A Garganta da Serpente
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O esqueleto de serpente

(Marcelo Moraes Caetano)

Capítulo I
O estágio

João Carlos Antunes Magalhães se sentia verdadeiramente um felizardo. Poucas coisas o haviam realizado tanto na vida até ali. Era um júbilo, um regozijo que sua expressão facial transbordava com a facilidade e transparência de uma criança feliz.

O rapaz acabara de completar dezoito anos, e estava cursando o primeiro ano da faculdade com que sonhava desde a infância: Biologia! Era, mesmo, um sonho realizado. Uma felicidade inaudita.

Como se não bastasse tanta alegria por estar no seio acadêmico de que supunha precisar com corpo e alma, João fora aprovado em primeiro lugar num concurso interno da sua universidade. Isso lhe permitiu o gáudio máximo de sua existência até então: o estágio - tão acalentado! - no Museu de História Natural. Seu orientador, um egrégio homem da pesquisa científica, partira dias atrás para um congresso sobre ofídios no Canadá, onde permaneceria por mais uma semana, mas deixara as instruções com João, as quais ele seguiria a ferro e fogo, a fim de obter gradativamente a confiança do Professor Doutor Marcos Nascimento Fontana, ícone sagrado da Biologia, com pós-doutorado em vertebrados em plena Sorbonne!

João deveria, na ausência do Professor Doutor, responsabilizar-se exatamente pela manutenção do Departamento número 2 de vertebrados do Museu de História Natural. Ele mal acreditava que, estando apenas no primeiro ano da faculdade, lhe fora dada semelhante incumbência, ímpar por sua importância, fantástica por sua grandiosidade. Era a responsabilidade das responsabilidades! Nada se igualava àquilo em teor e em profundidade. O museu estava fechado ao público, em recesso.

O papel do rapaz (a quem as chaves do Departamento número 2 foram entregues!) era ir, durante os sete dias de ausência de seu orientador, à sala em questão, e anotar todos os dados relativos aos esqueletos que ali estivessem. Era um dos setores mais importantes da Ala dos Vertebrados, pois continha espécimes raríssimos de répteis e mamíferos, encontrados em longínquas partes do mundo, e notáveis por seus tamanhos e características físicas atípicas de tão descomunais.

Logo na entrada, o esqueleto completo de um autêntico Panthera leo! E adulto! Uma das coisas mais lindas que João já havia visto. Um leão inteiro, apenas em ossos, despido das inutilidades e dos luxos. Ele estava frente a frente não com um leão qualquer, desses que se encontram em savanas, em profusão por lá, mas com a essência de um leão, com a alma de um leão! Era lindo! Representava todo o continente da África. E quão bem representava!

Um pouco mais à frente, via-se logo a Austrália com seu Leviatã, monstro das águas, o inigualável crocodilo marinho. Também apenas em alma, o que lhe dava uma vida mais que especial: uma vida metafísica, uma além-vida, uma omnivita, ou vida total. Aquela espécie tinha inacreditáveis (estava escrito na placa, e a visão confirmava o feito sobre-humano e supradivino) inacreditáveis 7 metros. Um metro para cada dia da semana, João pensou, rindo de soslaio. Um Crocodylus porosus magnífico! Um esqueleto digno de virar monumento no Louvre. Muito mais bonito que qualquer "Vitória de Samotrácia", que qualquer "Apolo de Belvedere", que qualquer "Vênus de Millus"... Anotou em seu bloco, sobre a prancheta.

Sua função era esta: ir a cada dia, durante a semana de ausência de seu mestre, conferindo a integridade dos esqueletos preciosos contidos naquela sala. Sem a sua anuência, ninguém poderia entrar na sala. Nem mesmo a limpeza desta poderia ser feita senão sob sua inspeção e observação argutíssimas. Ele se desdobraria para efetivar essa missão. Ele a cumpriria, se fosse preciso, com sua própria vida. Por isso, antes de qualquer coisa, precisava conhecer os poucos e nobilíssimos habitantes do setor, as parcimoniosas e preciosíssimas almas mantidas naquele céu dos vertebrados, os raros e valiosíssimos espíritos que permaneciam na eternidade daquele paraíso dos ossos essenciais. Então, ali está ele conhecendo e reconhecendo sua área de atuação: apresentando-se a seus companheiros inseparáveis daquela semana dos sonhos, daqueles sete dias de ouro.

A Ásia mandava seu representante imortalizado. Um esqueleto de elefante, um portentoso Elephas maximus! Por um momento, João imaginou aquela beldade em seu imenso e colossal armento. Era um macho, pois tinha as enormes presas de marfim, ossos que lhe davam ainda mais um tom de realeza. Imaginou-o como macho-alfa de seu rebanho, o rei de seu povo. Agora, por isso mesmo, mereceu o trono derradeiro, ao qual nem a campa nem os vermes puderam desintegrar. Ele ganhara o céu dos céus, e ali repousaria para sempre, incansável e incorruptível, para a posteridade das gerações de cientistas que, maravilhados, o adorariam num estatuto ainda superior ao da própria deusa Ganexa! Aquele ossário era mito e rito num só ser, era o encontro entre religião e ciência, tão acalentado há séculos e séculos por Copérnico, Galileu, Kepler! Ele estava diante de (e vivendo face a face com) o próprio sonho de Ícaro!

João quis aprisionar aqueles sete dias que viriam numa ampulheta de gelo. Como queria ter em suas mãos o controle das horas e dos dias, para eternizar a semana vindoura tal qual estavam eternizados os maviosos espécimes a quem ele cortesmente se apresentava!

Quando tudo parecia perfeito, e que nada de mais glorioso poderia surgir, eis que agora sim a perfeição se apresenta! Perfeição! Per-fei-ção. Nada a acrescentar àquela maravilha das maravilhas. Era a perfeição. Ponto final.

Um esqueleto de Eunectes murinus com per-fei-tís-si-mos no-ve me-tros! 9 metros! João não acreditava. Era o representante do Brasil. Deus! O Brasil mandara como representante não um rei, mas um autêntico deus. Uma sucuri de 9 metros. Com todas as costelas intactas, as vértebras irretocáveis, sem um arranhão, cabeça, mandíbula, todos os ossos conservados naquele verdadeiro Éden da ciência moderna. João pensou em Carolus Linnaeus, que havia de estar mais do que nunca honrado em ver sua classificação elevada ao estatuto de divindade. Sua taxonomia binária encontrando as mais espetaculares espécies, reavivando o infinito fôlego dos cientistas e teólogos em seu incomparável Systema naturae.

Quem melhor representaria os vertebrados senão uma cobra? Um animal que é osso em quase cem por cento de sua morfologia! Ossos em sua função mais perfeita; e ainda flexíveis e resistentes! Um esqueleto de Eunectes murinus.Uma sucuri brasileira. A deusa das cobras. Das cobras, não! Dos vertebrados! Fora trazida (lia-se na placa, anotada no bloco de João) da Amazônia do Brasil. Sucuri. Também conhecida como Anaconda. Boiuna. Sucuriju. Viborão. Havia ainda alguns relatos folclóricos sobre a gigante das serpentes, mas João, como homem de ciências que é, sabe que os relatos do povo têm tão somente um caráter lúdico, supersticioso e tolo. Não se deve dar importância alguma àquelas histórias passadas de boca em boca, usadas para, no máximo, manter um filho assustadiço longe dos pântanos, ou de criar, em alguma filha, um temor irrefletido para contê-la moralmente íntegra sobre questões familiares etc. Bobagens com fundos morais que serviam de educadores dos povos primitivos das regiões frequentemente longes dos ecúmenos da cidade grande. Crendices, fantasias, sem qualquer cunho científico.

Mas que esqueleto! O Brasil, com a maior floresta do mundo, o maior volume de água fluvial do mundo, a maior quantidade de espécies botânicas e animais do mundo, estava ali representado pela Sucuri-verde, nove metros estendendo-se ininterruptos e intactos dentro da mais nobre vidraça que João já contemplara. Nem a própria Píton, se ali estivera, seria capaz de esmaecer a majestade da Sucuri brasileira!

Voltaria no dia seguinte. Hoje, coroado com a glória suprema. Foi para casa. Dormiu feliz, exultante. Mal crendo que só lhe restariam, sozinho com as maravilhas que conheceu, parcos seis dias de convívio. Mas ele os sorveria com máxima devoção. No dia seguinte, talvez permitisse que o faxineiro do museu, junto com ele, fosse à sala para fazer a limpeza habitual. Sonhou com tudo o que viu. Viu as espécies vivas em sonho. Sonho que não quis terminar. O leão, o crocodilo, o elefante. A sucuri!

Chegou ao museu e abriu a sala. Viu o rei das selvas em seu esqueleto perfeito, o crocodiliano e seus dentes impecáveis na mandíbula mais forte da Oceania, o enorme paquiderme onipotente em sua coroa de marfim, e agora queria vislumbrar mais uma vez a sua favoritíssima deusa - a Sucuri! Quando olhou seu esqueleto, observou que ela estava curvada, fazendo quase um "U" dentro de seu ataúde cristalino. Mas isso não seria logicamente possível.

Saiu da sala às pressas e perguntou ao faxineiro o que significava aquilo:

- Cléber, quem mexeu no esqueleto da Sucuri?

- O que é isso, rapazinho, só quem tem a chave é o senhorzinho, esqueceu?

- Mas ontem a cobra estava reta, e hoje está curvada, quer ver... - Cléber, o faxineiro, interrompeu o aspirante a cientista ali mesmo:

- Não quero ver nada! O senhor não precisa me ensinar a fazer meu serviço não senhor! Eu trabalho nesse museu faz pra mais de vinte e cinco anos. Você nem pensava em nascer ainda. Ninguém entrou nessa sala, meu filho. Você é que deve estar louco! - e saiu pelo corredor afora, com a vassoura numa mão e alguns xingamentos incompreensíveis na boca. João ficou atônito. Voltou à sala. Será que deveria dormir no museu? Ficou ali o dia inteiro de prontidão, sem permitir que ninguém entrasse no setor. No dia seguinte, ele mesmo limparia o Departamento número 2. Ninguém se aproximaria. Foi embora deixando o leão, o crocodilo e o elefante como antes, mas a Sucuri em forma de um desconcertante e inexplicável (será?) "U" maldito!

Dormiu mal. Sonhou mal. Acordou mal.

Foi direto ao museu, seis horas da manhã. Entrou no Departamento 2. Nem viu leão, crocodilo... nada. Só queria ver a Sucuri! Com mil diabos! Maldição! O que é isso!? O que é isso!? Pensou em gritar. Não havia ninguém no museu. Pensou em ligar para a polícia. A polícia não entende nada de ciência. Pensou em ligar para seu professor no Canadá. E quem ficaria responsabilizado pelo fato?

Ele, João! Não, não poderia ligar. Mas fazer o quê?! A Sucuri, ali na sua frente, já não era apenas esqueleto, sequência de ossos, vértebras, costelas, quadril, mandíbula, crânio... Não! Havia um impensável pulmão surgindo do lado direito da serpente. Quem o colocara ali? Quem estava fazendo aquela brincadeira estúpida? E quem pusera aquele estômago enorme dentro do esqueleto da serpente? Quem se dera ao trabalho de buscar um coração de Anaconda, de abrir o vidro protetor dos ossos, e de colocá-lo em sua posição anatômica e morfológica perfeita? Qual o intuito dessa patifaria? Quem foi o verme amaldiçoado que fez isso?

Decidiu: dormiria ali naquela noite. Assim fez. Pelo menos tentou. Cochilou, é fato, perto das duas da manhã. Três e meia, no entanto, acordou espavorido. Ao lado da Sucuri, esta por sua vez dentro de seu vidro protetor. Não resistiu. Acendeu a luz da sala.

Deu um grito. Conteve-se para não dar outro, pois poderia disparar o alarme e, se a polícia fosse até lá, como ele explicaria que, sendo o responsável pelo setor, permitira que algum desgraçado entrasse lá e pusesse músculos dentro do esqueleto da maldita Sucuri? Como explicaria isso? Nove metros de músculos, tecido adiposo, um resíduo de escama sobre o maldito esqueleto! O que é isso? Como é isso? Como poderia?

Não poderia sair do museu, pois isso dispararia o famigerado alarme, com todas as nefastas consequências que isso acarretaria. Faria vigília. Seis da manhã, no entanto, foi hipnotizado e vencido pelo sono: adormeceu. Acordou às nove, com o barulho do faxineiro batendo a porta de entrada do museu e assoviando uma canção infantil horrorosa. A primeira coisa que fez foi olhar a Sucuri.

Um misto de pânico e paralisia tomou João de assalto até à alma. A cobra estava praticamente inteira dentro do vidro. Só lhe faltavam os olhos e um pouco mais da coloração verde nas escamas. Ah! E que escamas perfeitamente encaixadas e novas, como telhas construindo um templo de maldições! Só faltavam os olhos e alguma cor. Mais nada.

João saiu da sala aos prantos e agarrou Cléber pelo braço, puxando-o com todo o seu vigor. O faxineiro, é claro, vendo o estado de João, extremamente preocupado, recusou-se a segui-lo, e, em vez disso, colocou o estagiário sentado, à força, num banco no corredor do museu, pediu-lhe um instante e foi telefonar. João estava em estado de choque, mal falava palavras compreensíveis, apenas balbuciava ora um "cobra", ora um "não", ora um "por quê", ora um "mentira", ora um "Latissimus dorsi", ora dava uma risada semi-histérica, ora chorava copiosamente...

Cléber ligou para o médico do museu. O médico não estava lá, pois o museu estava em recesso, fechado para o público. Mas, diante do apelo do faxineiro, foi imediatamente para aquele local.

Encontraram João desacordado no banco do corredor. O pobre rapaz, que não dormira a noite toda, mais uma vez fora vencido pelo sono, acrescido de um estresse terrível e de uma histeria que tanto o paralisava, quanto o punha em movimentos convulsivos e descontrolados. O médico, doutor Fernando, quando viu João, imediatamente falou a Cléber:

- Ah, meu Deus! Então você não sabia? Esse menino está há três anos com diagnóstico de esquizofrenia. É clássico. Ele sofre todo tipo de alucinações, e tem que tomar antidepressivo diariamente, porque senão... dá nisso aí! Hum... Deve ter ficado dias sem tomar o remédio! Ah, meu Deus! Me ajuda aqui, Cléber, vamos colocar ele no meu carro e levar pro hospital pra medicar. Você tem o telefone da mãe dele...? - E puseram o rapaz no carro do médico.

Capítulo II
Museu aberto ao público

Três dias depois do incidente - do desnorteado e patológico episódio do estagiário e seu surto -, o museu reabriu ao público sequioso de saberes e conhecimentos.

Naquele primeiro dia, havia uma excursão de crianças que, bem guiadas por seus professores de Biologia, conheceriam um pouco das delícias e dos mistérios da fauna e flora universais. Uma visita ao âmago da mãe natureza. Assim seria.

Chegaram à Ala dos Vertebrados. Foram ao Departamento número 1, cheio de encantos: uma bela ossada de javali, outra de águia, outra de golfinho, outra de gorila. Etc. Lindos! Lindos!

Agora, o famoso Departamento número 2, onde (a lenda já havia corrido) um rapaz enlouquecera poucos dias atrás. Isso era bom, pois dava à visita um tempero extra de misticismo, e as crianças sempre adoram embeber a ciência num pouquinho de mistério e fantasia...

Lá está o imponente esqueleto de leão da África, o crocodilo australiano, o enorme elefante asiático...

... Pedrinho, cinco anos, estudante da excursão, foi o primeiro a gritar quando viu a vidraça da Sucuri da Amazônia estilhaçada e sentiu que a enorme serpente o puxava sem nem piscar os dois imensos olhos reticulados com duas fendas estranhas pelo pé esquerdo sem que ninguém acreditasse estar vendo vida na maior serpente das Américas...

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