A Garganta da Serpente
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O ciclo das vontades

(Mariza Magalhães)

A notícia da morte de Dona Pouca correu como um gato famélico ao encalço de uma lagartixa, causando espanto e consternação. O populacho das redondezas, cabelos ainda em pé e olhos acordados só até a metade, acorreu incrédulo à casa da mulher. Na porta do quarto, também perplexo, seu Filó estendia a mão, frouxa e magra, num gesto mecânico àquele povo ávido, a dividir os olhos entre o viúvo seco e a morta obesa.

A mulher, ela própria um despropósito da natureza, sempre gostara do inusitado, talvez por isso tivesse optado por morrer em pleno sono. Sem mencionar o susto de seu Filó ao dar com ela, bem morta, num domingo de manhã.

Olhando para aquela montanha de carne e de gordura, espalhada sobre a cama do casal naquela confusão de lençóis e colcha resolvidos, o homem pensava que não Fora sempre tamanha abundância física, aquele exagero de gente. Quando a conhecera, na festa do padroeiro da cidade, era fininha assim: um graveto de vestido. A cintura, então, quase dava para abarcar com as mãos e sem nenhum esforço. Também não era tão voluntariosa ou, o mais provável, não deixara transparecer através dos olhos claros, azuis como um ovo de porcelana. O que sempre fora, desde a juventude, inegavelmente carola. Beata sacramentada e de carteirinha. Contudo, isto não a impedia de bater o pé, de forma dissimulada e absolutamente pagã, acompanhando com movimento sutil dos quadris ao ouvir uma boa bandinha, uma música gauchesca bem sacudida ou um até um samba menos escandaloso. Fazia uma penitência depois, é bem verdade, mas comia de olhares o maestro da banda, a fingida, os cabelos de cabotino sempre besuntados de algo definido como banha pelo despeitado marido. Bem feito, hoje o maestro estava careca feito uma bola de bilhar. Apesar de tudo, era muito apetitosa, a bisca, e, evidentemente, não deixava á mostra a megera latente naqueles olhos de piscina. E foi justamente naqueles olhos, o nascer do encanto de seu Filó. Três meses depois, o namoro já se encaminhava direto, sem escala, para a porta do casório no enlevo entre ele e sua eleita, na época pouca mesmo.

No dia do enlace, concorridíssimo pelas esperançosas companheiras de dona Pouca a devanearem entre longos suspiros e olhares vagos, surgiu a primeira nuvem, obscurecida de pronto pelo clima da festa. Aconteceu de o noivo, aflito, esquecer as alianças. Então, no decorrer dos momentos cruciais daquele vai-e-busca e agora não-sei-o-que-faço, entremeado de ai-ai-meu-deus, a noiva, inadvertida, deixou escorregar a auréola de meiguice e, sob os olhos atônitos do sacerdote, deu um safanão no pobre Filó. O infeliz, pego desacautelado, perdeu o equilíbrio e precipitou-se sobre o degrau, acabando por testavilhar no joelho do pároco. Mesmo agarrando-se à batina do padre, o tombo foi inevitável. Salvou a situação um pirralho afobado ao atravessar a nave com o dourado símbolo dos laços matrimoniais, apertado de encontro ao peito sob o terno muito justo.

Dona Pouca, ao notar o silêncio glacial entre os convivas ocasionado pelo fiasco da sua precipitação, não deixou por menos, tratou de recobrar a pose angelical desmaiando entre suspiros e óhs. Desviou a atenção, mas não logrou obter o fim pretendido. À saída da igreja, os amigos do noivo, entremeando risinhos de mofa, congratulavam-se, descaradamente, pela sábia decisão de manterem-se solteiros. Decisão cumprida à risca,aliás, e comentada sem piedade a cada escapada de Filó até o Beco do Trago para beber uma mísera cerveja, ás pressas, como se perseguido por um saci encanzinado

Nos primeiros meses, tudo aconteceu como nos romances de Mme. Delly. Transcorrido o período de carência do contrato de risco de Filó, Dona Pouca, nada inclinada aos afazeres domésticos sempre impostos na casa paterna - afinal fora a única mulher de uma prole interminável - casada, vingava-se dos devidos. Filó, em contrapartida, ainda embevecido e sempre mergulhado naquele anil traiçoeiro, acomodava-se à situação e cumpria todos os desatinos comandados por sua diva, em geral esparramada e lânguida sobre o sofá da sala a consumir doces e guloseimas abiscoitando a vontade do marido. Assim começou o depósito particular de gordura de seu Filó, a esta altura sentindo-se o mais desgraçado vivente de todas as galáxias e tomado por um ódio profundo a lhe roncar nas entranhas. Não lhe entrava na cachola como diabos fora cair na esparrela de alguém tão inútil quanto perverso. Jamais poderia ter concebido um ser semelhante, nem por aproximação. Mas, anêmico de espírito, o pobre, o máximo de revolta a que se permitia era pisotear os canteiros da mulher. Seu calcanhar-de-aquiles, seu paraíso, seu dileto filho. Depois, aterrado, tratava de desfazer o feito. Amaciava o solo, cobria de adubos, cuidados e súplicas pelo-amor-de-deus-sobrevivam. Com isto, após cada explosão de incontida ira, os canteiros de Dona Pouca tornavam-se dia a dia mais lindos. Na cidade inteira não havia mais viçosos e belos, assim como em toda a região e seus chás e hortaliças tornaram-se lendários, atraindo visitantes e curiosos de cidades vizinhas. Nessas ocasiões, fazendo sombra ao insignificante marido, em todos os sentidos, inchava-se de orgulho e colocava á disposição seus misteriosos conhecimentos de jardinagem. Enigmática, propunha-se a embelezar a horta de quem quisesse, adiantando, porém, não abrir mão de seus segredos. Tradição de família, sabe? - exagerava. Filó, nesses momentos, estourava a bunda a rir da ingenuidade da mulher. Por ironia, as esplêndidas plantas eram produzidas pela raiva dele, transpondo fronteiras da cidade e culminando por garantir maior segurança e conforto financeiro ao casal com as vendas, também das aveludadas rosas e dos suaves copos-de-leite. Afora isto, havia o rendimento proveniente do ofício de desentupidor de canos e esgotos desenvolvido por ele, cuja única certeza após cada trabalho - literalmente sujo -, era aquele cheiro nauseabundo de privada em baile na roça, impregnado nas roupas e na pele escurecida pelo sol, numa coloração de merda. Ao chegar em casa, permanecia horas a fio mergulhado numa velha banheira aloucada, num canto do pátio em meio a detritos, no afã de livrar-se do fartum de bosta vencida. Por entre as madeiras carcomidas da cerca, a criançada ria das suas pernas de barata e fingia vomitar.

Depois de parar os filhos à sua imagem e semelhança, escarrados e cuspidos com a sua cara a mesma disposição para o trabalho, a mulher perdeu definitivamente qualquer parecença com aquela beata longilínea e terna. Tornara-se por assim dizer, um paquiderme bípede a balançar a cristaleira, fazendo tinir os cristais á sua passagem. A gordura espalhava-se da papada ao ventre gelatinoso e balouçante, para continuar seu caminho nos quadris projetados aos quatro pontos cardeais. Na mesma proporção, sua língua espichava, faminta e aguda, sempre em busca de maledicências e fuxicos.

Por essa época um médico, consumidor de suas flores e chás, cometeu a temeridade de declarar-se preocupado com a saúde de sua fornecedora habitual e alertou-a para os pergos da obesidade, Entre esses, a possibilidade de vir a ter problemas com o coração. Assim, deu a ela o elemento que faltava para colocar-se na posição de vítima, o pretexto para justificar a preguiça congênita: devia abster-se de esforços excessivos. Cautelosa, tratou de não aumentar um grama e passou a viver sob a suposta ameaça de uma saúde abalada. Agora sim, tinha sobejos motivos para impor sua gorda tirania do alto do sofá, troncho e acabrunhado sob seu peso. Aos fins-de-semana, rodeada de beatas contritas, subia lentamente a pequena colina em direção à igreja, acompanhada de perto por olhares apreensivos e prontos para, dado o sinal de alarme, ao primeiro vacilo daquele corpanzil afastarem-se a tempo de escapar daquela avalanche de carnes.

Entretanto, como o diabo não faz nada sem tirar proveito, rindo-se, sorrelfo, Filó presenciava os escândalos promovidos pelo filho mais velho na tentativa de extorquir o dinheiro da venda de flores aos domingos; numerário este guardado a mão-de-defunto pela mulher, atochado no corpinho. Não raro, dona Pouca ficava girando, qual pião gigantesco, mão no seio, esbaforida a aumentar a distância entre ela e a sanha oportunista do filho desnaturado que, consciente da própria agilidade, não tinha a menor pressa. Nessas ocasiões, ficava parado num mesmo lugar, batendo os pés como se corresse, apenas para vê-la apressar-se. Comprazia-se, maldoso, a ver aquela montanha humana tremelicando ao redor do quintal, e às vezes, o celerado deixava-a completar uma volta inteira para surgir de inopino e às gargalhadas à sua frente.

A voz chocha do padre tira Filó de seus devaneios e lembranças. Estende a mão, numa reação automática, e olha para o outro com uma cara atoleimada:

- Morreu.

- É, parece...

- Mas o senhor precisa ser forte, meu amigo, perdeu uma grande mulher.. - o padre interrompe-se, percebendo a gafe - Quero dizer, uma esposa e mãe exemplar, fiel aos preceitos da Santa Madre igreja, um baluarte da fé. Uma alma preciosa.

O velório encontrou seu Filó esbodegando-se de sono, lutando contra os bocejos e a vontade de mandar aquela vaca gorda à merda e ir dormir. Morria durante a madrugada, impunha-lhe aquela banha gelada e sem o menor aviso ou consideração e ainda o obrigava a ficar ouvindo a ladainha daquelas miseráveis carolas, a resmungar a noite inteira. Era o fim. No caixão, plácida, dona Pouca, devido ao inchaço, pouco a pouco descruzava os dedos balofos.

O sepultamento o, ocorrido em meio a uma chusma lacrimejante e imbuída de temor divino, deu-se quando o sol ainda torrava grimpas e não sem um certo embaraço. A mulher intumescera tanto que a tampa do esquife não fechava nem por decreto. Aperta daqui, aperta de acolá, tentavam todos, visivelmente constrangidos, lacrar o bendito caixão. Mas era o tempo exato de apertar um parafuso para outro saltar com estrépito. Naquela lengalenga, seu Filó, exasperado e rubro pelo esforço, conclamava aos berros por ajuda, beirando o desespero: ia ou não livrar-se da maldita gorda? Os outros, interpretando seus gestos como os de um marido inconsolável, arrasado pela dor, redobravam esforços para manter a morta dentro dos limites acanhados do seu lar derradeiro. O corpo inchava como um bolo grotesco sob uma overdose de fermento.

Uma hora depois, esgotadas todas as possibilidades, encontrou-se a solução final: a defunta seria conduzida em um caminhão cedido pela prefeitura e os acompanhantes, em vez de tomarem as alças do esquife, sentariam sobre ele. Assim, finalmente deu-se a cerimônia do sepultamento.

Três meses depois, Filó ainda tirava sua desforra. Substituira o sofá, impresso pela abundância da falecida, por outro novinho em folha e passara a comandar os filhos vadios na limpeza de canos e esgotos. Ah, o mel da vingança. Além de passar o dia todo sobre o sofá vermelho-vinho de napa, sua única ocupação consistia em vender flores e chás.

Em menos de um ano, passou a ser quase uma réplica da morta, engordara como um porco cevado. De vez em quando, exclamava, debochado:

- Que falta faz Dona Pouca!... - e mudava de posição, com ar de imperador romano, no sofá roto.

Na calada da noite, dois vultos, evitando serem vistos um pelo outro, revezavam-se na sistemática destruição dos canteiros e no posterior conserto dos estragos.

(NA.: Extraído do livro de contos O ciclo das vontades, editado pelo Instituto Estadual do Livro do governo do Estado do Rio Grande do Sul/200, laureado com o Prêmio Açorianos em 2001).

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