sua vida. Vá embora antes que o inverno chegue ou elas se
vingarão também de você. Continuar assim é impossível,
se nada mudar prefiro morrer."