A Garganta da Serpente
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Luft

(Mário Lima Jr)

Somados, os amores e aventuras dele resultam numa inteira vida desperdiçada.

Quando estudante universitário, chocou-se bruscamente com o principal exemplo do infinito insucesso que o persegue no amor: subindo a estreita escada da universidade, apressado e desatento, deu de peito na deslumbrante formosura loura do primário, antes bela criança, hoje moça de rosto fino, lábios médios róseos e carnudos, com a qual há uma década e meia não se deparava.

Precavido, evito traçar exatamente a cronologia do desenrolar desta antiga paixão pueril; prezo pelo relato in natura do presumível fogo insuportável que consumiu o coração do rapaz no dia do choque-surpresa.

Naquele tempo o colégio era o Gildo Araújo, a menina, Gerlaine. E Luft, no máximo oito anos de idade (considerado bastante imaturo), nela acordava pensando. Chegava cedo junto aos primeiros e sentava-se na carteira imediatamente atrás dela na sala de aula. Entreolhavam-se discretos e tímidos, contendo aproximações modernas desprovidas da dificuldade romântica infantil que tudo dramatiza em prol da beleza do instante vital. Por esta razão às crianças pertence o Reino dos Céus.

A professora indagou em puro tom de declaração matrimonial:

- Vocês estão namorando é? - ruborizando ambos. O jovem casal preferiria a morte ao namoro culposo contemporâneo. Anos mais tarde, homem feito sofrendo constantes assomos de superioridade individualista, Luft desejaria humildemente a extinção dos casais de namorados do planeta, cria - fúteis e inúteis.

Diariamente carregavam nos ombros até a escola pesado sentimento de bem querer um pelo outro. Lá a meiga esperança se exercia ponto de encontro entre a possibilidade de união pura, isenta de malícia selvagem, e almas propícias à doação extrema.

Fora a audácia malévola da criança-mulher que por pouco não infarta o menino de susto agradável:

- O garoto que gosto usa pulseira rosa - Gerlaine de repente arriscou.

Tal e qual era a cor da fitinha de São Pedro de Alcântara esbanjada no pulso esquerdo de Luft. Declarando-se, virara pra frente deixando-o perplexo e mais intensamente enamorado. Na época ele falsamente assumira ter considerado-a boba, superficial, esnobe logo compenetrante por tamanha investida repentina. Viam-se sintonizados o suficiente para tais mentiras impróprias, mas, encontrando-a futuramente na universidade, recordara-se da mágica sutileza preenchendo a boca dela ao mirar-lhe palavras de perdição.

O que ele incisivo descartou foi entregar-se à ela. Brincava, instigava, mexia displicentemente, indicava ardiloso interesse por alguém sem explicitá-la. Deleitava-se nos cachos loiros macios de Gerlaine, neles punha os pensamentos pra dormir; onde poderia dar este justíssimo relacionamento entre crianças tão pequenas?

Na escada, a força do choque despertara no coração cauteloso de Luft íntima agonia escolar de anos atrás, onde sentia-se sentimentalmente mais poderoso que mulheres recusando se declarar. Menos do que na infância soube o que dizer. Descendo a curva ela sumiu debaixo do olhar suplicante dele - implorava ajuda própria capaz de levá-lo a infantil e contidamente murmurar:

- Você por acaso estudou no Colégio Gildo Araújo?

Meses depois, três no máximo, vindo da aula à noite, sentava-se estupefato na van a caminho de casa atrás do banco onde, cachos impassíveis, estava a moça antes dela descer no ponto.

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